09 Mai 2016
No sábado, Andrea Riccardi, fundador da Comunidade de Sant’Egidio, escreveu um interessante artigo no jornal italiano Corriere della Sera sobre o discurso do Papa Francisco no dia em que o líder religioso recebeu o prestigiado Prêmio Carlos Magno pela integração europeia.
Em resumo, o argumento do autor é que Francisco vê o principal desafio da Europa não como fazia o Papa Bento XVI, quer dizer, com um laicismo e seus descontentamentos, mas sim como um continente que necessita da renovação de uma cultura de diálogo e integração, que promova uma “economia social” em lugar de uma “economia líquida” capaz de criar emprego e gerar esperanças, especialmente aos recém-chegados e jovens.
O comentário é de John L. Allen Jr., publicado por Crux, 08-05-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
“Numa época de etno-nacionalismos”, escreveu Riccardi, “Francisco propõe coalizões, não no sentido político-militar, mas no sentido ‘cultural, educacional, filosófico e religioso’, pela Europa e pela paz: ‘Armemos o nosso povo com a cultura do diálogo e do encontro’”.
Isto, evidentemente, é uma mensagem com uma relevância óbvia num momento no qual o continente está lidando com a crise de refugiados mais acentuada desde a Segunda Guerra Mundial.
Riccardi observa que, não muito tempo atrás, “diálogo” não era exatamente a principal nota que emanava do Vaticano para com a Europa.
Nas décadas de 1990 e 2000, os papas João Paul II e Bento XVI travaram duras batalhas para recordar o continente de suas raízes cristãs, entre outras coisas insistindo que um novo documento constitucional para ele deve conter a chamada “cláusula divina”, ou “invocatio Dei”.
Depois que estas iniciativas fracassaram, o sentimento de afastamento se tornou, muitas vezes, papável. Em 2007, quando recebeu uma delegação de políticos e bispos para celebrar o 50º aniversário do Tratado de Roma, Bento acusou prontamente a Europa de estar em “apostasia de si mesma”.
Aos fiéis europeus mais amargurados, a frase do dia foi popularizada pelo Cardeal Joseph Ratzinger antes de sua eleição ao papado, ao citar o historiador inglês Arnold Toynbee: “minoria criativa”.
Num discurso em 2004, disse Ratzinger: “Os fiéis cristãos deveriam olhar para si como uma minoria criativa e ajudar a Europa a reafirmar o que há de melhor em sua herança e, desse modo, pôr-se a serviço de toda a humanidade”.
Ainda que isto nunca tenha sido o que o Papa Bento pretendeu, muitos católicos europeus ouviram nesta frase um chamado ao recolhimento: a verem-se como uma subcultura em apuros, cuja tarefa é preservar a fé dentro de um meio social laico e hostil. Referências ao espírito do “contemptus mundi”, ou de “desprezo do mundo” dos primeiros movimentos monásticos cristãos, foram abundantes.
Curiosamente, no discurso de quase três mil palavras do Papa Francisco para a recepção do Prêmio Carlos Magno, as palavras “laico” e “laicismo” não aparecem.
Em vez disso, Francisco esboçou um papel para a Igreja na Europa de hoje e, de maneira mais ampla, para as pessoas de fé como agentes de encontro e integração.
Quando falou das “raízes” da Europa, Francisco não se referia à cristandade medieval, e sim à visão pós-Segunda Guerra de um continente que seria o bastião da paz, dos direitos humanos e da tolerância, superando os nacionalismos violentos que levaram a guerras mundiais avassaladoras.
Francisco está ciente de que este projeto europeu do período pós-guerra, forjado por estadistas como Alcide de Gasperi, Robert Schuman e Konrad Adenauer, baseava-se em grande parte na herança e nos valores cristãos destes líderes; Schuman é hoje um candidato a santo.
Como escreveu Riccardi, Francisco sabe que as raízes da Europa precisam ser “irrigadas com o Evangelho”.
No entanto, para o papa, a fé em ação é o que conta. Defende-se melhor o cristianismo não travando batalhas contra símbolos ou com discursos, mas pondo as convicções em prática em momentos em que o mundo mais precisa delas.
“No papa, os políticos encontram um líder espiritual que crê na União Europeia, na medida em que esta é capaz de se expandir e integrar”, escreveu Riccardi.
“Segundo o Papa Bento, a Europa (…) hoje está em declínio devido a um medo de se encontrar com outras pessoas e religiões, escondendo-se atrás das fronteiras e identidades cristalizadas”, completou o articulista, sugerindo ainda que os estadistas europeus atuais sabem disso também, mas que não conseguem consertar o problema por si próprios”.
Em outras palavras, não muito tempo atrás uma ampla parcela da classe política europeia e suas elites culturais viam o papado, e a Igreja, como obstáculos àquela sociedade emancipada e pluralista que queriam construir. Hoje, pelo menos alguns deles estão enxergando o papado e a Igreja como recursos para este mesmo objetivo, talvez como a sua última – e melhor – esperança.
O tempo dirá se o Papa Francisco teve sucesso como o líder de uma nova “coalizão espiritual” que busca reviver os ideais humanistas do continente. Com certeza, as tendências políticas não são animadoras, com partidos de extrema-direita ganhando cada vez mais espaços na União Europeia.
De qualquer forma, o que o Prêmio Carlos Magno parece simbolizar é que Francisco descobriu um papel para o cristianismo no velho continente que vai além do de proteger a si mesmo, além do status quase permanente de ser uma subcultura. Pelo contrário, ele deu-lhe uma nova cara, como se fosse um novo porta-estandarte da melhor versão da Europa.
Ironicamente, tudo isso está sendo feito por um argentino, um argentino cujas raízes encontram-se na Europa, da região de Piemonte, Itália.
À luz da história recente, essa reversão de papéis pode acabar sendo lembrada como um dos elementos mais marcantes deste papado, um papado em que o “marcante”, cada vez mais, parece ser a normalidade.
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Papa Francisco e o cristianismo para além de si mesmo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU