06 Novembro 2015
A aristocracia escondida da Igreja Romana defende a posição da Cúria. "Prenderam pessoas escolhidas por Francisco. Por que acusam a nós de traição?"
A reportagem é de Marcello Sorgi, publicada no jornal La Stampa, 05-11-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Há outra escola de pensamento que está crescendo em torno do segundo Vatileaks, o escândalo dos documentos furtados da Coşea, a comissão de investigação sobre as finanças vaticanas, que levou à prisão de duas pessoas próximas ao papa, o presidente, Pe. Vallejo Balda, e Chaouqui, membro leiga da mesma comissão.
É a voz dos "padres murmurantes", a aristocracia da Igreja também definida como "partido romano", que não pode ser descrita apenas como um conjunto de luxo e privilégios, e reivindica o papel desempenhado historicamente à frente dainstituição.
Trata-se de um partido complexo, em nada composto apenas por inimigos do papa e da sua missão de renovação, como parte da comitiva de Francisco gostaria de fazer crer. Um partido que reivindica a fidelidade ao pontífice, sempre professada nos momentos difíceis, até o recente Sínodo sobre a família, em que o ponto mais controverso, a liberdade dos párocos de escolher com "discernimento" se devem dar ou não a comunhão aos divorciados recasados, passou por um único voto.
O "murmúrio" dos padres romanos, cardeais e príncipes da Igreja, "com espírito de submissão", objeta: desta vez, os presos são duas pessoas da confiança do Santo Padre, selecionados pelas suas qualidades por Francisco, para um cargo bastante delicado como a revisão das finanças vaticanas. Se eles cometeram erros, e se o papa se equivocou ao escolhê-los, por que razão o seu ato de acusação se dirige contra a Cúria Romana?
Uma Cúria atravessada, sim, no passado até mesmo recente, por venenos e conspirações que ninguém quer esconder, mas, em geral, sempre fiel ao pontífice, qualquer que seja, e desde logo bem disposta, há 37 anos, a aceitar o trauma do papa estrangeiro.
Aqui aflora a nostalgia de São João Paulo II, Karol Wojtyla, autor de uma página muito importante na história da Igreja e, por isso, proclamado santo por aclamação popular imediatamente depois da morte. Pois bem, Wojtyla, mesmo sendo o primeiro pontífice estrangeiro que rompia a tradição dos papas italianos, mesmo vindo de longe, mesmo tomado pelo desejo de liberdade que animava os católicos forçados a cultivar a fé quase na clandestinidade, à sombra da ditadura soviética e da "Cortina de Ferro", nunca pensou em pôr a Cúria sob acusação, em rotulá-la com a infâmia da traição, em submetê-la com comando absoluto.
Muito pelo contrário: ele, homem que provinha do lado conservador da doutrina e da experiência da clandestinidade da fé sob o regime comunista, escolheu, ao contrário, como secretário de Estado, Casaroli, o cardeal da Ostpolitik e do confronto com Moscou.
Deixou Marcinkus no seu lugar e não sonhou em tocar o IOR. E quis fazer isso porque olhava para longe e guardava no coração a unidade da Igreja, consciente de que a diversidade de ideias não influi na qualidade dos homens.
O Papa Wojtyla reinava do alto da cadeira gestatória, deixando aos cardeais, aos bispos e aos párocos a tarefa de governar o dia a dia da instituição. Ele tinha claros os objetivos irrenunciáveis, que o levaram a abrir a brecha no muro de Berlim e a assistir à queda do comunismo. Isto é, a ver se realizando o conteúdo das suas orações cotidianas: desde que, menino, recitava no teatro, até a sua longa carreira como padre de estrada a alto prelado.
Nem o tocava a ideia de que um papa destinado a mudar o sulco da história, e não só o rosto da Igreja, como também lhe foi reconhecido por Gorbachev, podia se deter sobre os interna corporis, dedicando-se a detalhes desproporcionais à sua responsabilidade.
Também por isso, talvez, ele pôde aceitar que, entre os fundos da Santa Sé para o apoio ao Solidarnosc e para a luta pela libertação da Polônia, confluísse o dinheiro da Banda della Magliana [organização criminosa romana], e, como prêmio por essas ajudas, um canalha como De Pedis fosse enterrado em Sant'Apollinare.
O Papa Wojtyla jamais se ocuparia com contas, estimativas, pias e trabalhos domésticos, como fez Francisco e como revelam os documentos e as interceptações do novo Vatileaks. Ele voava alto, sobre as asas da Providência e do destino da história, sussurram temerosamente os "padres murmurantes" que se sentem sob acusação.
Mesmo sendo apaixonado por futebol (à noite, no apartamento, ele assistia aos jogos pela TV), uma vez, quando recebeu Ronaldo em audiência, que se aproximou para lhe beijar o anel, fingiu que não o reconheceu e lhe perguntou: "Você trabalha com quê?".
Era a sua maneira de marcar a distância entre o Vigário de Cristo e a mundanidade terrena, bem mais apreciável em um pontífice lembrado também pelos seus dotes de comunicador.
O murmúrio dos padres não chega a dizer isto abertamente, mas é clara a comparação com Francisco, que, em público, abraçou Maradona e, brincando, comparou-o a Pelé.
Mas, se alguém observa que a unidade da Igreja foi enterrada para sempre pelo complô contra o Papa Bento XVI e pela sua desesperada renúncia, os "padres murmurantes", indignados, dizem que a unidade é um dogma que corresponde à vontade de Deus. Nem mesmo os Borgias, nem mesmo os cismas, nem mesmo o exílio do Vaticano em Avignon puderam pôr isso em discussão.
A Igreja "tende naturalmente" à unidade, e é tarefa de cada papa favorecer incessantemente esse processo. Não é preciso dizer que nenhum dos "padres murmurantes" quer defender que Francisco – talvez sem perceber, ou porque vem "do fim do mundo" e ainda não compreendeu até o fim a especificidade do sistema das hierarquias, ou também, simplesmente, porque está mal aconselhado – está contribuindo para acentuar as eternas divisões da Igreja, que, no entanto, nunca realmente influenciaram o seu papel.
Porém, sugerem submissamente, um pouco mais de reflexão, de conhecimento, de perspicácia só poderia ajudá-lo a completar a sua obra e a medir os resultados do seu esforço antes mesmo do previsto.
Com a cautela que exigem os assuntos mais delicados, o murmúrio dos padres do "partido romano" chega, assim, ao mais delicado dos assuntos: os pobres, aqueles pobres que Francisco gostaria de ter todos os dias à sua mesa, nas casas dos párocos, entre os fiéis, e pelos quais, em vez disso, dão a entender os seus recados cotidianos, a Igreja não faz o suficiente, desperdiçando dinheiro e deixando-se levar pela salvaguarda dos seus próprios privilégios.
Uma acusação tão dura queima na pele dos monsenhores: como ele pode dizer que ela não faz o suficiente, respondem, se a Igreja, muitas vezes, é a única estrutura que se encarrega dos últimos e do sofrimento das camadas marginais da sociedade?
Ajudar os pobres não significa apenas abraçá-los, como Francisco fazia nas favelas de que onde provém. Eles também podem ser socorridos com o trabalho cotidiano, organizando os jovens, ajudando-os na oração, saciando-os, vestindo-os, instruindo-os: justamente como a Igreja romana e italiana não se cansa de fazer.
O exemplo corre para uma figura inesquecível de príncipe da Igreja, esquivo e hierático tanto quanto generoso, e ainda hoje, por isso, venerado, embora tenha deixado há muitos anos o cargo de vigário do papa.
Dom Ruini, quando era bispo de Roma, costumava reunir na Basílica de São João uma assembleia de abandonados, que se aglomeravam à espera de poder encontrá-lo. Um grupinho de padres e freiras confiáveis ajudava a selecionar uma delegação, tornando-os apresentáveis à Sua Eminência. Depois, subdivididos em duas filas, os desgraçados eram alinhados no corredor ao lado do escritório em que o cardeal fazia as suas audiências.
Ruini se assomava de vez em quando para acompanhar os hóspedes de respeito ao seu elevador pessoal. Quando ele aparecia, os pobres, a seu despeito, se aproximavam para lhe beijar o anel cardinalício, alguns jogando-se no chão pela emoção. E ele os confortava com o seu olhar.
A parábola significa que é possível ser amigo dos pobres, mesmo sem lhes apertar contra o peito e tendo à disposição, dentre outras coisas, um elevador pessoal de serviço para oferecer aos próprios visitantes.
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Os "padres murmurantes" que sentem falta de João Paulo II - Instituto Humanitas Unisinos - IHU