Por: André | 06 Mai 2016
“Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto por que eles são pobres, chamam-me de comunista” (Frase de dom Hélder Camara, referência da Teologia da Libertação).
A reportagem é de Pacho O’Donnell e publicada por Página/12, 05-05-2016. A tradução é de André Langer.
Mais que preocupado, Francisco está horrorizado com a violência e a decomposição moral da sociedade global em que vivemos. Pecados que não atribui a causas ligadas à deterioração relacionada ao tempo e à mudança de hábitos, mas assinala com insistência e clareza um culpado: o sistema capitalista neoliberal.
Em nosso país, foram politizadas ou banalizadas atitudes suas, como o terço dado a Milagros Sala ou a frieza com que recebeu Macri, reduzindo-os a conjunturas circunstanciais, perdendo de vista a formidável significação ecumênica de sua luta contra a desigualdade e a exclusão, eixo vertebral de seu trabalho pastoral. Ele não se limita a lamentações ou a condenações retóricas, mas disgnostica e denuncia o sistema social, político, cultural, mas sobretudo econômico, imperante no Ocidente. Sua mensagem acendeu manifestações a favor ou contra, também entre nós, em um mundo acostumado a que o religioso se deslize pela via separada das angústias sociais.
Já em 1998, o então arcebispo Bergoglio, por conta de uma visita a Cuba acompanhando o então Papa João Paulo II, escreveu: “O que a Igreja critica é o espírito que o capitalismo alentou ao utilizar o capital para submeter e oprimir o homem”, em seu livro Diálogos entre João Paulo II e Fidel Castro. Também “o capitalismo se desenvolve com características de individualidade, em uma vida onde os homens buscam seu próprio bem e não o bem comum”. E não vacilou em afirmar: “Ninguém pode aceitar o neoliberalismo e ser um bom cristão”.
Uma vez no trono eclesiástico não diminuiu o tom de suas combativas advertências. Em Santa Cruz de la Sierra disse que “o sistema capitalista impôs a lógica do lucro a todo o custo”, e acrescentou: “este sistema é insuportável: não o suportam os camponeses, não o suportam os trabalhadores... não o suportam os povos”.
É impossível não recordar João XXIII, que, como Francisco, defendeu uma Igreja “pobre e para os pobres”. Ambos assumiram o papado aos 76 anos, provinham de lares humildes, compartilharam a devoção a São Francisco, o “poverello” de Assis, de quem Bergoglio tomou o nome enquanto Roncalli era secular franciscano.
Este último, com seu Concílio Vaticano II, ao qual se somou a Conferência de Medellín em 1968, deu origem à Teologia da Libertação de ampla difusão na América Latina, inclusive na Argentina. O teólogo argentino Juan Carlos Scannone escreveu: “O comum a todos os diferentes ramos ou correntes da Teologia da Libertação é que teologizam a partir da opção preferencial pelos pobres e usam para pensar a realidade social e histórica dos pobres não somente a mediação da filosofia, como a teologia sempre fez, mas também as ciências humanas e sociais”.
Embora Francisco tenha expressado algumas críticas, sobretudo relacionadas à excessiva influência do marxismo, não há dúvidas sobre sua simpatia e concordância, como demonstrou ao receber o padre peruano Gustavo Gutiérrez, principal referência desta orientação católica, apesar do receio de muitos no Vaticano.
É oportuno, pois, desenvolver algumas das ideias diretrizes da Teologia da Libertação:
1. Opção preferencial pelos pobres.
2. A salvação cristã não se dá sem a libertação econômica, política, social e ideológica, como sinais visíveis da dignidade do homem.
3. A espiritualidade da libertação exige homens novos e mulheres novas no Homem Novo Jesus.
4. A libertação como tomada de consciência diante da realidade socioeconômica latino-americana e da necessidade de eliminar a exploração, a falta de oportunidades e injustiças deste mundo.
5. A situação atual da maioria dos latino-americanos contradiz o desígnio histórico de Deus e é consequência de um pecado social.
6. Não há somente pecadores, mas também vítimas do pecado que necessitam de justiça e restauração.
7. O método do estudo teológico é a reflexão a partir da prática da fé viva, comunicada, confessada e celebrada dentro de uma prática de libertação.
Não é de se estranhar então que Francisco tenha acelerado o processo de canonização de João XXIII, que vinha se arrastando por anos com o pretexto de que não se pode atribuir a ele nenhum milagre. Em uma decisão de alto voo político, às quais o Papa argentino é proclive, a fez simultânea à de João Paulo II, que não despertava resistências. Não pode passar despercebido o contraste com a celeridade com que se cumpriu o trâmite de Escrivá de Balaguer, fundador da Opus Dei.
As encíclicas, discursos e escritos do Papa argentino são um claro chamado à ação: “Vocês, os mais humildes, os explorados, os pobres e excluídos, podem e fazem muito – disse durante sua visita à Bolívia. Atrevo-me a dizer que o futuro da humanidade está, em grande medida, nas suas mãos, na sua capacidade de organizar-se e promover alternativas criativas na busca cotidiana dos três T (Trabalho, Teto e Terra). Não se acanhem!”
É “vox populi” que Bergoglio foi eleito Papa para tirar a Igreja da sua enorme crise em que estava mergulhada. Mas como encaminhar a sociedade de hoje na senda do espiritual e religioso se o capitalismo neoliberal colonizou as nossas mentes com o materialismo, o relativismo, o egoísmo, o consumismo, a idolatria do dinheiro e do poder econômico? É por isso que assumiu a ingente missão de conscientizar acerca de que a miséria humana e a destruição do planeta não são fenômenos “naturais” e irreversíveis, mas a consequência de um sistema desviado.
Também não exclui do seu discurso pastoral “baixar” a crítica de teorias econômicas em voga, inclusive na Argentina: “Alguns defendem ainda as ‘teorias do derrame’ que pressupõem que todo o crescimento econômico, favorecido pelo livre mercado, consegue por si só provocar maior igualdade e inclusão social no mundo. Esta opinião, que nunca foi confirmada pelos fatos, exprime uma confiança vaga e ingênua na bondade de quem detêm o poder econômico e nos mecanismos sacralizados do sistema econômico reinante” (Evangelii Gaudium, n. 54).
Francisco nos convoca à luta: “Digamo-lo sem medo: queremos uma mudança, uma mudança real, uma mudança de estruturas”. Converteu-se no líder da resistência contra o câncer de entronizar a economia como centro da existência humana, deslocando a solidariedade, o amor ao próximo, a responsabilidade. Esse Papa, que chama o capitalismo de “ditadura sutil” e o dinheiro de “esterco do diabo”, suscita inquietude naqueles que se sentem interpelados.
Não é por acaso que os candidatos do Partido Republicano dos Estados Unidos, de direita, compitam em insultar Francisco: “O Vaticano deveria demiti-lo” (Ted Cruz) ou “Os padres não devem se meter na política nem na economia” (Donald Trump). Eles estão também zangados, porque a intervenção do Papa foi decisiva na retomada das relações diplomáticas com Cuba e no pronto levantamento do bloqueio.
São muitas e muitos, sobretudo jovens, que o veem hoje como corajoso líder da resistência contra os males do liberalismo que não está alheio à urgente e dramática realidade, como demonstra a escolha de refugiados para o lava-pés pascoal, diferenciando um rito secular de uma tomada de partido e denúncia de uma horrenda tragédia cujas causas e consequências não ignora.