27 Abril 2016
O prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT), afirma que a oposição criou uma "agenda de intolerância" durante o governo federal petista. Em entrevista exclusiva à BBC Brasil, ele diz que sobretudo tucanos alimentaram a criação de movimentos sociais de direita com um discurso "preconceituoso", sem se beneficiar disso.
O prefeito da maior cidade do país afirma ainda que acha muito difícil a presidente Dilma Rousseff se livrar do processo de impeachment, apesar de ver o processo como um "casuísmo".
A entrevista é de Felipe Souza, publicada por BBC Brasil, 26-04-2016.
Questionado se tem planos de sair do PT, Haddad diz que vê como oportunismo a desfiliação de um a cada cinco prefeitos eleitos pelo partido em 2012.
Eis a entrevista.
Como o senhor vê o crescimento dos movimentos de classe média? É saudável essa ascensão da direita na democracia?
Nos dez anos de crescimento econômico que tivemos, a classe média tradicional presenciou um fenômeno inédito no Brasil, que foi o distanciamento dos ricos, que se tornaram ainda mais ricos, e a emergência dos pobres, que se tornaram menos pobres. E a classe média viu a sua posição relativa se deteriorar, embora não tenha perdido o poder de compra.
Ela manteve o seu poder econômico, mas viu milhões de brasileiros se aproximarem dela no ponto de vista de status e posição social. Isso (aconteceu) somado a uma agenda de intolerância cultivada desde 2006 sobretudo pelo PSDB - uma agenda antissocial, que discutiu de forma totalmente artificial temas caros às mulheres, aos jovens negros da periferia, à comunidade LGBT.
A maneira como o PSDB organizou a intolerância desde 2006 se fez notar agora. Então, esse ressentimento foi nutrido pelo preconceito, que foi sim patrocinado pela oposição.
Não há como negar o tipo de abordagem que eles fizeram nas sucessivas campanhas eleitorais, sobretudo de 2002, 2006, 2010 e 2014. Eles foram alimentando uma agenda de intolerância muito notável que, quando combinada com a crise econômica, gerou o surgimento de movimentos bastante conservadores. Alguns até de viés neo-fascista.
O senhor vê a ascensão desses movimentos como um reflexo do preconceito e divisão de classes?
Eu vejo como a conjugação desses dois fatores. A conjunção de uma relativa perda de prestígio econômico-social, de status de uma classe média tradicional, nutrida por uma agenda partidária envolvendo o preconceito. A maneira como foram abordados temas como aborto, combate à homofobia, questão racial e, mais recentemente, maioridade penal tem tudo a ver com essa perspectiva de intolerância que agora tem uma representação política mais bem definida.
O que fica claro nesse movimento é que o PSDB não parece ser o maior beneficiário daquilo que ele patrocinou. Você vê que nas camadas mais ricas da sociedade o (deputado Jair) Bolsonaro tem mais intenção de voto que (Geraldo) Alckmin e Marina (Silva), por exemplo, e que o próprio Aécio (Neves).
Nunca é bom alimentar a intolerância. A humanidade já está recheada de exemplos disso, mas como eles não tinham uma abordagem socioeconômica alternativa para apresentar, apostaram no retrocesso do comportamento, da cultura.
O senhor acha que as ruas devem continuar pressionando para derrubar os próximos possíveis governos, caso a Dilma caia?
Isso depende de como o governo vai se colocar, mas, no geral, você tem uma janela de oportunidade que pode ser bem ou mal aproveitada no sentido de recomposição da base de legitimidade. Não sei como vai ser aproveitada essa janela. Vai depender muito da postura (do presidente).
É que a largada já está dificultando o processo em função disso tudo que eu estou dizendo.
Dilma ainda consegue reverter o impeachment e qual seria um possível caminho para isso?
É muito difícil a situação, pelo placar que eu tenho acompanhado. O importante é a sociedade, que é contra esse casuísmo, alertar os senadores sobre as consequências desse gesto. Eu penso que é o caminho a ser trilhado.
Trata-se de um casuísmo e não de um processo robusto contra uma pessoa que tenha cometido crime de responsabilidade. É frágil a base do impeachment. Isso é dito não por uma pessoa, mas por uma boa parte da comunidade jurídica, alguns meios de comunicação que disseram em editorial com todas as letras que a base era frágil.
Uma das principais candidatas a presidente, a Marina Silva também assevera que o ideal seria ungir com o chefe do Executivo pelo voto.
O senhor vê o impeachment como um golpe?
Vejo como um casuísmo na medida em que o pretexto para o impeachment não vai ser aplicado a nenhum outro governante. Tivemos o que se apelidou de "pedaladas fiscais" como praxe no Brasil, inclusive no plano subnacional. Governadores e prefeitos. E eu duvido que alguém vá pedir o impeachment de um governador reeleito em função desse tipo de procedimento contábil.
Há uma diferença muito grande entre um eventual dano, do ponto de vista contábil, e a pena que está sendo aplicada de perda de mandato. Nesse sentido, alguns juristas que eu respeito chamam de golpe.
A diferença dos golpes clássicos é que nós temos eleições previstas para 2018 e é muito importante que o calendário eleitoral seja sempre mantido, dando liberdade para as forças políticas defenderem o seu projeto de nação.
Há uma perda de representatividade no Congresso, já que apenas 36 deputados federais foram eleitos diretamente pelo povo?
Pior do que o voto de legenda, que é absolutamente democrático, são as coligações proporcionais (de partidos) porque você pode eleger um deputado de um partido que tem um ideário antagônico ao seu sem que você saiba disso. O seu voto pode eleger alguém que pensa diametralmente o oposto de você.
As coligações proporcionais distorcem o voto de forma até mais aguda que o financiamento empresarial. A segunda e talvez mais decisiva reforma que a gente tem que fazer é vetar a coligação proporcional porque aí os ideários vão se compor de outra maneira. As pessoas vão se unir em torno de grandes bandeiras. Hoje, os presidentes de partidos são corretores de tempo de TV.
Como o senhor vê um possível governo Temer?
Eu não sei qual vai ser o comportamento do governo se o impeachment for sacramentado. Não está claro ainda qual será a política econômica do próximo governo. Eu ouço inclusive informações contraditórias.
Um a cada cinco prefeitos do PT eleitos em 2012 deixou o partido. O senhor planeja sair do PT?
Existem situações muito particulares em que a pessoa se vê obrigada a sair. Mas em geral trata-se de um claro comportamento oportunista. Pessoas que se valeram da agenda na época áurea para galgar degraus importantes da sua própria trajetória mudam a narrativa e começam a justificar o injustificável.
Eu permanecerei no PT, como sempre disse. Acho importante para o Brasil o resgate da legenda, que pode levar tempo, mas é um esforço que compensará. É importante ter um partido trabalhista no Brasil. Mas também é verdade que o campo da esquerda hoje é mais importante que o próprio PT. Você tem um campo progressista que vai se reorganizar não necessariamente com a hegemonia do PT, como ocorreu nas últimas décadas.
Provavelmente, vai acontecer com novas formas de organização social, inclusive de movimento popular. Vai criar um campo de força talvez até mais robusto para os próximos desafios.
Durante a sua gestão, o senhor criticou muito o governo Dilma, principalmente por não atingir parte do seu plano de metas por falta de repasses.
Primeiro, nós vamos demonstrar que cumprimos a maioria das metas e com larga vantagem sobre os governos anteriores. Isso vai ficar demonstrado numericamente. Em grande medida por causa do governo Dilma.
Não fosse o acordo da dívida (com o governo federal), que tardou mas veio, nós estaríamos insolventes. A nossa dívida caiu de R$ 72 bilhões para R$ 28 bilhões.
O que eu falo e não é uma crítica, é factual, é que a parte do PAC não se realizou. Em três vertentes importantes: nos campos da drenagem e da moradia a gente fez muito, mas poderia ter feito mais. E, no campo da mobilidade, as faixas exclusivas (de ônibus) poderiam estar sendo passadas para a esquerda, que melhoraria ainda mais a fluidez e o arranjo urbanístico da cidade.
Então, nós poderíamos ter feito mais nessas três áreas, mas fomos os que mais fizemos.
O que o senhor acha que derrubou o governo Dilma? Foi a hegemonia, achar que tudo estava sob controle?
Vamos aguardar os capítulos finais. Não dá ainda para dar como perdido, mas a base de apoio do governo começa a se perder primeiro em função dessa agenda que data de 2006 e vem prosperando no subterrâneo da sociedade. Tanto é que jornalistas de viés muito conservador foram ganhando espaço extraordinário nos meios de comunicação.
Pessoas com qualificação intelectual bastante questionável ganharam um espaço importante nos meios de comunicação.
Quando vem a crise econômica, o governo também deu ensejo porque fez um diagnóstico de que as medidas anticíclicas seriam temporárias e encontrariam ambiente internacional mais favorável, que não se revelou. Essa conjunção, turbinada pela Lava Jato, gerou uma sobreposição de crises muito difícil de administrar.
Teve desde falhas na condução da política econômica, sobretudo no final de 2012 e começo de 2013, mas também encontrou um ambiente político já bastante desfavorável e degradado.
E não há como não se referir ao fato de que a reforma política não foi feita, não por causa do governo. É muito difícil fazer uma reforma política contra os atuais representantes. É muito difícil fazer uma reforma política que ponha ordem na representação contando com o aval dos representantes, que são fruto dessa representação distorcida.
Não é por outra razão que foi o Supremo Tribunal Federal que deu o primeiro golpe nesse sistema político, vetando o financiamento empresarial de campanha. Mas insisto em dizer que as coligações proporcionais, do ponto de vista da distorção da representação, são tão nefastas quanto o próprio dinheiro empresarial nas campanhas eleitorais.
Como o senhor vê a esquerda brasileira hoje, que tem um histórico de apoio ao PT?
Eu vi uma frase do (deputado) Jean Wyllys: "se a Dilma vencer o golpe, eu espero que ela faça o que prometeu na campanha de 2014". O que a esquerda quer, guardadas as diferenças, é o resgate daquele projeto tão bem representado pelo presidente Lula, que permitiu, naquelas condições, que os de baixo ascendessem.
Como fazer esse resgate?
Tem que adaptar aquele projeto às condições internacionais vigentes. Não é mais tão fácil como foi, mas sempre há a possibilidade de remanejar corretamente os instrumentos e fortalecer os laços democráticos com a sociedade organizada, para formular políticas que vão nessa direção.
Nunca se ampliaram tantas oportunidades aos pobres quanto nesse período. Você não via pobre na universidade, você não via pobre com renda, pobre com crédito, com acesso a bens e serviços como vê hoje.
Temos dois anos difíceis também em função de um contexto de travamento das decisões políticas no Congresso.
O PT é criticado pela falta de renovação. O senhor se vê como uma futura liderança nacional do partido?
Falta renovação na política em geral. Até o PT tenta mais que os outros partidos renovar seus quadros. Quando eu recebi o convite do presidente Lula para concorrer à prefeitura foi um caso desse. O (ex-)ministro (Alexandre) Padilha, candidato a governador em 2014, é outro exemplo.
Não se vê isso, por exemplo, no PSDB, que tem os mesmos quadros competindo há 20 anos. Existe uma necessidade de renovação geral da política, e (a renovação) não vai significar necessariamente que nós vamos melhorar - porque nós temos figuras emergentes aí muito preocupantes, que estão angariando apoio, na minha opinião, na direção de colocar o Brasil numa agenda bastante complicada.
Como o senhor vê essa pulverização de candidatos à Prefeitura de São Paulo, com mais representantes da esquerda, como a Erundina? Eles devem tomar parte do seu eleitorado?
Não acho que essa conta é cabível hoje porque o quadro é inteiramente novo. Desde 2013, vivemos uma ebulição social em que as forças conservadoras têm crescido muito. Veja o dado recente que 20% daquelas pessoas que ganham mais de 10 salários mínimos têm a intenção de votar no Bolsonaro - uma coisa impensável há dez anos. Então, a política muda com muita rapidez, e a velocidade está tão grande que a gente não sabe o que vai acontecer nos próximos cinco meses. Temos que ter calma.
A Erundina já foi prefeita e candidata outras duas vezes à prefeitura. Uma delas, inclusive, com o Michel Temer como vice, para você ver como as coisas mudam. Não sabemos ainda qual vai ser o impacto de toda essa mudança.
Como vai ser a primeira campanha sem o financiamento privado empresarial de campanha? Vai ser mais difícil?
Como vai ser mais difícil para todo mundo, não tem problema. O problema é quando não há paridade de armas para o enfrentamento democrático. Mas quando há paridade não há por que reclamar.
Um grande ganho desse processo todo (é) afastar o dinheiro da política. Dinheiro e política não deveriam conviver porque são mundos muito diferentes.
Mônica Moura (mulher do marqueteiro João Santana), que participou da publicidade da sua campanha, disse em delação premiada da Lava Jato que houve caixa-dois. Isso pode desestabilizar sua campanha?
Eu não tive acesso a esse documento nem a confirmação de que essa declaração efetivamente foi dada. O que eu posso assegurar é que no que diz respeito à minha campanha, à contabilidade, não teve nenhuma irregularidade.
Eu duvido que ela tenha feito essa declaração nesses termos.
O senhor sofre uma certa rejeição dos moradores da periferia e tem uma boa aceitação de quem mora na região central da cidade. Um balanço revela que duas a cada três metas da sua gestão para a periferia não saíram do papel. Como o senhor vê isso?
Isso é falso. Para quem são as faixas exclusivas de ônibus? Para a periferia. As 100 mil vagas de creche e escolas que eu vou entregar? Para a periferia. Os hospitais? As universidades nos CEUs, as UPAs?
Na verdade, existe um bloqueio para que a informação não chegue à periferia. A periferia é quem se informa da maneira menos plural. Se informa em geral por programas de rádio e TV que não fazem chegar essa informação. Quanto mais pluralidade de informação, mais adesão nós temos.
Então não são os setores do centro. São os setores mais bem informados.
O senhor tem comprado brigas com grandes movimentos sociais, como Passe Livre e Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, que responderam com uma série de protestos. O que deve ser feito para reconquistar essa confiança?
Discordo do seu diagnóstico, com exceção do MPL, que (fez) efetivamente uma marcação contra a prefeitura. Inclusive indo à porta da minha casa, o que é um comportamento nem digno da esquerda. Eu tenho uma boa relação com todos os movimentos sociais da cidade.
O MTST está sempre aqui na mesa negociando. No sábado (23), estive com todos os movimentos de moradia no Belém (zona leste), entregando um terreno em uma área nobre para um movimento de moradia depois de 30 anos de reivindicação.
Em relação ao MPL, eu acho que é uma questão particular, inclusive estranha. Qual governo mais avançou nas políticas de transporte público que o nosso? Não tem paralelo que foi feito, inclusive concedendo o passe livre para o estudante.
Cumpri todas as minhas promessas de campanha: reajuste (de tarifa) sempre abaixo da inflação, Bilhete Único mensal a R$ 140 e passe livre a mais de 1.500 estudantes da cidade de São Paulo.
Agora, o viés político e as intenções políticas do MPL não me dizem respeito. O fato de não demarcarem com o governo do Estado como demarcam com a prefeitura é uma pergunta que tem que ser dirigida a eles, não a mim.
Quais os seus planos caso seja derrotado nessas eleições?
Eu não dependo da política nesse sentido que você está falando. Meu primeiro cargo público eu assumi com 37 anos, em 2001. Em 2005, eu me tornei ministro da Educação, passei 8 anos no MEC e quatro como prefeito na minha primeira eleição.
O importante não é a posição que você está ocupando. Eu posso fazer um bom trabalho de ajudar o Brasil a se entender dentro da sala de aula, como fiz durante toda a minha carreira acadêmica.
Eu dediquei meu tempo aos estudos: direito, economia e filosofia. Eu sou professor da Universidade de São Paulo. Para um político tradicional faz muita diferença ter mandato ou não, mas não é o meu caso.
Para mim, ter mandato é uma situação. Ser designado para uma função como ministro é uma outra situação, mas eu não dependo disso para escrever, para pensar, para militar. Não dependo disso para lutar pelo país em que eu acredito.
Então, vamos ver como as coisas se desenrolam, como o Brasil se reorganiza.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Intolerância tem agora representação política bem definida, diz Haddad - Instituto Humanitas Unisinos - IHU