Por: André | 04 Abril 2016
O ecumenismo do Papa Francisco tem um raio de ação realmente muito longo. Encontrou-se com o patriarca ortodoxo de Moscou, irá à Suécia para participar da celebração do quinto centenário de Lutero, é amigo de muitos líderes pentecostais e tem a simpatia inclusive dos seguidores do arcebispo hiper tradicionalista Marcel Lefebvre.
A reportagem é de Sandro Magister e publicada por Chiesa.it, 01-04-2016. A tradução é de André Langer.
O último é o dado mais surpreendente, porque, no campo católico, a hostilidade contra os lefebvrianos é muito mais intolerante entre aqueles que se jactam de ter um espírito ecumênico e de misericórdia.
Com efeito, vemos reproduzir-se contra os lefebvrianos, dado que eles se apresentam como “verdadeiros” católicos, o mesmo mecanismo que faz com que os católicos de rito oriental sejam mal vistos pelos ortodoxos, quem usam para designá-los o termo pejorativo “uniatas”. Mal vistos porque são muito similares a eles, como um inimigo em casa.
Já Bento XVI denunciou esta distorção, na carta aberta redigida por ele em 2009 a todos os bispos do mundo depois da explosão de protestos por sua decisão de levantar a excomunhão dos quatro bispos lefebvrianos da Fraternidade São Pio X.
O Papa Francisco fez um gesto de grande abertura, quando, em setembro passado, autorizou durante o Jubileu, todos os fiéis católicos que desejarem, confessar-se também com os padres da Fraternidade, recebendo deles a absolvição “válida e licitamente”.
Basta pensar, para compreender a novidade deste gesto de Francisco, na proibição – sob pena de excomunhão imposta aos seus fiéis em 14 de outubro de 2014 pelo bispo de Albano, Marcello Semeraro – de participar das missas e dos sacramentos celebrados pela Fraternidade São Pio X. Semeraro não é um bispo qualquer, é também o secretário do Conselho dos Nove Cardeais que assistem o Papa no governo da Igreja.
A diferença em relação ao Papa Bento é que Francisco não sofreu uma enxurrada de críticas e impropérios por parte dos defensores do ecumenismo devido aos seus gestos de abertura.
Não apenas isso. À indulgência demonstrada pelos defensores do ecumenismo pelo gesto de Francisco acrescentou-se um sinal de estima sem precedentes por parte do próprio superior geral da Fraternidade São Pio X, o bispo Bernard Fellay.
Fellay formulou um juízo detalhado sobre Francisco em uma longa entrevista gravada no dia 04 de março em seu quartel general em Menzingen, na Suíça, e postada na rede em vários idiomas durante a Semana Santa.
Mais do que de uma entrevista, trata-se de uma intervenção pessoal de Fellay, que faz o balanço das seguintes questões:
1) As relações da Fraternidade São Pio X com Roma desde 2000.
2) As novas propostas de Roma estudadas pelos superiores maiores da Fraternidade São Pio X.
3) “Ser aceitos assim como somos”, sem ambiguidades nem compromissos.
4) O Papa e a Fraternidade São Pio X: benevolência paradoxal.
5) A jurisdição concedida aos sacerdotes da Fraternidade São Pio X: consequências canônicas.
6) As visitas dos prelados enviados por Roma: algumas questões doutrinais abertas.
7) O estado atual da Igreja: inquietudes e esperanças.
8) O que devemos pedir à Santíssima Virgem?
Todo o texto é de considerável interesse, enquanto expressa o ponto de vista mais confiável, completo e atualizado da comunidade lefebvriana sobre suas relações com Roma.
Mas, as passagens mais surpreendentes são precisamente aquelas em que Fellay explica a benevolência de Francisco com a Fraternidade, benevolência que define como “paradoxal”, porque contrasta com as orientações predominantes de seu pontificado, que vão no sentido contrário.
Esta análise que Fellay faz encontra-se no ponto 4 do texto, reproduzido na íntegra na sequência.
Essa análise é seguida por outra passagem, tirada do ponto 6, que, por sua vez, conta o desenvolvimento e o resultado das recentes visitas feitas aos seminários e a um priorado da Fraternidade, feitas por quatro enviados de Roma: “um cardeal, um arcebispo e dois bispos”, cujos nomes não são revelados.
Fellay não dá os nomes dos quatros prelados, mas que são os seguintes:
- o cardeal Walter Brandmüller, ex-presidente da Pontifícia Comissão das Ciências Históricas;
- Juan Ignacio Arrieta Ochoa de Chinchetru, da Opus Dei, secretário do Pontifício Conselho para os Textos Legislativos;
- Vitus Huonder, bispo de Coira (Suíça); e
- Athanasius Schneider, bispo auxiliar de Maria Santíssima em Astana (Cazaquistão).
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O Papa e a Fraternidade São Pio X: benevolência paradoxal, por Bernard Fellay
É preciso utilizar o termo “paradoxal”, o paradoxo de avançar rumo ao que quase poderíamos chamar de “Vaticano III”, no pior sentido que se pode dar a essa expressão, e, por outro lado, querer dizer à Fraternidade: “Aqui são bem-vindos”. Isto é verdadeiramente um paradoxo, quase uma vontade de associar os contrários.
Não creio que isto seja por ecumenismo. Alguns poderiam pensar dessa forma. Por que não creio que seja por ecumenismo? Porque basta observar a atitude geral dos bispos neste tema do ecumenismo: eles têm os braços abertos para receber todo o mundo, exceto a nós!
Em várias ocasiões, nós tentamos explicar por que fomos excluídos, dizendo: “Não tratamos vocês como os outros, porque vocês afirmam ser católicos. Ao dizer isto, geram confusão entre nós, e, portanto, não nos querem”. Nós ouvimos esta explicação muitas vezes, e ela exclui o ecumenismo. Mas se este enfoque que consiste em dizer, “aceitamos todos dentro da família”, não é aplicável no nosso caso, então, o que resta? Penso que resta o Papa.
Se, primeiramente Bento XVI e agora o Papa Francisco, não tivessem visto a Fraternidade de um modo particular, que é diferente desta perspectiva ecumênica que acabo de mencionar, penso que agora não haveria absolutamente nada. Creio que, em vez disto, estaríamos funcionando uma vez mais sob sanções, censuras, excomunhões, a declaração de cisma e tentativas de eliminar um grupo problemático.
Então, por que tanto Bento XVI como o Papa Francisco foram tão benevolentes para com a Fraternidade? Eu penso que a perspectiva de um de outro não é necessariamente a mesma.
No caso de Bento XVI, creio que se devia ao seu lado conservador, ao seu amor pela liturgia antiga, ao seu respeito pela disciplina passada que existia na Igreja. Posso afirmar que muitos, e estou falando de muitos padres, e inclusive grupos que tinham problemas com os modernistas na Igreja e que recorreram a ele quando ainda era cardeal, encontraram nele – primeiro como cardeal e depois como papa – um olhar benevolente, um desejo de proteger e ajudá-los ao menos em tudo o que fosse possível.
Quanto ao Papa Francisco, não vemos esse apego nem à liturgia nem à disciplina antiga da Igreja. Poderíamos inclusive dizer: pelo contrário, devido às suas numerosas declarações contrárias, o que torna ainda mais difícil e complicado entender esta sua benevolência.
E, no entanto, creio que existem várias explicações possíveis, mas admito que não tenho a última palavra neste tema.
Uma das explicações é a perspectiva do Papa Francisco sobre tudo o que seja marginalizado, o que ele chama de “periferias existenciais”. Não me surpreenderia se nos considerasse como uma destas periferias pelas quais tem uma preferência manifesta. E, desde esta perspectiva, utiliza a expressão: “percorrer um caminho” com as pessoas que se encontram na periferia, esperando poder melhorar as coisas. Portanto, não se trata de uma decisão estabelecida de concluir imediatamente: um processo, um caminho, para onde quer que vá..., mas ao menos se é bastante tranquilo, gentil, sem saber realmente qual será o resultado. Talvez seja esta uma das razões mais profundas.
Outra razão: vemos que o Papa Francisco critica constantemente a Igreja estabelecida, a palavra utilizada em inglês para isto é “establisment” – também é utilizada em francês de vez em quando – reprovando a Igreja por ser autocomplacente, satisfeita consigo mesma, por ser uma Igreja que já não vai em busca da ovelha perdida, a ovelha que sofre, em todos os âmbitos, pela pobreza ou mesmo fisicamente...
Mas, vemos no Papa Francisco que esta inquietude, apesar das evidentes aparências, não é apenas uma preocupação sobre as coisas materiais... Vemos claramente que quando diz “pobreza” refere-se também à pobreza espiritual, a pobreza das almas que se encontram em pecado e que deveriam ser tiradas desse estado e conduzidas novamente para o Bom Deus.
Mesmo que nem sempre o expresse claramente, podemos encontrar várias expressões que o indicam. E nessa perspectiva, vê na Fraternidade uma comunidade muito ativa, isto é, que busca, que vai em busca das almas, que tem esta preocupação pelo bem espiritual das almas, e que está pronta para colocar mãos à obra e trabalhar para isso. Ele conhece dom Lefrebvre, leu duas vezes a biografia escrita por dom Tissier de Mallerais, o que mostra, sem dúvida alguma, um interesse; e eu penso que ele gostou.
E também os contatos que ele estabeleceu na Argentina com os nossos confrades, em quem viu espontaneidade e também franqueza, pois não escondemos absolutamente nada. Claro que tentávamos conseguir algo para a Argentina, onde tínhamos dificuldades com o Estado em matéria de conseguir autorizações para residências, mas não escondemos nada, não tentamos fugir de nenhum problema, e creio que isso lhe agradou. Este, talvez, seja o lado humano da Fraternidade, mas vemos que o Papa é muito humano, ele dá muita importância a este tipo de considerações, e isto pode explicar, ou poderia explicar, uma certa benevolência da sua parte.
Reitero mais uma vez que não tenho a última palavra neste tema e, sem dúvida, por trás de tudo isto está a Divina Providência, que dispõe as coisas de tal maneira que coloca bons pensamentos na cabeça do Papa, que, em muitos pontos, nos alarma tremendamente, e não apenas a nós. Pode-se dizer que qualquer um que seja mais ou menos conservador dentro da Igreja está assustado com o que está acontecendo, com as coisas que são ditas, e, no entanto, a Divina Providência dispõe delas para nos fazer superar esses desafios de uma maneira muito surpreendente.
Muito surpreendente, porque está claro que o Papa Francisco deseja deixar-nos viver e sobreviver. Disse inclusive a quem estiver disposto a escutá-lo que jamais prejudicaria a Fraternidade. Também disse que somos católicos. Negou-se a nos condenar como cismáticos, dizendo: “Não são cismáticos, são católicos”, mesmo se depois utilizou uma expressão um tanto enigmática, a saber: que estamos a caminho da plena comunhão.
Gostaríamos de ter alguma vez uma definição clara do termo “plena comunhão”, porque está claro que não corresponde a nada preciso. É um sentimento... não se sabe bem o que é.
Inclusive recentemente, em uma entrevista concedida por dom Pozzo sobre nós, ele retoma uma citação que atribui ao próprio Papa – podemos, portanto, considerá-la como uma postura oficial – o Papa, falando com a Ecclesia Dei, confirmou que somos católicos a caminho da plena comunhão. E o bispo Pozzo esclarece como esta plena comunhão pode ser alcançada: aceitando a forma canônica, o que é bastante surpreendente, uma forma canônica resolveria todos os problemas referentes à comunhão!
Um pouco mais adiante, na mesma entrevista, afirma que esta plena comunhão consiste em aceitar os grandes princípios católicos. Com outras palavras, os três níveis de unidade na Igreja, que são a fé, os sacramentos e o governo. Quando fala da fé, refere-se propriamente ao magistério. Mas nós nunca colocamos em dúvida nenhum destes elementos. E, portanto, nunca colocamos em dúvida a nossa plena comunhão, mas eliminamos o adjetivo “pleno”, para dizer simplesmente: “Estamos em comunhão de acordo com o termo clássico usado na Igreja; somos católicos. Se somos católicos, nós estamos em comunhão, porque a ruptura da comunhão é propriamente um cisma”.
As visitas dos prelados enviados por Roma: algumas questões doutrinais abertas
Estas visitas foram muito interessantes. Obviamente, algumas pessoas na Fraternidade viram-nas com um pouco de receio: “O que estes bispos estão fazendo em nossa casa?” Bom! Essa não era a minha perspectiva. [...] Eu lhes disse várias vezes: “Venham nos ver”. Nunca quiseram. Então, de repente, [...] um cardeal, um arcebispo e dois bispos vieram nos ver, nos visitar, em diversas situações, algumas vezes nos seminários, e também em um dos priorados. [...]
A primeira coisa que comentamos – tratava-se de uma linha oficial ou sua opinião pessoal? Eu não sei, mas é um fato –, todos disseram: “Estas discussões estão ocorrendo entre católicos; isto não tem nada a ver com discussões ecumênicas; estamos entre católicos”. Portanto, desde o início abandonamos todas aquelas ideias, tais como: “Não estão completamente dentro da Igreja, estão a meio caminho, portanto, estão fora – só Deus sabe aonde! – cismáticos...”. Não! Estamos falando entre católicos. Este é o primeiro ponto, o que é muito interessante, muito importante. Apesar do que, em alguns casos ainda hoje se diz em Roma.
O segundo ponto – que, na minha opinião, é ainda mais importante – é que os temas abordados nestas discussões são temas os clássicos nos quais sempre houve fracassos. Quer se trate de um assunto de liberdade religiosa, colegialidade, ecumenismo, a nova missa, ou inclusive os novos ritos dos sacramentos... Bom, todos nos disseram que estas discussões eram sobre temas abertos.
Creio que esta reflexão é fundamental. Até agora, sempre insistiram em deixar bem claro que tínhamos que aceitar o Concílio. É difícil determinar exatamente o verdadeiro alcance desta expressão “aceitar o Concílio”. O que significa? Porque é um fato que os documentos do Concílio são completamente desiguais, e que sua aceitação se faz com um critério gradual, segundo uma escala de obrigatoriedade. Se um texto é um texto de fé, existe uma obrigação simples e pura. Mas quem pretende, de um modo totalmente errado, que este concílio é infalível, exigem uma submissão total a todo o Concílio. Então, se é isso que significa “aceitar o Concílio”, dizemos que não o aceitamos. Precisamente porque o que negamos é sua infalibilidade.
Se existem algumas passagens nos documentos conciliares que repetem o que a Igreja disse antes, de um modo infalível, obviamente estas passagens são e seguirão sendo infalíveis. E nós aceitamos isso, não há nenhum problema. Por isso, quando se diz “aceitar o Concílio”, é necessário distinguir claramente qual é o sentido da expressão. No entanto, mesmo com esta distinção, até o momento, detectamos uma insistência por parte de Roma: “Vocês devem aceitar estes pontos; fazem parte do ensinamento da Igreja e, portanto, devem aceitá-los”. E vemos – não somente em Roma, mas também na maioria dos bispos – esta atitude até hoje em relação a nós, esta grave crítica: “Vocês não aceitam o Concílio”.
E agora, de repente, os enviados de Roma nos dizem que todos os pontos que foram obstáculos, são questões abertas. Uma questão aberta é um tema que pode ser discutido. E a obrigação de aderir a certa posição fica fortemente e inclusive, talvez, totalmente mitigada ou eliminada. Creio que isto é um ponto crucial. Teremos que ver, posteriormente, se isto é confirmado, se realmente podemos discutir livremente quanto à fé, quanto ao que devemos crer, e é aqui onde exigimos esta clareza, estes esclarecimentos por parte das autoridades. Pedimos isto durante muito tempo. Nós dizemos: “Há pontos ambíguos neste Concílio, e não cabe a nós esclarecê-los. Podemos assinalar o problema, mas quem tem a autoridade para esclarecê-lo é Roma”. No entanto, reitero, o fato de que estes bispos nos digam que se trata de questões abertas já é, na minha opinião, algo crucial.
As discussões em si desenvolveram-se, mais ou menos felizmente, segundo a personalidade de nossos interlocutores, porque também houve bons intercâmbios [nos quais] não necessariamente estivemos de acordo... Não obstante, creio que todos os interlocutores são unânimes em sua apreciação: ficaram satisfeitos com as discussões. Igualmente, ficaram satisfeitos com suas visitas. Parabenizaram-nos pela qualidade dos nossos seminários, dizendo: “São normais (Felizmente! É preciso começar por aí...), estas pessoas não são intolerantes nem obtusas, mas animadas, abertas, alegres, simplesmente indivíduos normais. E este comentário foi feito por todos os visitantes. Sem dúvida, isto é o lado humano, mas não devemos esquecê-lo tampouco.
Para mim, estas discussões, ou mais precisamente, esta faceta mais simples das discussões é importante, já que um dos problemas é a desconfiança. Certamente, nós temos esta desconfiança. E penso que, sem dúvida alguma, Roma também a tem sobre nós. E enquanto esta desconfiança prevalecer, a tendência natural é que tomemos qualquer coisa que se diga de maneira equivocada, ou que assumamos o pior cenário possível. Enquanto continuarmos com essa mentalidade receosa, não poderemos realizar muitos avanços. É necessário chegar a ter um mínimo grau de confiança, um clima de serenidade, para poder eliminar estas acusações a priori. Creio que a nossa forma de pensar segue sendo esta, e é também a de Roma. Isto leva tempo. Ambas as partes devem poder apreciar corretamente as pessoas, suas intenções, para poder superar tudo isto. Creio que isto vai levar algum tempo.
Isto também requer ações que mostrem boa vontade, e não a intenção de nos destruir. Atualmente, ainda temos esta ideia em nossas mentes, o que é uma postura amplamente difundida: “Se nos querem, é para nos asfixiar, e eventualmente nos destruir, para nos absorver totalmente, para nos desintegrar”. Isso não é integração, é desintegração. Obviamente, enquanto esta ideia prevalecer, não podemos esperar nada.
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O vídeo com a entrevista concedida por Fellay no dia 04 de março de 2016 pode ser visto, clicando aqui (em francês, com legenda em inglês).
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“Francisco nos alarma enormemente, e não apenas a nós. Mas gostamos dele” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU