16 Outubro 2015
"A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, da qual o Brasil é signatário, também previu o direito a essa liberdade, com outra redação: Artigo XVIII. Todo o homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião. Este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular", escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul, membor da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
Eis o artigo.
O feriado de 12 de outubro recorda Nossa Senhora Aparecida, reconhecida como padroeira do Brasil pela Lei n. 6.802, de 30 de junho de 1980, portanto, quando o país ainda vivia em plena ditadura, o que, lamentavelmente, não constitui bom sinal: “Artigo 1º. É declarado feriado nacional o dia 12 de outubro, para culto público e oficial a Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil”. Não é de se duvidar que o regime militar, na época já totalmente desmoralizado, pretendesse buscar apoio na Igreja Católica, justamente aquela que reunia as vítimas da ditadura em defesa dos seus direitos contra os desmandos do regime de então.
Para quem é ateu, agnóstico, ou professa outra religião que não a católica, essa lei bem poderia ser acusada de inconstitucional, pois a Constituição Federal identifica a nossa República como laica, própria de um Estado democrático e de direito, garantida a liberdade de religião, reservando a ela, inclusive, vantagens tributárias:
Artigo 5º, inciso VI: é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.
Artigo 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: ... VI - instituir impostos sobre: a)... b) templos de qualquer culto;
A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, da qual o Brasil é signatário, também previu o direito a essa liberdade, com outra redação: Artigo XVIII. Todo o homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião. Este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular.
Por motivos óbvios, a palavra homem aí presente, ainda era tributária naquela época - e ainda hoje resistindo muito - do poder de mando exclusivamente reservado aos homens. Ela tem de ser lida como pessoa, incluindo evidentemente o gênero feminino, qualquer ser humano.
Independentemente, entretanto, da interpretação que se faça das leis e das muitas diferenças entre as religiões, a própria história do que deu origem à devoção cristã a essa Nossa Senhora brasileira, oferece oportunidade, no feriado de 12 de outubro, para crentes e não crentes questionarem todo o mistério sempre associado a um evento extraordinário, desafiador da razão, considerado por grande parte do povo como milagre. Três pescadores lançavam suas redes no Rio Paraíba, no longínquo 1717, sem nenhum sucesso, quando eles recolheram a imagem de um corpo de mulher sem cabeça. Em nova tentativa de pesca, as redes trouxeram a cabeça que faltava ao corpo, a partir daí recolhendo tal quantidade de peixes a ponto de o barco onde eles se encontravam quase submergir.
Quantas ilações podem ser pensadas desse fato? Seja ele milagre ou não, a partir do seu contexto histórico e da simples comparação que dele se faça com a vida de Maria e de Jesus Cristo Seu Filho, isso pode ser conferido em outra história, a dos evangelhos inscritos na bíblia. Os pescadores eram pobres, gente simples, sem maior instrução como ontem e ainda hoje no Brasil a maior parte deles vive, e como as/os apóstolas/os do Filho de Maria também eram; a imagem era de uma negra, numa fase histórica do país, marcada pela exploração da mão de obra negra e escrava, mantida nessa condição por gente rica, com poder político, jurídico e religioso, em tudo semelhante ao condenado por Ele:
“Ai também de vós, doutores da lei, que carregais os homens com pesos que não podem levar, mas vós mesmos nem sequer com um dedo vosso tocais os fardos” (Evangelho de São Lucas, 11,46).
A cabeça dessa negra estava separada do corpo, podendo-se deduzir daí o quanto a opressão contrária às liberdades humanas mutila as pessoas, degola a possiblidade de pensamento, consciência e vida das suas vítimas; a pesca abundante, após a cabeça ser ajustada ao corpo, dá uma ideia precisa da condição de dignidade do ser humano, de corpo inteiro, só podendo ser reconhecida, respeitada e garantida com a partilha do alimento farto também estendido às/aos pobres, uma hipótese historicamente impedida aqui e no mundo todo pelo sistema econômico capitalista do passado e do presente.
A liberdade de religião, assim, exercida com a responsabilidade própria de toda a liberdade justa, exatamente aquela que não abusa, não transforma toda a pessoa e toda a natureza em coisa, em mercadoria, constitui uma convincente e severa advertência contra todas aquelas outras liberdades com poder de reduzir ou impedir a liberdade alheia, caso típico de um outro deus, o do mercado, como o livro “A idolatria do mercado. Ensaio sobre economia e teologia” (Petrópolis Vozes, 1989) de Hugo Assmann e Franz Hinkelammert comprova:
“No cerne da implantação do sistema de mercado encontramos as “mercadorias-ficção”: o dinheiro, e todos os bens produzidos pelo homem, reduzidos a mercadorias; a natureza e todos os recursos naturais, reduzidos a mercadorias, e o próprio ser humano jogado em meio aos mecanismos cegos do mercado como simples mercadoria. O sistema de mercado só se torna efetivamente tal quando se instaurou definitivamente a crença de que ele é, plenamente, um sistema auto-regulador. O essencial do mito do mercado consiste na “hypóstasis”, isto é, na suprapersonalização do mercado com atributos de agente autônomo. Uma vez chegados a tamanha fé, os homens puderam abrir-se a uma confiança ilimitada. Não importava se os “moinhos satânicos descartavam todas as necessidades humanas”. Um dia, o mercado redentor as atenderia todas, na sua mágica benfazeja.” (p. 232/233).
A negra Maria Aparecida pode não ser reconhecida como santa, nem como mãe de Deus e mãe nossa por muitas/os brasileiras/os, mas essa liberdade aí ela não deseja para nenhum/a brasileira, sua própria história servindo de prova. Na água do Rio Paraíba, na cor da sua pele, no achado dos pescadores, e na pesca abundante lá verificada, ela deixou bem claro o significado do seu “aparecimento”: quer navegar no mesmo barco das/os pobres, partilhar com elas/es a vida, o alimento, a justiça e a paz de quem não desiguala e oprime, pois o Seu Deus é Outro, infinitamente bom, amoroso e justo, bem identificado por ela própria quando visitou sua prima Isabel, grávida de João Baptista:
“Deus levanta a sua mão poderosa e derrota os orgulhosos com todos os planos deles. Derruba dos seus tronos reis poderosos e põe os humildes em altas posições. Dá fartura aos que têm fome e manda os ricos embora com as mãos vazias” (Evangelho de São Lucas, 1, 51-53).
A padroeira do Brasil, assim reconhecida por grande parte do seu povo, tem uma história não reduzida a sua imagem, beirando à hipocrisia todo o culto que se lhe preste descolado desta história.
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No mês da padroeira, o direito à liberdade de religião - Instituto Humanitas Unisinos - IHU