24 Fevereiro 2016
"Francisco valoriza e aplaude os que vivem a vocação como serviço ao povo de Deus, e adverte aqueles que reduzem a vocação religiosa a um trabalho, ou pior, a um instrumento de dominação. É uma experiência que ele mesmo viveu como sacerdote e bispo".
Assim o jornalista Gianni Valente reflete alguns dos principais temas emersos na visita apostólica do Papa ao México: questão migratória, tráfico de drogas, fronteiras, fé do povo, prisões, figura do padre e do religiosos, abusos sexuais, China.
"Exercer o juízo é próprio do papel do Papa, mas não se trata de afirmar seu poder político: a referência é o Evangelho. Na simplificação feita pelos meios de comunicação, as palavras de Francisco foram lidas como excomunhão direta de um personagem político. Mas na verdade expressavam um critério aplicável a todos, ou seja, que um certo tipo de abordagem do fenômeno da migração não é cristã. Isso não leva automaticamente a um repúdio de caráter político".
Esta é a convicção do jornalista Gianni Valente, comentando a resposta dada pelo papa Francisco, durante o voo de regresso da viagem apostólica ao México (12-18 de Fevereiro), a uma pergunta a respeito de Donald Trump, candidato republicano para a presidência dos EUA: "uma pessoa que só pensa em fazer muros, esteja onde estiver, e não em fazer pontes, não é cristã".
A entrevista foi realizada por Riccardo Benotti, publicada por Servizio Informazione Religiosa - SIR, 22-02-2016. A tradução é de Ramiro Mincato.
Eis a entrevista.
A gestão dos fluxos migratórios sempre foi uma preocupação do Papa.
Acolher o estrangeiro é uma das obras de misericórdia corporal. É um critério que pode ser aplicado às escolhas políticas europeias. Trata-se de um problema epocal de dimensões globais. Neste sentido, a viagem ao México estava cheia de mensagens ao mundo. A abordagem do Papa foi realista, sem perseguir idealismos abstratos ou falsos bonismos. Francisco recorda o acolhimento como única solução possível para gerir politicamente o fenômeno migratório.
Que razões levaram Francisco a enfrentar uma viagem ao México?
O México está no coração do Papa. A devoção mariana, característica a América Latina, encontra uma das mais altas expressões em Nossa Senhora de Guadalupe. Além disso o México é um lugar de fronteira, perpassado por guerras de vários tipos. Francisco conhece a influência do tráfico de drogas sobre a economia mundial, desde quando era arcebispo de Buenos Aires. É um dos temas mais recorrentes em suas reflexões, juntamente com o tráfico de armas.
Na Argentina, não media esforços para dar suporte aos sacerdotes que, nas áreas marginais, nas villas miseria, levavam adiante projetos de assistência e prevenção às novas gerações. Buenos Aires era um território no qual a indústria do narcotráfico vendia o lixo do processamento.
A droga mais popular era o "paco", substância de baixo preço, mas de grande agressividade.
O México também é um país de maioria católica ...
Não obstante, é um lugar de contradição. Por um lado, é evidente a fé autêntica do povo, da qual Francisco, como peregrino, queria beber. Por outro lado, no entanto, a devoção tão visceral a Jesus e Maria choca-se com o fenômeno da desumanização, contra o qual um povo inteiro não consegue encontrar contramedida. Também por isso o Papa convidou a olhar para Cristo e para o exemplo da Virgem Maria como fontes de uma nova humanidade.
Antes de voltar para o Vaticano o Papa encontrou-se com os prisioneiros em Ciudad Juárez. O tema das prisões é recorrente no seu pensamento?
Também visitar os prisioneiros é uma das obra de misericórdia corporal. No ano do Jubileu extraordinário, Francisco quer acompanhar toda a Igreja neste caminho. O discurso aos presos foi um dos momentos mais tocantes da visita: o Papa reiterou a dinâmica da misericórdia, que não força de fora, mas que cuida das situações difíceis, e abre para um futuro nunca totalmente perdido.
À Nossa Senhora de Guadalupe o Papa pediu "para que os padres sejam verdadeiros padres, as religiosas, verdadeiras religiosas e os bispos, verdadeiros bispos".
A conversão pastoral da Igreja é a base. No lembrete constante para serem autênticos sacerdotes, freiras e bispos não há fúria rigorista. Simplesmente o Papa sugere que todos possam reconhecer a fonte da vocação. É preciso lembrar-se que no início havia uma força atrativa, e romper com a dinâmica da atrofia.
Francisco valoriza e aplaude aqueles que vivem a vocação como serviço ao povo de Deus, e adverte aqueles que reduzem a vocação religiosa a um trabalho, ou pior, a um instrumento de dominação.
É uma experiência que ele mesmo viveu como sacerdote e bispo. A imagem de um povo fiel e bom oprimido pelo clero. O Papa não tolera que o povo seja maltratado. Daí o convite de sempre seguir o sensus fidei do povo, porque ali age a graça de Cristo. Aos Bispos do México disse: "Não se deixem apanhar pela vã procura de mudar o povo, como se o amor de Deus não tivesse força suficiente para isso".
Ao falar sobre o flagelo da pedofilia na viagem de volta, o Papa disse que "um bispo que transfere um padre de paróquia, quando se verifica um caso de abuso infantil, é um inconsciente, e a melhor coisa que poderia fazer é apresentar sua renúncia".
É significativo que o Papa aproxime o tema da pedofilia ao das missas negras. O abuso de menores, em sua percepção, especialmente quando cometidos por religiosos, recordam um sacrifício humano com traços diabólicos.
Não se trata de insistência voltada a agradar as dinâmicas midiáticas. Para Francisco, na pedofilia se toca o coração do mistério do mal, que é ainda mais devastador quanto perturba a relação de confiança entre as novas gerações e aqueles que deviam testemunhar-lhes o amor de Jesus.
"A China ... ir para lá: Gostaria muito", disse o Papa. É uma hipótese viável, mas em que prazo?
Os tempos, não os conhecemos. Francisco mandou uma mensagem clara à China: ele está pronto para ir. Estima a civilização chinesa e sente-se próximo ao povo. Católicos e bispos chineses estão contentes com a pregação do Papa, seguido com facilidade por meio dos novos meios de comunicação.
É incrível o que acontece na China no Ano de Misericórdia: abrem-se centenas de Portas Santas, até nas pequenas aldeias, e os bispos escrevem cartas pastorais retomando o conteúdo do Misericordiae Vultus. Todos esperam que se encontre o caminho para a normalização das relações entre a Santa Sé e o Governo, para que seja mais fácil para os católicos viver sua fé na dimensão quotidiana.
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"O Papa não tolera maus tratos ao povo". Reflexão de Gianni Valente, depois da viagem ao México - Instituto Humanitas Unisinos - IHU