15 Abril 2016
O que o magistério aceitou na Amoris laetitia é traduzir a substância da antiga doutrina do depositum fidei. A tradição é frágil, é claro, mas sempre deve ser dinâmica. Ela morre nas mãos de quem não sabe lidar com ela, por exemplo, colocando-a em um relicário; ao contrário, ela precisa ser tornada dinâmica, na polaridade entre Cristo e a Igreja.
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, leigo casado, professor do Pontifício Ateneu S. Anselmo, de Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, de Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, de Pádua.
O artigo foi publicado no seu blog Come Se Non, 13-04-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Diante da exortação apostólica Amoris laetitia , somente pessoas de experiência muito pequena e de medos muito grandes poderiam falar de "fim do magistério" ou mesmo apenas de "magistério necessitado de estruturação teológica"! Certamente, não é o caso de lamentar uma "indeterminação" ou uma "contorção" ou, pior, uma "ambiguidade" do magistério aqui exercido!
Seguramente, com base no ditado da exortação, é totalmente compreensível que fiquemos "desorientados" por um "uso do magistério" com o qual não estávamos mais acostumados, ao menos há algumas décadas. Porque se trata de um exercício do magistério, ao mesmo tempo, mais antigo e mais novo do que conhecíamos.
De fato, ele é concebido como um ato de autoridade, no qual aparece uma série de características fundamentais das prerrogativas do bispo de Roma, que a Igreja conheceu ao longo da história, mas que – novissime – parecia ter esquecido.
Tentemos fazer aqui uma breve exposição delas, sem pretensão de completude:
a) Uma autorreflexão do magistério sobre si mesmo
Nos últimos 20 anos, de modo insistente, tivemos que ler muitas proposições magisteriais que exerciam a autoridade negando a si mesmas toda autoridade! Em outras palavras, elas não reconheciam a si o poder de decidir qualquer coisa e, por assim dizer, reivindicavam a autoridade de não ter autoridade: apontava-se, nesses casos, para uma "evidência da tradição" que parecia impor à Igreja – simplesmente e tout court – o "status quo", subtraindo dela todo poder de mudar qualquer coisa.
Havia apenas uma grande fragilidade a se confessar e nenhuma dinâmica a se promover: nenhuma ordenação sacerdotal de mulheres, nenhuma administração da unção dos enfermos se não por parte de presbíteros e bispos, nenhuma exclusividade a ser reservada à Reforma Litúrgica que não pudesse impedir que o rito anterior valesse como se nada tivesse acontecido, nenhuma possibilidade de mediar a lei natural, a lei divina ou a palavra de Cristo. Todos eram "dados puros", que se impunham por si sós, simplesmente a serem assumidos, segundo o princípio da autoridade.
Em vez disso, as palavras que lemos no início da Amoris laetitia soam assim:
"Recordando que o tempo é superior ao espaço, quero reiterar que nem todas as discussões doutrinais, morais ou pastorais devem ser resolvidas através de intervenções magisteriais. Naturalmente, na Igreja, é necessária uma unidade de doutrina e práxis, mas isso não impede que existam maneiras diferentes de interpretar alguns aspectos da doutrina ou algumas consequências que decorrem dela. Assim há de acontecer até que o Espírito nos conduza à verdade completa (cf. Jo 16, 13), isto é, quando nos introduzir perfeitamente no mistério de Cristo e pudermos ver tudo com o seu olhar" (AL 3).
É preciso notar que, enquanto a autolimitação do magistério que tivemos que registrar com João Paulo II e com Bento XVI estava propenso a encerrar os debates, a reprimir a liberdade de palavra, a marginalizar a dissidência, neste caso, Francisco quer quase estimular a discussão, renunciando a intervir com um "pronunciamento resolutivo".
No primeiro caso, a autoridade está pela proteção do "status quo", enquanto, no segundo caso, a autoridade permite uma mudança e uma variação. Neste caso, poderíamos dizer, assume-se a autoridade de reconhecer outras autoridades, para deixar iniciar, no tempo, processos de autoridade.
O princípio da superioridade do tempo sobre o espaço é, na realidade, uma precisa e poderosa teoria do exercício do magistério. Que reconhece a prioridade paciente do fato de iniciar processos inclusivos, em vez da de ocupar espaços excludentes e exclusivos. "Dar prioridade ao tempo é ocupar-se mais com iniciar processos do que possuir espaços" (Evangelii gaudium, 223).
Por outro lado, no número anterior, o texto da Amoris laetitia afirmara:
"A a complexidade dos temas tratados mostrou-nos a necessidade de continuar a aprofundar, com liberdade, algumas questões doutrinais, morais, espirituais e pastorais. A reflexão dos pastores e teólogos, se for fiel à Igreja, honesta, realista e criativa, ajudar-nos-á a alcançar uma maior clareza" (AL 2).
O convite a aprofundar, o debate desejável entre pastores e teólogos se torna "exercício de magistério de autoridade". Essa é uma mudança estrutural do modo de entender a função magisterial. Ela conserva a Igreja na verdade não através de um impedimento, mas sim com o favorecimento da escuta recíproca, do debate e do diálogo.
b) Uma sucessão histórica e argumentativa de autoridade
A Amoris laetitia certamente não cai do céu! Ela está no fim de um longo desenvolvimento, que já começou em 1880 e, depois, pouco a pouco, passando pela Casti connubii e Gaudium et spes, chegando finalmente à Humanae vitae e à Familiaris consortio.
Mas reconhecer essa dívida objetiva não significa absolutamente inverter as prioridades a ponto de pensar que se deva interpretar a história ao contrário. Não se interpreta a Constituição italiana à luz do Estatuto Albertino, nem se lê a Dei Verbum à luz da Dei Filius, mas vice-versa.
Certamente, sem essas premissas, a Amoris laetitia não poderia existir. Mas, normativamente, é a Amoris laetitia que redefine a linguagem e a disciplina da Familiaris consortio, e não vice-versa! Como não faltaram aqueles que – de modo tão arriscado quanto surpreendente – ousaram tentar inverter as coisas, é preciso reiterar que, ao menos nesse plano, a Amoris laetitia está inserida no leito normal do magistério eclesial, com a sua hierarquia das fontes.
E é singular, nesse caso, que sejam homens da hierarquia que não reconhecem a hierarquia. Para contestar seriamente tudo isso, seria necessário poder provar ou que a Amoris laetitia não é uma exortação apostólica pós-sinodal (exatamente como a Familiaris consortio, mas 35 anos depois), ou que a Familiaris consortio, na realidade, é um texto de 2019!
Mas haveria outra alternativa: conseguir demonstrar, com oportuna retrodatação, que a Amoris laetitia é um texto de 1980, de modo que a Familiaris consortio, de 1981, possa ser posterior e, portanto, superior na hierarquia das fontes... Ficção por ficção, esta, ao menos, teria uma aparência própria de dignidade.
c) Uso de registros diferentes, nos diversos capítulos e dentro dos capítulos individuais
É preciso acrescentar, em honra à verdade, que o magistério de Francisco, assumindo a linha de um "pensamento incompleto" – no rastro de dois "Sínodos aproximados" – usa a "variatio" como método de exposição. Não só assume os traços do "dolce comprimento" como uma música de Schubert, mas também assume as variações contínuas do mesmo tema.
E, assim, passa de um capítulo bíblico-sapiencial a um descritivo-hermenêutico, de um "tratadinho sobre o amor" a uma refinada meditação moral, de finas distinções de teologia moral a uma parênese espiritual sobre o gerar ou sobre a espiritualidade familiar.
Em suma, quem cultiva nostalgias de definições dogmáticas e de cânones de condenação, depois da grande desilusão do Vaticano II e depois de algumas substanciais recuperações nos últimos 30 anos, agora posso dizer, desconsolado, para si mesmo: "Mas onde foi parar o magistério que dava medo? E esse magistério sem cólera, mas tão escandalosamente feliz e alegre, ainda é magistério?".
Esse é o ensinamento da misericórdia, com que João XXIII começou o Concílio Vaticano II, com o qual Paulo VI o levou a termo e ao qual Francisco se reconecta com uma nova, corajosa e profética continuidade. Não há definições. Não há condenações.
Ao contrário, a única proposição que se pode e se deve condenar é a própria exclusão: "A Igreja tem a missão de anunciar a misericórdia de Deus, coração pulsante do Evangelho, que por meio dela deve chegar ao coração e à mente de cada pessoa. A Esposa de Cristo assume o comportamento do Filho de Deus, que vai ao encontro de todos sem excluir ninguém" (Misericordiae vultus, 12)
d) E a doutrina? Muda ou não muda?
De tudo o que dissemos até aqui, decorre, também, um modo de permanecer fiel ao "depositum fidei", à substância da antiga doutrina, sem mudar o seu conteúdo, mas oferecendo uma boa tradução dela. A tradução é serviço ao conteúdo, mediante outro "revestimento".
Francisco traduz a tradição. Ele sabe que é o único modo para ainda lhe dar vida, força, impulso, frescor. Traduzir não significa mudar, mas significa transmitir. Para comunicar a tradição, é preciso traduzi-la.
O que o magistério aceitou na Amoris laetitia é traduzir a substância da antiga doutrina do depositum fidei. A tradição é frágil, é claro, mas sempre deve ser dinâmica. Ela morre nas mãos de quem não sabe lidar com ela, por exemplo, colocando-a em um relicário; ao contrário, ela precisa ser tornada dinâmica, na polaridade entre Cristo e a Igreja.
Desse modo, entre fragilidade e dinamicidade, a tradição do amor e do matrimônio, da família e da geração não é mais espaço a se ocupar, mas processo a se acompanhar, sobre o qual é preciso discernir e integrar. Obra-prima de doutrina salvaguardada mediante uma corajosa tradução, realizada pelo papa em comunhão com o Sínodo dos bispos. Isso é o que tem a força para "dar estrutura teológica" ao magistério papal: no que diz respeito a esse grande evento eclesial e colegial, certamente não se espera que o magistério papal possa receber uma estruturação adequada do zelo bem-intencionado, mas solitário e unilateral, de uma autoridade embora valente ou de um superequipado escritório da Cúria!
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Descobrindo a "Amoris laetitia": como muda o magistério e como se traduz a doutrina. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU