18 Abril 2016
Em tempos de crises política e econômica, é possível preservar a felicidade? Autores de um recém-lançado livro sobre o tema, Mario Sergio Cortella, Frei Betto e Leonardo Boff explicam que sim, pela escuta e conciliação – conceitos difíceis no Brasil de hoje, mas que apontam a única saída possível
Não anda fácil ser feliz no Brasil, e está assim não é de hoje. Há uma paralisia política que parece se arrastar desde as eleições, um Congresso retrógrado em que os parlamentares (60% deles investigados por crimes) se ouriçam pra próxima boquinha, o FMI citando um poeta pra anunciar que “ventos gelados” carregarão o desemprego no País às alturas, e que a economia acumulará rombos pelo menos até 2020. Pra onde correr?
Nem pro boteco adianta, porque lá também o assunto é crise – econômica, política, a angustiante sensação de que o País parou. Dá pra ser feliz no meio disso tudo? Que fazer com os inevitáveis convites a discussões, recolher-se ou confrontar? A satisfação de atacar quem pensa diferente (“fascista!”, “petralha!”, “coxinha!”) nos faz mais felizes? Quem responde são pensadores que conhecem o impacto de questões como essas no dia a dia dos brasileiros – material e espiritual. Um é ex-monge carmelita descalço, outro é frade dominicano, e o terceiro é teólogo. Mário Sérgio Cortella, Frei Betto e Leonardo Boff, três religiosos, três filósofos, todos autores de dezenas de livros, e que se uniram para escrever sobre um tema que – de Freud a São Tomás de Aquino, todos concordam – está na raiz das decisões humanas.
No mês passado, os três lançaram juntos o livro Felicidade, Foi-se Embora? (Vozes), que apresenta reflexões sobre ser feliz que ajudam a manter a sanidade no atual momento do País. Ex-secretário de Educação de São Paulo e discípulo de Paulo Freire, Cortella ressalta a importância de evitar a cegueira das convicções, quaisquer que sejam. Frei Betto, assessor durante 22 anos da Pastoral Operária do ABC e de outros inúmeros movimentos sociais, fala da inutilidade da alienação durante as crises. E Leonardo Boff, um dos mais destacados teólogos brasileiros, professor emérito de Ética, Filosofia da Religião e Ecologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, defende a importância da escuta, mesmo em meio à gritaria.
Em tempos de um Brasil dividido por muros reais e metafóricos que nos impedem de ouvir o lado de lá, os três religiosos oferecem, nesta entrevista ao Aliás, ideias que remetem à – para eles – única saída possível: a conciliação.
A entrevista é de Vitor Hugo Brandalise, publicada pelo jornal O Estado de S.Paulo, 17-04-2016.
Eis a entrevista.
Como preservar a felicidade em dias de crise política e recessão econômica?
Mario Sergio Cortella: Sendo a felicidade uma ocorrência eventual, e não estado contínuo, os tempos atuais podem dificultar sua eclosão nos momentos favoráveis. Mas não é impeditivo que nos felicitemos quando a ocasião desponta.
Frei Betto: Em tempos de crise e de recessão muitos prazeres se tornam difíceis a muitas pessoas, como ir ao restaurante, comprar roupas, viajar. Porém, a felicidade não resulta da soma dos prazeres. É um estado de espírito que nos impregna de bem-estar interior, de plenitude de alma, e isso brota do sentido que imprimimos às nossas vidas. Portanto, em tempos de crise são felizes os militantes da utopia.
Leonardo Boff: Ser feliz num mundo infeliz exige arte e conhecimento da condição humana, que é sempre contraditória. Antes de mais nada cabe responder: a política está na minha vida ou minha vida está na política? Creio que devemos optar pela segunda resposta: a política está na minha vida com a consciência de que tudo é político, mas o político não é tudo. Há outras dimensões da vida, como o abraço da pessoa amada, o olhar encantado da paisagem à minha frente. Esses fatos me enchem de enternecimento e me fazem discretamente feliz, apesar da infelicidade da política.
Em dias de divisão no País, a satisfação que muitos sentem ao atacar quem pensa diferente os torna mais felizes?
MSC: Alegria e euforia esgotam a essência da felicidade. Afinal, até drogas podem induzir a um inintencional estado eufórico. Por isso, a satisfação pelo sofrimento alheio está mais no campo da distorção da integridade do que no virtuoso prazer advindo de vencer sem humilhar e de derrotar sem ofender.
FB: Quem ataca “o outro lado” com o fígado não é feliz. Quem ofende, ridiculariza, segrega, não é feliz, pois só é feliz quem se dispõe a fazer os outros felizes. Como escreveu Shakespeare, “o ódio é um veneno que se toma esperando que o outro morra”.
LB: O ser humano é uma equação nunca resolvida. Somos ao mesmo tempo dementes e sapientes, seres de amor e de ódio, de abraço e de rejeição. Devemos equilibrar a coexistência dos opostos, dar mais lugar ao amor que ao ódio, mais à dimensão de luz que à de sombras. Ser feliz depende da capacidade de realizar esse equilíbrio e não se deixar tomar pelos demônios que nos habitam. No ódio nunca há felicidade.
No seu livro, há a noção de felicidade como partilha. Nos distanciamos desse conceito?
MSC: Como lembra a canção, é impossível ser feliz sozinho, pois a felicidade é transbordamento vital que requer a partilha daquilo que vai além da borda para as pessoas que conosco convivem. Em última instância, a felicidade como partilha é o que impede que fraturemos a ideia de fraternidade.
FB: Felicidade é partilhar. Daí a etimologia do vocábulo companheiro – compartir o pão. O egoísta, o individualista são infelizes fechados em seu casulo, como lagartas condenadas a rastejar em sua mesquinhez. Aristóteles diz que para ser feliz é preciso ter amizades. E isso requer tolerância e respeito à diferença, sem fazer dela divergência.
LB: A partilha não é algo que podemos ter ou não ter. Ela é fundamental, somos todos interdependentes e parte de redes de conexões, um ajudando o outro e partilhando os meios de vida. Foi a partilha que nos permitiu dar o salto da animalidade à humanidade. Quando nossos ancestrais antropoides saíam em busca de alimento, o traziam para o grupo e o partilhavam, ao contrário do que faz a maioria dos animais. A sociedade humana está fundada na partilha de todos com todos, pelo bem comum. Porque isso não ocorre, especialmente nas sociedades capitalistas, nas quais cada um quer ser feliz individualmente, elas são sociedades rompidas, com inomináveis injustiças sociais, como vemos hoje. Não temos só fome de pão e de bens materiais, mas muito mais fome de beleza, de amar e de ser amados. Isso não se compra nem se vende no mercado, mas se constrói a partir do coração.
Há casos de familiares e amigos que brigaram, ou evitam falar de política. Se a discordância é grande, é melhor não discutir e proteger os vínculos? E como fazer quando decidir debater?
MSC: Se a discordância, saudável quando a intenção é crescer reciprocamente, se transforma em dilapidação da harmonia, o melhor é adiar até que haja condições mais favoráveis. Mas se a decisão for conversar, um final feliz só acontece quando, ao final de um debate, os envolvidos estão melhores nas argumentações e mais fundamentados nas convicções. Por isso, é preciso, antes de começar, verificar qual a intenção do debate e se quem nele se envolve está disposto a alterar pontos de vista. Do contrário, nem comece.
FB: Melhor evitar o tema do que cortar vínculos afetivos, especialmente quando os interlocutores não têm condições de debater em nível racional e resvalam para o emocional. Prefiro perder o tema a perder a amizade. Caso opte por debater, é preciso, como em jogo de cartas, definir antes as regras básicas – vamos conversar racionalmente. Um e outro expõem seus argumentos. Caso o racional seja inundado pelo emocional, poremos ponto final.
LB: A amizade é um valor maior do que qualquer ideologia. As pessoas têm de ser tolerantes ou não abordar temas que criem tensões. Mas se decidirem falar, primeiramente, devemos escutar o outro sem logo interrompê-lo. Em seguida usar mais a argumentação que a comoção. Mais do que querer convencer o outro, se esforce para tornar clara sua posição. E nunca esqueça de colocar uma pitada de humor, pois ele distende as exaltações.
Muitos falaram em “deixar o país”. É uma forma de preservar a felicidade?
MSC: Há uma sábia máxima: o melhor lugar é ser feliz. Por isso, a felicidade longe de casa é estranha à concepção de “casa”, isto é, o lugar onde vivo. Se for longe de casa, de nada adianta mudar de casa, pois vou junto.
FB: A felicidade ou está em nosso coração ou não está em lugar nenhum. Ninguém foge de si mesmo. “Deixar o país” é, a meu ver, ficar ainda mais infeliz, pois nós somos também a terra em que nascemos. E se afastar dela é sempre uma amputação da alma.
LB: A fuga é ilusória, pensando que circunstâncias exteriores definem o nível de nossa felicidade. Essa pessoa é alienada de si mesmo, não se conhece suficientemente. Se não nos guiarmos pela aceitação do outro, podem nos colocar no Jardim do Éden e ainda assim seremos infelizes.
Um trecho do livro diz que “para muitas pessoas o sentido da existência se dá no amargor”. Crises são propícias à multiplicação de pessoas assim?
MSC: Pessoas que elegem a amargura como seu estado usual de espírito encontram nesse consolo a possibilidade de justificarem a inação e a atitude inerte. É sempre mais fácil amaldiçoar a escuridão do que procurar acender velas.
FB: Quem faz da amargura o sentido da existência está condenado ao inferno sartriano. É um infeliz que faz infeliz quem o rodeia. E que deleita-se com o sofrimento alheio. Assim, é impossível ser feliz. Vive armado e não amado.
LB: As pessoas são amargas porque não aceitam coisas que vão contra seus desejos. Os psicólogos dizem que essas pessoas estão rejeitando dimensões de si mesmas que não acolhem com naturalidade.
Quando é saudável se isolar? Como saber se é o momento de se recolher?
MSC: Machado de Assis lembrava que “nem sempre recuar é fugir”. Em muitas situações os recuos ou o recolhimento é movimento estratégico para impedir ou reduzir perdas. O momento do recolhimento é aquele em que a convivência conflitiva transforma-se mais em um encargo do que em um patrimônio.
FB: Eu me recolho 120 dias por ano para orar, meditar e escrever. O isolamento faz bem à alma, pois favorece o encontro consigo mesmo e, no caso de quem tem fé, com Deus.
LB: Em política sempre é bom manter certa distância porque ela é o lugar natural do enfrentamento de opiniões. Se há pessoas fanatizadas demais por seu candidato é melhor ter compaixão e silenciar. O silêncio às vezes coloca o outro em constrangimento que o leva a mudar de assunto.
Hoje todos têm muitas certezas. Mas nem por isso parecem mais felizes. Em que medida convicções são importantes para a felicidade?
MSC: Um ser humano saudável é aquele que tem suas convicções como raízes e não como âncoras. A raiz alimenta, enquanto a âncora imobiliza. Por isso, quando me nutro em minhas convicções, em vez de nelas me prender, os momentos de felicidade são mais afloráveis.
FB: Cada um deve ter suas convicções e o direito de expressá-las. Mas isso em clima de tolerância, atitude de escuta, respeito à opinião diferente. Desconfio de quem demonstra “muitas certezas”. Em geral são pessoas inseguras e, como tais, agressivas. E de baixa autoestima.
LB: Creio que vale sempre ser verdadeiro e transparente, ouvir mais do que falar. E procurar tirar lições de nossos fracassos e das divergências, com humildade.
As muitas notícias negativas que aparecem em crises podem minar a felicidade? É preferível se alienar para se preservar?
MSC: Alienação não é trilha para a felicidade. A “santa ignorância” é expressão de robotização e inconsciência, o que pode gerar ilusão, muito diversa da felicidade como vibração intensa e concreta na vivência.
FB: Inútil bancar o avestruz e enfiar a cabeça na areia. O importante é saber lidar com as notícias e situações conflitivas sem perder a paz de espírito.
LB: O silêncio é sempre ouro. Ele permite escutar o próprio coração. O excesso de notícias geralmente embaralha a cabeça e não raro excita a curiosidade vã que não ajuda em nada. Bem dizem os homens do Tao oriental: quem sabe não fala, quem não sabe fala. É sempre útil o nobre silêncio.
Caso perdure o ambiente ruim, pode haver reflexo na saúde das pessoas?
MSC: Somos, cada uma e cada um, uma totalidade integrada. Tudo que afeta e perturba nossa harmonia, pode nos adoecer. A única forma de dificultar a somatização negativa é a consciência clara do que é que de fato nos atinge e procurar meios de driblar aquilo que, sendo difícil, não é por isso invencível.
FB: Quem se deixa impregnar de raiva corre o risco de somatizar tais energias negativas e adoecer. Para se equilibrar em qualquer situação de conflito sugiro o que me salvou nos quatro anos de prisão na ditadura militar: meditação. Ela, sim, nos torna mais felizes. E me faz feliz ter imprimido à minha vida um sentido altruísta, na busca de um Brasil e de um mundo melhores. Sei que não participarei da colheita, mas faço questão de morrer semente.
LB: A Terra como casa comum e nossa mãe, nas palavras sábias do papa Francisco, está doente porque nós estamos doentes. Mantemos com ela uma relação de exploração ilimitada e a maltratamos na água, ar e solo. Com o Brasil ocorre o mesmo: tornamo-nos uma sociedade doente. Mas, na medida em que tomamos consciência das relações sociais injustas, marcadas pela corrupção e por um Estado de negociatas, sentimos que devemos mudar. As manifestações desde 2013 nos passam esta mensagem: não queremos mais o Brasil que herdamos. Queremos outro Brasil, de sociedade participativa e menos desigual, que nos permita ser um pouco felizes nesta curta passagem pela vida.
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