04 Novembro 2015
Em qualquer manhã de dia útil, as crianças em Santo Domingo se amontoam umas atrás das outras nos "motoconchos", ou mototáxis, com seus uniformes escolares azul-claros passando por ônibus, carros e caminhões, com rabos-de-cavalo balançando ao vento.
A reportagem é de Sandra E. Garcia, publicada por The New York Times, 02-11-2015.
Ruben Chery, 33 anos, um barbeiro em um bairro chamado Pequeno Haiti, lembra de ter frequentado a escola pública como outras crianças dominicanas. Ele se recorda da empolgação de despertar e ir para a aula. Mas acima de tudo, como um forte tapa, ele se recorda do momento amargo em que seu professor da sétima série lhe disse que não poderia continuar sua educação, que ele não passaria ao ensino médio.
"Eu não tinha nenhum documento de identidade. Eu não pude concluir o ensino médio", disse Chery. "Eu estou preso à sétima série para sempre."
Por anos, cursar o ensino médio na República Dominicana exigia prova de nacionalidade, um obstáculo que dezenas de milhares de pessoas de origem haitiana –até mesmo aquelas nascidas aqui, como Chery– lutam ao longo de toda a vida para superar e que legam aos seus filhos.
A obtenção dessa prova pode ser quase impossível, o legado de uma burocracia que os acadêmicos dizem que há muito tenta impedir que os filhos dos imigrantes haitianos obtenham um reconhecimento oficial no país.
Os imigrantes haitianos têm dificuldade para conseguir certidões de nascimento para os filhos que tiveram neste país há gerações. Então, quando essas crianças nascidas dominicanas se tornam adultas e têm suas próprias famílias, elas também não contam com nenhuma documentação para provar sua nacionalidade.
"Isso perpetua o ciclo de uma população de segunda classe ou de classe mais baixa no país", disse Shaw Drake, coautor de um livro chamado "Left Behind: How Statelessness in the Dominican Republic Limits Children's Access to Education" ("Deixados para trás: como a falta de nacionalidade na República Dominicana limita o acesso das crianças à educação", em tradução livre, não lançado no Brasil.)
Em 2012, havia 48 mil alunos nas escolas na República Dominicana sob risco de não poderem cursar o ensino médio, por carecerem de identificação apropriada, estima Drake.
As coisas supostamente são diferentes agora.
O Ministério da Educação diz que enviou memorandos em 2013 a todos os diretores regionais de ensino, diretores distritais e diretores de centros de educação os instruindo a permitirem que todos os alunos do ensino fundamental sejam matriculados, independente das crianças possuírem ou não documentos de identidade.
"Agora podemos atribuir um único número aos estudantes", disse Víctor Sánchez, vice-ministro da Educação. "Com esse número, temos um sistema e podemos rastrear os estudantes, lhes permitindo progredir em sua educação."
Mas Wade McMullen, que estudou essas questões como advogado da Robert F. Kennedy Human Rights, uma organização de defesa dos direitos humanos, e que representa diretamente os dominicanos afetados pelas políticas de desnacionalização, não acha que a questão pode ser resolvida com um simples envio de memorando.
"O que acontece com frequência é que o governo emite um memorando, mas não checa se está sendo implantado", disse McMullen. "Um memorando é um bom começo, mas não é suficiente. É preciso haver fiscalização do cumprimento desse memorando para neutralizar a discriminação sistemática que está enraizada na República Dominicana."
Chery agora teme que sua própria filha possa encontrar os mesmos obstáculos que ele. Seus pais –Elviro Chery e Zoraida Felix– chegaram à República Dominicana em 1960 como trabalhadores imigrantes para as plantações de cana-de-açúcar.
"Eles trabalharam como escravos nos campos de cana-de-açúcar e nunca foi pedido para se identificarem", ele disse. "Apenas eram ordenados a cortar cana e viver perto dos campos se quisessem, e foi o que fizeram."
"Minha mãe não conseguiu tirar uma certidão de nascimento para mim", ele acrescentou. "Ela nunca conseguiu se registrar porque não tinha documentos."
O pai de Chery morreu em 2002 e sua mãe em 2005. Isso tornou ainda mais difícil para Chery conseguir documentos de identidade e assegurar que a próxima geração dos Cherys não tenha que lidar com as mesmas armadilhas.
Rubencia, a filha de Chery, está agora na 2ª série. "Eu fiz um acordo com a professora dela", disse Chery, que pediu à professora que a deixasse ingressar na 1ª série, apesar de ela já ter 9 anos. "Ela começou tarde."
Segundo a nova política, Rubencia supostamente poderá cursar o ensino médio, mas não o ensino superior, porque essas instituições ainda exigem documento de identidade para matrícula. "Ela estará limitada por não possuir uma identidade", disse Chery.
"Há uma classe enorme de pessoas sem direito a ensino superior", disse McMullen. "O que temos é uma solução proposta pelo governo, dizendo que esta lei lava suas mãos de qualquer responsabilidade."
Chery ainda deseja estudar e ter uma profissão. Além da necessidade de uma renda sólida, ele disse, ele também se sente "inferior, inseguro, inválido. Não sinto que sou a pessoa que quero ser".
Ele viu as longas filas de imigrantes haitianos e dominicanos de descendência haitiana aguardando para se registrarem há poucos meses. Aqueles que não se registrassem, alertou o governo, poderiam ser expulsos do país.
O prazo terminou em junho e, segundo o governo, 40 mil haitianos decidiram deixar o país por conta própria em vez de enfrentarem o risco de uma deportação repentina e perderem todos seus pertences no processo.
A República Dominicana disse que iniciou a deportação das pessoas sem documentos que permanecem no país e não são registradas. Cerca de 4.650 pessoas foram expulsas até o momento, segundo o governo.
"Não haverá caça às bruxas", disse Washington Gonzalez, o vice-ministro do Interior e Polícia. "Nós queremos um processo normal."
Dezenas de milhares de pessoas se registraram junto ao governo na esperança de permanecer no país, disse o governo. Chery não foi uma delas. Sem documentos para apresentar, ele decidiu que era inútil.
"O governo não me reconhecerá como cidadão", ele disse.
As autoridades estimam que 100 mil imigrantes não se registraram. Mas até mesmo pessoas que acreditam que seus documentos estão em ordem podem se deparar com problemas que podem fazer suas vidas virarem de cabeça para baixo.
Formena Michel, 56 anos, disse que foi tirar sua carteira de identidade dominicana quando tinha 14 anos, usando sua certidão de nascimento como prova. O escrivão lhe deu sua carteira de identidade, disse Michel, mas ficou com a certidão de nascimento e nunca a devolveu.
Michel seguiu em frente com sua vida. Ela se casou e teve 10 filhos, conseguindo tirar certidões de nascimento para todos eles. Seus filhos foram os primeiros da família a concluir o ensino médio.
Mas dúvidas a respeito da identidade ainda surgem. Michel disse que seu filho mais novo tentou recentemente tirar um passaporte para visitar a Espanha, mas ele lhe foi negado. O governo alegou que sua mãe era haitiana, de modo que ele não conseguiu receber um passaporte dominicano.
"Eles disseram que não conseguiram me encontrar nos registros, em nenhum livro ou lista", disse Michel, uma empregada doméstica.
O governo informou Michel que o documento de identidade que estava usando não era dela, mas sim pertencia a outra pessoa. Temendo ser deportada, ela está indo a audiências para tentar provar que é dela.
Situações como essa acontecem com frequência porque "os funcionários locais cresceram em uma sociedade com profundos sentimentos anti-haitianos e tomam as leis nas próprias mãos", disse McMullen, impedindo os imigrantes haitianos ou dominicanos de descendência haitiana de terem acesso aos direitos que as leis dominicanas lhes concedem.
Por ora, Chery não está particularmente preocupado com a possível ameaça de deportação. Sua principal preocupação é que sua filha receba educação.
"Eu quero que ela tenha uma carreira", ele disse.
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República Dominicana nega carteiras de identidade e ameaça deportar até os próprios dominicanos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU