13 Novembro 2015
Novo livro do economista Joseph Stigliz promove uma análise crítica das causas e consequências das desigualdades nos Estados Unidos. O comentário é de Frederico Cantante, publicado por Carta Maior, 12-11-2015.
Eis o artigo.
O crescente fosso entre os 1% mais ricos e os restantes 99% da população norte-americana é a evidência empírica de base a partir da qual Joseph Stiglitz desenvolve uma análise integrada dos factores que explicam esse fenómeno e as suas consequências. O principal objectivo da obra é o de promover uma cartografia dos processos económicos, mas sobretudo políticos, que fizeram dos Estados Unidos da América (EUA) uma sociedade na qual a riqueza e o bem-estar se concentram cada vez mais numa minoria da população.
Stiglitz procura demonstrar ao longo do livro que as desigualdades não são nem inevitáveis nem se legitimam em qualquer lei ou pressuposto da ciência económica. Resultam, na verdade, de orientações ideológicas e de decisões concretas alinhadas com os interesses dos mais ricos. Esta obra é, neste sentido, um exercício crítico acerca da própria constituição política e económica da sociedade norte-americana nas últimas três décadas.
Stiglitz começa por quantificar a extensão da desigualdade na distribuição dos rendimentos e do bem-estar nos EUA, mais concretamente a sua concentração numa pequena fracção da população: indica, por exemplo, que os 1% mais ricos ganham 40% mais numa semana do que os 20% mais pobres num ano (p. 4). Mas os EUA é um país retratado como sendo desigual não só ao nível dos recursos, mas também no que diz respeito às oportunidades. Os custos crescentes da formação superior e a diminuição dos apoios públicos, combinados com a diminuição dos rendimentos da grande maioria das famílias, implicam que o número de jovens que têm a possibilidade de concluir o ensino superior diminua.
As baixas qualificações são apontadas por Stiglitz como potenciadoras das desigualdades, no sentido em que os trabalhadores com este tipo de perfil auferem, num contexto de globalização e num mercado de trabalho que premeia as qualificações mais elevadas, baixos salários e enfrentam redobrados riscos de desemprego. A globalização e a inovação tecnológica são factores que contribuem para a desigualdade social antes da intervenção do Estado, ou seja, antes de serem cobrados impostos, de efectuadas as transferências sociais ou de serem implementadas um conjunto de medidas com impacto na estrutura da distribuição do rendimento.
Mas uma das premissas que norteia o livro é a de que embora os mercados moldem as desigualdades, é o governo e as políticas públicas que moldam os mercados. As políticas fiscais são, porventura, o exemplo mais usado pelo autor ao longo da obra para apresentar mecanismos de correcção das desigualdades e das injustiças sociais. Stiglitz defende um aumento dos impostos para os mais ricos, para as empresas que mais beneficiem da exploração de recursos naturais ou de monopólios, e às que mais poluam.
O autor entende o conceito de poluição não apenas na sua acepção ambiental, mas também do ponto de vista dos impactos socias e económicos negativos da acção das empresas. Por exemplo, a especulação levada a cabo pelo sector financeiro norte-americano teve efeitos nocivos para a economia do país e para a vida quotidiana dos seus cidadãos. Paradoxalmente, segundo o autor, em vez de serem punidas por via fiscal, algumas das grandes empresas do sector financeiro dos Estados Unidos foram resgatadas sem que lhes fossem exigidas contrapartidas proporcionais aos danos que causaram e ao esforço financeiro que exigiram ao orçamento público.
Ao longo da obra é feita uma crítica dos privilégios de que gozam as grandes empresas nos EUA, mais concretamente as rendas excessivas no sector da energia, na indústria farmacêutica, na indústria militar e no sector financeiro. No caso do sector financeiro, o autor chama a atenção para o fato de Reserva Federal Americana (RFA) emprestar dinheiro aos bancos a uma taxa de juro perto de zero, sendo que estes concedem posteriormente empréstimos ao governo ou às empresas privadas com juros muito mais elevados. Stiglitz considera que este tipo de privilégios, que resultam da desregulação das atividades econômico-financeiras ou do favorecimento legal de algumas empresas ou grupos de interesse, são “rendas” ou “subsídios” que contribuem para o avolumar das desigualdades, já que se destinam a beneficiar principalmente os 1% mais ricos.
Mas como é que este grupo minoritário tem conseguido fazer prevalecer os seus interesses em relação aos da esmagadora maioria da população? Através da pressão que efectuam junto do poder político, da capacidade que têm para influenciar a escolha de pessoas da sua confiança para posições estratégicas e, principalmente, pelo êxito que têm demonstrado na batalha das ideias, na luta pela determinação das percepções acerca da realidade social, política e económica.
O autor procura refutar um conjunto de princípios económicos que guiam as propostas políticas da direita americana, por exemplo, a teoria da produtividade marginal, segundo a qual a compensação remuneratória de cada trabalhador é proporcional ao contributo social da sua actividade profissional. Stiglitz questiona porque é que os presidentes das grandes companhias de seguro ou da banca norte-americana auferiam e continuam a auferir salários e a receber prémios de desempenho tão elevados se em muitos casos o seu desempenho profissional foi desastroso para a sociedade.
Uma das questões mais interessantes exploradas na obra prende-se com a relação entre o fenómeno das desigualdades e a política macroeconómica seguida pelos governos e pelos bancos centrais. O autor tem uma visão crítica acerca das políticas de austeridade implementadas na generalidade dos países ocidentais no decorrer na crise de 2008, devido a duas razões fundamentais: o (bom) investimento público tem efeitos multiplicadores da actividade económica; a recessão económica tem na sua base um défice de procura, pelo que as medidas que mitiguem o investimento e o consumo terão efeitos perversos.
Em relação aos bancos centrais, Stiglitz refere que a política monetária seguida pela RFA tem impossibilitado uma retoma da economia dos EUA e uma diminuição do desemprego no país, favorecendo, neste sentido, o aumento das desigualdades sociais. Apesar de oficialmente a RFA ter um mandato para fomentar o crescimento económico, o emprego e controlar a inflação, na prática preocupa-se principalmente com esta última questão, tal como acontece com o Banco Central Europeu (cujo mandato é unicamente o de controlar a inflação).
Embora um aumento elevado dos preços possa ter um impacto negativo na vida da generalidade das pessoas, e em especial no grupo dos mais pobres, Stiglitz afirma que o facto de a inflação ser mantida a um nível baixo favorece principalmente os titulares de obrigações, pois deste modo o valor dos títulos detidos não diminui: “perguntem a qualquer pessoa que está sem trabalho há quatro anos o que prefere – mais um ano no desemprego ou um aumento da inflação de, digamos, um ou dois por cento” (p. 261).
Stiglitiz procura, portanto, traçar uma esquema multidimensional que permita explicar os fundamentos das desigualdades nos Estados Unidos e suas condições de reprodução. Mas, tal como o título da obra indica, o autor defende que as desigualdades têm um preço. Desde logo porque a concentração do rendimento numa pequena fracção da população tem impactos negativos na procura e, tal como é defendido por outros autores, contribuiu para a bolha do sub-prime norte-americano que esteve na base da crise de 2008.
Em segundo lugar porque as desigualdades de recursos económicos inviabilizam a concretização do ideal norte-americano da igualdade de oportunidades, razão pela qual, segundo o autor, a sociedade norte-americana tenha uma estrutura social rígida caracterizada por baixos níveis de mobilidade social.
A desigualdade é também inimiga das relações de confiança e da coesão social. Por último, numa sociedade com altos níveis de desigualdade e na qual os rendimentos são pouco taxados, a receita fiscal necessária para o investimento público em educação, infraestruturas ou tecnologia é penalizada.
A mudança de paradigma na orientação das políticas pública nos Estados Unidos, que combata as desigualdades sociais, é entendida pelo autor como politicamente justa, socialmente necessária e economicamente eficaz. Ao longo do livro, e de forma mais sintetizada no último capítulo, apresenta aliás um roteiro de políticas públicas que vão nesse sentido. Mas, tal como refere:
“As sociedades mais igualitárias esforçam-se bastante para preservar a sua coesão social; nas sociedades mais desiguais, as políticas dos governos e de outras instituições tendem a favorecer a persistências das desigualdades” (p. 77. Tradução própria).
Este livro oferece uma leitura multidimensional dos processos de produção e reprodução das desigualdades nos Estados Unidos. A abundância de dados estatísticos é acompanhada por uma visão compreensiva acerca destes processos. O conjunto de propostas políticas de combate às desigualdades e às injustiças sociais assume-se como um contributo refrescante para as políticas públicas. A ideia fundamental que se retira da leitura desta obra é a de que as desigualdades sociais não são uma inevitabilidade, não são naturais. Pelo contrário, decorrem de um conjunto diversificado de políticas públicas orientadas para o favorecimento de uma parcela minoritária da população.
A análise tem como objeto os Estados Unidos, mas alguns dos processos que constituem e alimentam as desigualdades podem ser facilmente identificados noutras sociedades. Recomenda-se que a leitura do livro se inicie pelo prefácio. Nele o autor explicita e relativiza alguns dos conceitos que utiliza, por comodidade expositiva, ao longo da obra.
Por exemplo, o grupo dos “1%” ou os “banqueiros”. Neste sentido, existe uma clara transposição das bandeiras e da linguagem do movimento Occupy Wall Street para a narrativa da obra. O equilíbrio entre o texto academicamente informado e a simplificação da categorização da estrutura social dos Estados Unidos é quase sempre garantido (numa das passagens da obra o autor classifica os salários dos 90% da base da distribuição como “baixos salários”, o que é uma simplificação excessiva). A força da argumentação e do suporte empírico da mesma faz deste livro um contributo incontornável para se analisar de forma integrada os processos de constituição e reprodução das desigualdades sociais.
Stiglitz propõe alternativas políticas às políticas que aprofundam as desigualdades. A sua visão crítica é secundada por propostas de mudança. Mas, referindo-se à população dos EUA, considera que a “esperança está vacilante” (p. 290. Tradução própria).
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O preço da desigualdade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU