Por: Cesar Sanson | 28 Março 2016
Um vídeo gravado pela TV PUC indica que a ação da Polícia Militar de São Paulo para reprimir estudantes que protestavam contra o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, na segunda-feira 21, começou imediatamente após o grupo pedir o fim da PM: "não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da Polícia Militar", gritavam alunos da PUC-SP. A resposta da Força Tática da PM, na forma de balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo, deixou feridos.
Pouco antes, esse grupo havia decidido responder às críticas de um ato contra Dilma previamente marcado e que acontecia ali, no campus da PUC em Perdizes. Assim, o conflito começou. A PM, que acompanhava de longe o protesto pelo impeachment, se aproximou quando houve um princípio de tumulto entre os grupos, formando um cordão de isolamento. Segundo relatos de alunos, enquanto a polícia intimidava os manifestantes contrários à saída de Dilma, o outro grupo gritava "viva a PM".
Em nota, a Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo informou que a repressão se fez necessária porque estudantes arremessaram latas e garrafas contra os PMs. Em carta enviada ao governador Geraldo Alckmin (PSDB), a reitora da PUC-SP, Anna Maria Marques Cintra, manifestou "descontentamento" com as ações da polícia.
Para Adilson Paes de Souza, tenente-coronel reformado da PM-SP, a atuação da corporação nas manifestações ocorridas em São Paulo tem mostrado que existem "dois tipos de polícia". "Nosso Estado não tolera o contraditório. Críticas contrárias não podem ser feitas", disse o tenente-coronel em entrevista a CartaCapital, 23-03-201. Souza, que defende a desmilitarização da PM, é autor do livro O Guardião da Cidade, resultado de uma tese sobre violência policial defendida na Faculdade de Direito da USP.
Eis a entrevista.
Como o senhor avalia a ação da PM em diferentes manifestações, como nessas a favor e contra o impeachment da presidenta Dilma Rousseff?
Há dois tipos de polícia nas manifestações. Não há como negar que, quando o pleito dos manifestantes é contrário às posições das autoridades públicas do Estado, a atuação da polícia é bem diferente de quando o pleito dos manifestantes é a favor da postura das autoridades.
Nós vimos isso de maneira clara com o grupo que acampou na Fiesp (contra Dilma) e tomou conta da Avenida Paulista, obstruindo a via e prejudicando o trânsito por mais de 30 horas (depois, foram retirados com jatos d'água). Há notícias de que a polícia estava negociando e há notícias de que a polícia estava assistindo, inclusive quando o próprio secretário (da Segurança Pública, Alexandre de Moraes) foi hostilizado.
Por outro lado, nós vimos nas manifestações contra o aumento da passagem e nos atos dos estudantes secundaristas, por exemplo, que não houve essa tolerância por parte da polícia. Os estudantes começaram a ocupar vias públicas como parte do movimento de ocupação das escolas contra a reorganização escolar, e não houve nenhuma complacência ou atitude mais ponderada por parte da polícia em esperar ou negociar. Houve repressão imediata e desmedida, que foi condenada por várias pessoas e movimentos, dentro e fora do Brasil.
Se fosse coerente, a polícia reprimiria de imediato toda e qualquer manifestação sob a alegação de que o direito de ir e vir do cidadão não pode ser ofendido, justificativa já usada. São duas polícias, com dois métodos. E isso não pode.
O senhor quer dizer que a polícia tem um lado?
Os fatos mostram que a polícia age de maneira diferente. Não sei dizer se ela está adotando um lado, mas ela age de maneira diferente. Com um lado não tem conversa, não tem tolerância e não tem negociação. Com outro, há uma tolerância exacerbada. Nesse sentido, eu identifico, sim, dois pesos e duas medidas.
O nosso Estado não tolera o contraditório. As críticas contrárias não podem ser feitas, e isso não é típico de uma democracia. Refiro-me ao Estado como ente político. Na esfera estadual, quem personifica o Estado é o governo estadual. E o nosso Legislativo estadual não se pronuncia, não cobra uma atuação, não fiscaliza o Executivo em relação a essas medidas, se cala e se omite. Isso aumenta o descrédito da população nas autoridades e cria um vácuo, um precedente perigoso.
Quando existe crítica e rejeição às medidas, usa-se da violência para debelar essa posição contrária. Não usa-se da força, usa-se da violência, que é o uso da força de maneira desmedida, como nós vimos. E isso aconteceu no município também, quando houve aumento das tarifas municipais do transporte.
O que o senhor observou vendo o vídeo da repressão da PM gravado pela TV PUC?
A ação foi retaliação, sem justificativa plausível. Reparei que os disparos de borracha foram efetuados com a arma paralela ao solo, ou seja, tendo como direção membros superiores – cabeça, peito –, o que é vedado pela própria norma da PM, pois podem atingir órgãos vitais.
Alguém que diz para um policial “eu quero que acabe a Polícia Militar” não está cometendo crime algum. Nós queremos que acabe a Polícia Militar e isso não é crime, isso é manifestação de opinião. Sou a favor da desmilitarização porque o aparato policial é o mesmo da ditadura, e isso é incompatível com a democracia.
Se alguém se sente ofendido, que acione os meios legais. Repressão como resposta a estudantes que proferiram palavras de ordem e cantaram pela extinção da polícia é abuso, é gravíssimo. Mostra que a polícia não tolera a crítica e reprime a crítica com violência.
A Secretaria da Segurança Pública diz que a ação ocorreu por dois motivos: porque a manifestação pelo impeachment havia sido agendada com antecedência e, também, porque os PMs foram atacados com garrafas e latas...
Preservar o direito de manifestação de quem estava no local primeiro é uma explicação plausível, mas o vídeo mostra a repressão após a crítica. E também existe a questão do uso moderado dos itens necessários. Infelizmente, o que temos visto é um uso excessivo de munição química e de balas de borracha.
Quanto ao outro argumento, os policiais possuem escudos à prova de bala e equipamentos para atuação em controle de distúrbios civis e manifestações. Parece-me que os capacetes, as caneleiras, as joelheiras e os escudos os protegem contra latas e garrafas. Então, se for este o argumento, é desproporcional.
Neste momento de intensa polarização, como o senhor avalia essa conduta da PM na mediação de um conflito de caráter político?
Acho que só agrava a situação. Atuar com dois pesos e duas medidas acentua muito mais a contradição e acirra mais os ânimos. Aumentar o descrédito e a polarização faz com que as pessoas passem a agir com os próprios meios e sejam mais intolerantes. Só tende a piorar a situação.
Ainda na PUC, relatos dão conta de que os manifestantes a favor do impeachment gritavam “viva PM”, assim como há pessoas que tiram foto com a tropa de choque nos atos contra Dilma. Como o senhor avalia isso?
São manifestações legítimas de opinião legítima. Eles se acham representados pela ação da polícia e apoiam as ações da polícia. Acho legítimo isso. O que não pode é a polícia tratar de maneira diferente quem a apoia e quem não a apoia. A polícia é uma instituição do Estado, e nós estamos no Estado Democrático de Direito, onde as opiniões têm de ser respeitadas.
Eu não sei o perfil das pessoas que estavam se manifestando a favor da polícia, mas, nos atos a favor do impeachment vemos um pessoal de uma classe mais alta, digamos assim. Pode ser que essas pessoas entendam que a polícia os representa bem.
Já o pessoal das classes mais baixas, os moradores da periferia, há tempos têm reclamado da atuação do Estado em geral, que os abandonou a própria sorte. E nessas críticas à atuação do Estado entra claramente a atuação da polícia. Existem dois tipos de polícia: a polícia das periferias e as polícias dos grandes centros, das áreas mais privilegiadas.
Há estudos que indicam isso. Então, o morador de cada área tem uma opinião e faz uma avaliação diferente da polícia, o que é normal em uma democracia.
Em outra ocasião, quando o senhor disse que a PM trata o cidadão como potencial inimigo, a PM-SP respondeu de forma dura. Como o senhor recebeu essas críticas?
Acho que a polícia perdeu a oportunidade de entrar no debate com um viés mais qualificado e acabou expondo as suas entranhas. Quem fala mal é inimigo, quem critica é inimigo. É isso que nós estamos vendo nas ruas, nas manifestações.
Foto: Alice Vergueiro/Folhapress.
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