28 Março 2016
Em um domingo de sol, o batalhão de Choque da Polícia Militar é bem recebido na avenida Paulista: por ele, passam manifestantes pró-impeachment que cumprimentam os agentes, tiram selfies e chegam a até bater continência para eles. Numa sexta à noite, a mesma avenida é palco de uma manifestação anti-impeachment. Ali, não se vê relações de proximidade com os policiais. Alguns manifestantes pedem, inclusive, o fim da Polícia Militar. Da ovação à neutralidade ou hostilização em vários episódios, a PM de São Paulo responde a quem está na rua por meio da atuação, ora amigável, ora ríspida, e muitas vezes violenta, como no episódio na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, na segunda-feira passada.
A reportagem é de Camila Moraes e Marina Rossi, publicada por El País, 27-03-2016.
Essa conduta que varia com as oscilações de humor e ideológicas dos manifestantes em uma instituição que, em tese, deveria manter um padrão de atuação dissuasivo e neutro, aponta para um nível de politização que pode ser um perigoso ingrediente para que ânimos, já exaltados, se acirrem ainda mais em meio à polarização política, de acordo com três especialistas ouvidos pelo EL PAÍS. Um quarto estudioso consultado, no entanto, diz que não há elementos para indicar desvios significativos na atuação dos policiais nos atos recentes.
A repressão ao ato foi um dos casos mais emblemáticos do crescente nível de tensão nas ruas e do risco de choques entre grupos contrários. Na segunda-feira passada, um grupo pró-impeachment marcou uma manifestação em frente ao prédio da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, colocando um carro de som na rua. Alguns alunos que são contrários ao impeachment quiseram falar no microfone e outros reclamaram do barulho. A discussão foi aumentando e a polícia foi acionada, intervindo com o uso de bombas de gás lacrimogênio. O grupo anti-impeachment chegou a ficar encurralado em uma das vias pela PM. Há relatos de bombas arremessadas para dentro da universidade e ao menos um estudante ficou ferido por uma bala de borracha.
No dia seguinte, o secretário de Segurança Pública Alexandre Moraes declarou à imprensa que "a ação da PM foi legítima”, e que “não tinha” meios alternativos que poderiam ser usados para a dispersão dos manifestantes naquele momento. Três dias antes do ocorrido na PUC, a mesma polícia usou jatos de água para desmobilizar manifestantes a favor do impeachment que ocupavam a avenida Paulista há quase dois dias. Parte da avenida ficou fechada para o tráfego durante quase 48 horas seguidas, sem que houvesse um aviso prévio dos manifestantes às autoridades, ainda que, no início do ano, Moraes tivesse anunciado que os protestos do Movimento Passe Livre só poderiam ocorrer na cidade se os organizadores enviassem, com horas de antecedência, um roteiro completo do trajeto que fariam. A desobediência à essa ordem resultou em um protesto sufocado por bombas de gás lacrimogêneo na avenida Paulista, cercada por policiais que impediram os manifestantes de sair em passeata.
Ainda na mesma terça-feira, o governador Geraldo Alckmin participou de uma cerimônia no Centro de Operações da Polícia Militar. Ele disse que a atuação da PM nas manifestações é "imparcial, moderada, apartidária e republicana". Além dos elogios ao batalhão, o governador deixou clara sua posição sobre os protestos. “Eu sei, secretário [de Segurança Pública] Alexandre Moraes, do custo pessoal de ter de remover das ruas representantes de um sentimento maior da nação porque uma minoria ávida havia previamente requisitado o espaço para lá manifestar-se”. Alckmin se referia ao dia em que a PM removeu com o jato d'água os manifestantes pró-impeachment que ainda resistiam da avenida Paulista para que o ato anti-impeachment pudesse ocorrer ali. A minoria a que o governador se referia eram as 95.000 pessoas, segundo o Datafolha, que foram se manifestar contra o impedimento de Dilma Rousseff.
Linha de comando
De acordo com Ignacio Cano, especialista em Segurança Pública da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), não é só a atitude do manifestante diante da PM o que alimenta esse comportamento diverso, mas, sobretudo, o fato de a corporação atuar sob o que ele considera orientação política. "Em São Paulo, o Governo estadual tem claramente uma disposição favorável a esses manifestantes [pró-impeachment]", diz, o que levaria os policiais a agirem de acordo com essa posição. "Aguentar provocação é obrigação da PM, assim como dos juízes de futebol", diz.
Essa visão é compartilhada por Renato Sérgio de Lima, doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo e vice-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Ele diz que a Polícia Militar é uma extensão do Governo Alckmin. “Nossa polícia tradicionalmente toma como norte a direção política do Governo a que está submetida”, afirma Lima, que é também co-organizador do livro Crime, polícia e justiça no Brasil. “Em termos de governança, a PM de São Paulo é muito suscetível ao comando da Secretaria de Segurança Pública e do próprio Governo. Não necessariamente por uma ordem direta, mas através da próprios vivência de seus membros. De sinais, como falas e entrevistas”, acrescenta. O governador Geraldo Alckmin participou do ato pró-impeachment no dia 13 de março.
Apesar de ser comumente vista "como uma extensão do Governo, não uma força do Estado", a polícia de São Paulo goza, segundo o sociólogo, de uma autonomia exagerada, prestando poucas contas à sociedade. Em países como a Inglaterra e a Alemanha, as corporações policiais são obrigadas a apresentar os protocolos que seguem em caso de protestos públicos. O protocolo seguido pela PM de São Paulo, por exemplo, é sigiloso. "Como resultado, o cidadão não conhece de antemão os limites de suas ações em ambientes como esse", diz Lima. “Não se trata de crime organizado e sim de eventos organizados previamente em que a população não sabe o que esperar se um policial for atingido com uma pedra. Essa visão opaca de segurança pública, sem critérios públicos e objetivos, é que o dá espaço à politização.”
O coordenador da Comissão da Verdade Pedro Dallari, que critica uma "concepção combativa de segurança pública” e defende a desmilitarização das polícias, não vê, no entanto, desvios significativos na atuação dos policiais nas manifestações recentes. “Pelo que tenho acompanhado dos protestos, a atuação é profissional", avalia. "Claro que há condutas inadequadas, que devem ser combatidas, mas é preciso ter certo cuidado para falar em politização nesse momento de disputa”.
Já Conrado Hübner Mendes, professor de Direito Constitucional na faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), vê sinais preocupantes nos episódios da PUC e da Paulista. "A PM só faz alimentar a percepção de que simpatiza por um dos lados. Como sempre, há policiais que não se deixam contaminar e agem racionalmente. São exceções que confirmam a regra, mas têm que obedecer ordens hierárquicas. No geral, o que vimos é mais do mesmo: uma PM desorientada tanto na ação quanto na omissão, tolerada pela indiferença das autoridades com poder para regulá-la e controlá-la."
Protesto estudantil
A oscilação de conduta da polícia ficou evidente em outra manifestação da semana passada. Enquanto Alckmin discursava no Centro de Operações da PM, na terça-feira, um grupo de cerca de 150 estudantes secundaristas saía em passeata pela zona oeste da cidade contra o fechamento de salas de aula e pedindo que uma CPI apurasse os desvios de verba para a merenda, um caso que implica aliados do governador. O protesto acontecia um dia depois do episódio da PUC, que gerou críticas ferrenhas nas redes sociais contra a conduta da polícia. Sem aviso prévio, os secundaristas bloquearam importantes vias, como a avenida Eusébio Matoso e o cruzamento da avenida Rebouças com a Faria Lima. A polícia acompanhou o ato, mas, diferentemente do ano passado, quando a repressão foi criticada, não o reprimiu. Aos olhos de alguns, as críticas do dia anterior – quando policiais apontaram armas para estudantes, como mostraram os vídeos que viralizaram nas redes – serviram para que a polícia mudasse de estratégia.
O sociólogo Renato Sérgio de Lima, da USP acredita que para adequar e padronizar o comportamento das polícias o Brasil deveria olhar exemplos positivos no exterior. O especialista enxerga nas comissões independentes de controle da ação policial, ensaiadas na Inglaterra após episódios de violência como o que resultou no assassinato, por engano, do brasileiro Jean Charles em Londres, uma solução para o policiamento brasileiro. A proposta desses comitês, segundo ele, é que eles sejam compostos por especialistas na área de segurança, convocados de universidades e de outras instituições não governamentais, "para revisar todo o procedimento e apontar o que está certo e o que está errado”. “Se a nossa polícia fosse objeto dessa atenção, isso ajudaria a que os excessos fossem refutados”, acredita.
A secretaria de Segurança Pública afirmou, por meio de nota, que "a Polícia Militar acompanha os protestos para garantir o direito à livre manifestação. Sua prioridade máxima é garantir a paz e a segurança". Ainda afirmou que a PM de São Paulo segue "à risca" os tratados internacionais de Direitos Humanos, "aos quais é uma das polícias mais alinhadas. É uma corporação que não registra incidente com morte em manifestação, o que a torna referência no mundo".
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Reações diversas da PM em protestos, fator de risco em meio à polarização - Instituto Humanitas Unisinos - IHU