Por: Jonas | 03 Março 2016
Qualquer acontecimento que provenha da cúpula vaticana sempre tem o condimento inquietante da conspiração. O breve encontro entre o papa Francisco e o presidente Mauricio Macri, no final de semana, em Roma, não foi exceção. Teceram-se especulações de todo tipo e cor, e na Argentina se reavivou a “rachadura” a favor ou contra o homem que falou mais com os gestos e imagens do que com as palavras.
Fonte: http://goo.gl/i9UQ0k |
A reportagem é de Fernando Rosso, publicada por La Izquierda Diario, 28-02-2016. A tradução é do Cepat.
O primeiro balanço espontâneo foi medido com o tempo: o Sumo Pontífice dedicou 22 minutos ao homem que preside os destinos de seu país. Intensificaram-se as comparações, que são todas odiosas, ainda que algumas sejam mais odiosas que outras. Para Barack Obama dedicou 55 minutos, a mesma quantidade de tempo para Vladimir Putin, com Milagro Sala teve uma conversa de 50 minutos e com Cristina Fernández teve um extenso diálogo que durou 1h45. Só para a rainha Elizabeth II da Inglaterra, que também é líder da Igreja Anglicana, dedicou menos tempo (17 minutos) em uma reunião que foi qualificada como “informal” e um dia após o aniversário da Guerra das Malvinas.
Em seguida, veio a detalhada comparação do espaço: Francisco recebeu Macri em seu “escritório” (a Biblioteca do Palácio Apostólico) e não em sua “casa” (a Residência Santa Marta). Foi uma curta reunião protocolar “de trabalho”, com o sabor amargo da distância pessoal.
Finalmente, produziu-se o fato político de massas da foto “que percorreu o mundo”, com um evidente gesto frio e até com traços de desagrado por parte do líder universal da Igreja católica, rodeado pelo novo casal presidencial.
O macrismo raivoso estourou no território selvagem das redes sociais: o tratamento que o Papa argentino havia dado a seu presidente era uma vergonha imperdoável. “Montonero Francisco, renuncie!”, poderia exigir o inesquecível personagem de Diego Capusotto e era o menos bizarro que era possível ouvir entre os raios e centelhas disparados ao ar pela fúria macrista.
No entanto, qualquer um que percorra o itinerário da relação entre Bergoglio e Macri pode entender o desenlace da reunião de sábado, cruzada por divergências tanto políticas, como de ordem doutrinária.
No ano de 2009, a Proposta Republicana (PRO) governava a Cidade de Buenos Aires e decidiu não apelar a uma sentença judicial que habilitou o casamento de Alex Freyre e José María Di Bello, o que causou uma forte rejeição na Igreja. O problema de Bergoglio não estava no fato de que se levava adiante a “união civil” entre duas pessoas do mesmo sexo, estava terminantemente contra que “isso” fosse qualificado como matrimônio. “Faltou gravemente com o seu dever de governante”, afirmou categoricamente Bergoglio, em um comunicado da Arquidiocese que então presidia.
No ano de 2012, Bergoglio teve outra contenda com Macri, quando o governo da Cidade de Buenos Aires decidiu regulamentar o protocolo habilitador para os abortos não puníveis no âmbito da cidade.
A não apelação de Macri, assim como a regulamentação de uma lei (que na realidade antes havia vetado), não se devia tanto a suas inexistentes convicções “progressistas”, como ao interesse de não enfrentar o eleitorado portenho que apoiava majoritariamente o matrimônio igualitário.
Em torno destas duas questões, Francisco se indignou “à direita” com Mauricio Macri. O Papa que hoje é reivindicado por todo o universo do progressismo (que, além disso, esqueceu seus duvidosos anos sob a ditadura militar), distanciou-se da direita liberal por não ser o suficiente conservadora na defesa da família tradicional.
Mais recentemente, o Papa se enfureceu com as declarações do assessor estrela do novo presidente, o inefável Jaime Durán Barba, que havia afirmado que “não juntaria nem dez votos”.
E depois de assumido o governo de Mudemos, de Roma, enviaram a mensagem de que Francisco estaria “muito incomodado” com Macri em razão da nomeação de Silvia Majdalani para a Agência Federal de Inteligência (ex-SIDE). Amiga íntima de Francisco “Paco” Larcher (número dois da área nos tempos de Néstor Kirchner), teria sido a chave para o retorno à Inteligência (se é que alguma vez se foi verdadeiramente) de outro Jaime incômodo para Bergoglio: Situso. O espião que não goza da simpatia do Papa e que já caminha novamente entre nós.
Majdalani formava a comissão bicameral que devia controlar a atividade dos espiões que, como se sabe, sempre cumpriu um papel decorativo e onde a deputada da PRO atuava como uma porta-voz da velha SIDE. “Foi preciso morrer um promotor em circunstâncias duvidosas para que muitos percebessem que neste país há uma Secretaria de Inteligência. Como pode ser que a Presidente, após fazer uso e abuso da Secretaria, agora a considere um desastre?”, interrogou em sua intervenção na Câmara de Deputados, quando se discutiu a possível “dissolução” do organismo. Agora, Majdalani é a nossa “Senhora 8” (número dois da AFI). Uma garantia para o retorno do “desastre”, que na realidade nunca se foi.
A preocupação do líder da Igreja mundial com os porões da democracia argentina tem motivos políticos. Os decompostos serviços de inteligência são um fator potencial de crises políticas (Nisman!), além de um aparato autônomo de negócios nebulosos. Além do fato de que Bergoglio não esteve isento das escutas de Situso, quando era um espião “do projeto” e o atual papa, “o chefe espiritual da oposição”.
Todas estas diferenças de ordem “doutrinária” ou “tática” se enquadram em uma maior, de caráter estratégico.
Sciolismo ou barbárie
É conhecido publicamente que Daniel Scioli era a aposta de Bergoglio para a transição argentina. Francisco conhece a crise que o país atravessa e desde que chegou à Santa Sé se postulou como um garantidor da paz social para um ajuste gradual. Entre outras coisas, porque não pode se dar ao luxo de que exploda uma crise social imparável em seu país de origem. Considerava que o candidato da Frente para a Vitória era o homem ideal para encarar esse desafio.
O programa de choque do governo de Macri lhe parece um tanto aventureiro (em um mundo onde o neoliberalismo produz crises catastróficas, entre elas, a da própria Igreja), não tanto por diferenças de “princípios”, como pelas consequências práticas que pode trazer: o aumento do conflito social, ou seja, o fantasma da luta de classes.
Não se trata de um enfrentamento entre o chefe de uma “CEOcracia” de “opção pelos ricos” e o novo líder de uma Igreja dedicada aos pobres, mas, sim, de duas maneiras de entender como se defendem os mesmos interesses, sem que o sistema voe pelos ares. Além de peronista e jesuíta, Francisco é acima de tudo um experimentado na arte da contenção.
O macrismo emocional, que em muitas ocasiões funciona em espelho com o “frepasismo (Frente País Solidário, 1994-2001) raivoso” do núcleo duro kirchnerista, não entende esta função estratégica que Francisco se auto-adjudica para a História e a posteridade.
Quanto à amarga foto do encontro, convence-os de que o Papa se converteu no “fato maldito” do país macrista. O Bergoglio de sempre continua se postulando como “fato abençoado” do país burguês, ainda que tenha destratado de forma um pouco grosseira a um de seus filhos pródigos. Em seu íntimo, Francisco deve ter exclamado: “perdoa-os Senhor, não sabem o que fazem”.
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Francisco: o “fato maldito” do país macrista? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU