13 Abril 2016
A porta, já barrada, agora está entreaberta. A partir de baixo, o povo cristão a abre – e a mantém aberta – para que a fé no Evangelho inspire na Igreja a vida cotidiana das famílias.
Publicamos aqui a análise do movimento Nós Somos Igreja Itália sobre a exortação apostólica pós-sinodal Amoris laetitia, do Papa Francisco. O artigo foi publicado no site do movimento, 09-04-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
A bastante longa exortação apostólica Amoris laetitia inicia no parágrafo 3 com uma afirmação que indica o percurso que deverá ser percorrido: "Quero reiterar que nem todas as discussões doutrinais, morais ou pastorais devem ser resolvidas através de intervenções magisteriais. […] em cada país ou região, é possível buscar soluções mais inculturadas, atentas às tradições e aos desafios locais. De fato, 'as culturas são muito diferentes entre si e cada princípio geral (...), se quiser ser observado e aplicado, precisa de ser inculturado' (do discurso conclusivo do Sínodo de 2015)".
Essa afirmação do Papa Francisco, tão esperada, deverá ser valorizada. Depois de uma consulta difundida em todo o universo católico e de dois Sínodos, percebemos que os grandes princípios rígidos, doutrinários, exigentes podem ser bonitos de se declamar, podem dar satisfação ao sistema eclesiástico, mas não à vivência do povo cristão.
E o Papa Francisco continua duramente: "Também nos custa deixar espaço à consciência dos fiéis, que muitas vezes respondem o melhor que podem ao Evangelho no meio dos seus limites e são capazes de realizar o seu próprio discernimento perante situações onde se rompem todos os esquemas. Somos chamados a formar as consciências, não a pretender substituí-las" (n. 37). Esse é o início que depois inspira a parte final da exortação apostólica.
A realidade social que pesa sobre a família
O primeiro capítulo expõe uma rica e útil documentação sobre a família na Bíblia. Em seguida, há capítulos interessantes que, se não dizem coisas novas, porém, dão autoridade a reivindicações que, há muito tempo, eram feitas ao se falar de família. Elas tinham sido recebidas na Relatio synodi de outubro, depois de terem sido ignoradas no primeiro Sínodo de outubro de 2014.
Pensamos que a consulta da base levou a essas afirmações. De fato, trata-se uma ampla ilustração dos problemas de tipo socioeconômico diante dos quais a família se encontra um pouco por toda a parte; ela suporta todos os pesos das situações de dificuldade (trabalho, casa, migração, sujeitos frágeis e com deficiência etc.), e isso não mais somente nos países "pobres", mas agora, cada vez mais, também nos países "ricos", como consequência de uma crise pesada e difusa.
Na Evangelli gaudium em particular, estão contidas as análises e os julgamentos sobre o sistema global baseado no domínio das finanças e do dinheiro que é a causa última dos sofrimentos.
Uma família aberta e solidária
A exortação apostólica, depois, expressa uma atitude crítica em relação às culturas individualistas nas relações familiares (além das sociais), em particular, debruçando-se sobre uma forte denúncia de toda manifestação de machismo. A descrição que o texto faz, muitas vezes citando documentos do magistério, do amor que deve presidir a vida familiar vai na direção, por um lado, da compreensão da "complexidade" de tantas situações e sofrimentos (que surgiram durante o Sínodo e a consulta), por outro, da descrição das características de uma possível família aberta e solidária.
Vai-se muito além da reflexão sobre o casal (a ser preparado para o casamento), fala-se dos filhos, dos idosos, dos irmãos, das "mães solteiras, as crianças sem pais, as mulheres abandonadas que devem continuar a educação dos seus filhos, as pessoas deficientes que requerem muito carinho e proximidade, os jovens que lutam contra uma dependência, as pessoas solteiras, separadas ou viúvas que sofrem a solidão, os idosos e os doentes que não recebem o apoio dos seus filhos, até incluir no seio dela 'mesmo os mais desastrados nos comportamentos da sua vida'" (n. 197). Em suma, o texto tem uma acepção ampliada dos sujeitos da família, valoriza-se a adoção, sempre que possível (n. 179).
Um capítulo inteiro, o sétimo, é dedicado à educação dos filhos, dizendo coisas úteis sobre o papel dos pais para uma relação nem autoritária nem laxista. Em suma, a palavra do papa dá indicações positivas totalmente distantes de práticas educativas tolerantes em relação a toda cultura midiática de massa, desprovida de valores, totalmente vivida no presente, arrastada às vezes por comportamentos desviantes.
Algumas observações críticas
Depois, na exortação, há os problemas controversos e delicados, sobre os quais nos permitimos expressar algumas observações. Sobre algumas questões, o Papa Francisco reitera a linha tradicional, sem se deter nela, como se dissesse que não quer enfatizar a sua importância, porque já são coisas definidas e, portanto, não necessitariam grandes discussões (para nós, na verdade, isso não parece totalmente verdadeiro).
Trata-se do aborto (n. 83), da eutanásia e do suicídio assistido (n. 48). Sobre o gênero (n. 56), o Papa Francisco repete o que já disse outras vezes. Já motivamos amplamente porque não estamos de acordo sobre esse ponto (ver documento do movimento disponível aqui, em italiano).
Combate-se um suposto "inimigo", apresentado de modo caricatural; em vez disso, é preciso valorizar a riqueza da diferença sexual e educar na família e nas escolas para se aceitar serenamente a diversidade.
A Humanae vitae é retomada em dois pontos (n. 68 e 222), mas não na sua indicação normativa explícita sobre a proibição da regulação artificial de natalidade. Esta é uma encíclica já comprometida na sensibilidade comum do fiel; parece-nos que teria sido melhor não citá-la e deixá-la totalmente decair.
A passagem decididamente mais frágil da exortação nos parece ser a dos parágrafos 250-251 sobre a questão homossexual. Parece que o papa, em um texto de 325 parágrafos, quer escapar como que envergonhado e em dificuldade, não dizendo nada mais do que um convite a dizer aos pais e a todos para não discriminarem os homossexuais e repetindo que não pode haver a equiparação do casal homossexual com a da família tradicional. Coisas já ditas e mais do que ditas.
Porém, no Sínodo, tinha-se falado muito disso. Porém, iniciativas de homossexuais crentes tinham tentado interagir com o Sínodo e tinham proposto com grande convicção um pertencimento completo de sua parte na Igreja, até mesmo como casais. Estamos bem distantes do famoso "Quem sou eu para julgar?". No entanto, em relação a alguns anos atrás, ao menos, o problema foi posto, a realidade homossexual por séculos tinha sido escondida e estigmatizada.
No parágrafo 241, a exortação considera em certos casos necessária a separação entre os cônjuges na presença de violência ou de exploração contra os sujeitos mais frágeis (em geral, mulheres e crianças). Especialmente nesses casos, mas também em outros, perguntamo-nos quando a Igreja terá a coragem de abandonar a linha da declaração de nulidade (aliás, tornada muito mais simples pelos dois motu proprio de setembro passado) para se decidir a dizer que, desaparecendo o consentimento (sobre o qual se fundamentava o matrimônio e o sacramento), deve-se reconhecer a dissolução do vínculo, sem buscar novamente uma nulidade na origem que nunca existiu.
Discernimento e acompanhamento para os divorciados recasados
Enfim, as situações "irregulares", o ponto mais esperado do documento. As uniões de fato e os casais apenas civilmente casados são "desvencilhados", como já está no ar. São ainda casais de segunda categoria, mas, de algum modo, aceitos, e se solicita o seu percurso para o matrimônio sacramental. Esse é um objetivo passo à frente que uma realidade difusa e a consulta de base, de algum modo, impuseram.
Para os divorciados recasados, a linha, talvez, seja a mais avançada possível nesta situação da Igreja, a partir dos debates dos dois Sínodos. Eles "não estão excomungados" (n. 243) e fazem parte plenamente da Igreja. As suas situações são as mais diversas; aflora aqui o uso da categoria da "complexidade" contra as simplificações, contra a norma válida sempre para todos em todo o lugar e em todo o tempo.
No parágrafo 305, diz-se: "Um pastor não pode se sentir satisfeito apenas aplicando leis morais àqueles que vivem em situações 'irregulares', como se fossem pedras que se atiram contra a vida das pessoas. É o caso dos corações fechados, que muitas vezes se escondem até por detrás dos ensinamentos da Igreja 'para se sentar na cátedra de Moisés e julgar, às vezes com superioridade e superficialidade, os casos difíceis e as famílias feridas'".
Quem se encontra nessa condição – escreve o papa – é convidado ao discernimento e ao acompanhamento pastoral. A consciência, então, tem um papel determinante. Pois bem, mas resta o problema da aceitação plena na comunidade, porque uma decisão em consciência de se aproximar à Eucaristia já é praticada de modo bastante frequente por aqueles que se encontram na condição de divorciado recasado. Sobre o ponto da aceitação na comunidade, o texto é vago e ambíguo. O problema não foi abordado, embora se tenha falado muito dele.
No parágrafo 299, fala-se de "diferentes serviços eclesiais"; Quais são? Poderão ensinar o catecismo? Fazer parte do conselho pastoral paroquial? Ensinar religião nas escolas? Ser padrinhos de batismo? E quando o divorciado recasado poderá celebrar as segundas bodas como na Igreja Ortodoxa?
Por fim, há o problema da aceitação plena na celebração eucarística, sem soluções "escondidas". Parece-nos precisamente modesta a solução de falar a respeito apenas em uma nota de rodapé, a 351, onde se diz: "Em certos casos, poderia haver também a ajuda dos sacramentos. Por isso, 'aos sacerdotes, lembro que o confessionário não deve ser uma câmara de tortura, mas o lugar da misericórdia do Senhor' [Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de 2013), 44: AAS 105 (2013), 1038]. E de igual modo assinalo que a Eucaristia 'não é um prêmio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os fracos' [Ibid., 47: o. c., 1039]".
As tarefas do povo cristão
Em geral, parece-nos que vamos para a frente, apesar de alguns limites que indicamos. A misericórdia, as relações fraternas na família e fora dela, o predomínio da consciência presidem esse documento. Caberá ao povo cristão praticar novas estradas que agora não estão mais fechadas como antes.
A repressão de toda reflexão teológica ou em toda proposta pastoral terminou. Queremos convidar a todos nós, os "nossos" teólogos e os nossos agentes de pastoral a não serem tímidos, a continuarem seguindo em frente, a proporem "soluções mais inculturadas", a impedirem que na Igreja as aberturas sejam geridas de forma barata e que cada paróquia ou cada diocese continue na sua cansada administração comum, esperando que esse momento particular na vida da Igreja passe.
Nós Somos Igreja
Roma, 9 de abril de 2016
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"Amoris laetitia": a porta, já barrada, agora está entreaberta. A análise do Nós Somos Igreja Itália - Instituto Humanitas Unisinos - IHU