28 Setembro 2015
A experiência humana da Igreja é a da dor de tantos, de muitos, que não podem mais esperar. E Francisco foi o seu porta-voz.
A opinião é do historiador da Igreja italiano Andrea Riccardi, fundador da Comunidade de Santo Egídio e ex-ministro italiano, em artigo publicado no jornal Avvenire, 26-09-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O discurso do Papa Francisco na ONU tem uma história sobre as costas. Francisco se reconecta explicitamente à primeira visita de um papa ao Palácio de Vidro, feita por Paulo VI no dia 4 de outubro de 1965, quando gritou: "Jamais plus la guerre! Mai più la guerre!". Era a esperança da Igreja de Roma 20 anos depois do fim do segundo conflito mundial e no coração da Guerra Fria. Uma esperança que não cederia diante dos tantos conflitos desencadeados até 1989 e depois no mundo global (muitos, ainda em aberto, foram os lembrados por Francisco).
Em 1965, muitos aconselharam Paulo VI a se apresentar na ONU como "mestre em verdade", em lei natural ou em civilização. Ele optou, em vez disso, por qualificar a si mesmo e a Igreja com uma imagem humilde, mas cheia de significado: "Perita em humanidade". No seu discurso, Montini escrevera (o que depois foi apagado): "Nós somos antigos".
A experiência em humanidade da Igreja tem uma longa história. Assim como Paulo VI, Francisco, como "perito em humanidade", lembrou: sem espírito, não há paz. Ele citou o seu antecessor: "O edifício da civilização moderna deve se assentar sobre princípios espirituais...".
O papa reiterou a necessidade das Nações Unidas: o que seria do mundo sem a ONU?, perguntou-se. Os poderes – conhecidos e ocultos – levariam a "tremendas atrocidades". Mas a ONU deve estar à altura da sua missão, não burocrática, capaz de responder à necessidade de paz e de justiça, decidida e capaz de limitar também a "submissão asfixiante a sistemas de crédito em relação aos países em vias de desenvolvimento".
Na sua legitimação da ONU, o papa desenvolveu muito a ideia de justiça como coração de uma vida internacional baseada na "fraternidade universal": um grande tema, muitas vezes reduzido a justicialismo.
A justiça não pode esperar. O mundo a exige. Francisco, de modo concreto, indicou um "mínimo absoluto" de justiça, para fazer viver uma família: "Casa, trabalho e terra". Sem esse mínimo, não há vida. E acrescentou: "a liberdade de espírito" (que inclui a religiosa e a educativa).
Esses direitos não são vividos sozinhos, mas "em comunhão com os outros seres humanos". Diante de uma globalização que cria e exalta indivíduos sozinhos, o papa sublinha mais uma vez o valor das relações, da "socialidade humana".
Esse testemunho vem das profundezas da Igreja, que é comunhão e que sabe que não nos salvamos sozinhos. "Nenhum homem é uma ilha" é o título de um famoso livro de Thomas Merton, que o Papa Francisco lembrou ao Congresso dos Estados Unidos da América.
O homem e a mulher não são nem mesmo separados do ambiente. O papa falou de um "direito do ambiente", até porque "qualquer dano ao ambiente é um dano à humanidade". Os pobres, que são descartados e vivem de descartes, são as principais vítimas da violência ao ambiente.
As palavras do papa à ONU fizeram ouvir a voz dos pobres e os gemidos da criação naquele entrelaçamento que Francisco propõe. Nessa perspectiva, o papa levantou o seu grito contra a guerra, meio século depois de Paulo VI.
Ele lembrou as "consequências negativas das intervenções políticas e militares não coordenadas entre os membros da comunidade internacional": essa é a experiência histórica. Ele citou os conflitos abertos, destacou a perseguição aos cristãos e a outras minorias. Mas também a "guerra difusa", ignorada demais, do tráfico de drogas. E quantas outros comportamentos violentos! O tráfico de pessoas, o tráfico de armas, a exploração infantil: todos produtos de um clima consolidado de violência.
Diante desses duros cenários, Francisco reiterou a necessidade de escolhas e políticas contracorrentes, inspiradas na fraternidade universal e na sacralidade da vida. De forma simples mas inovadora, indicou as categorias mais afetadas: pobres, idosos, crianças nascidas e por nascer, doentes, desempregados, abandonados e rejeitados de todos os tipos...
A voz dessa humanidade ferida – não apenas "casos" sociais, morais ou políticos – deu força às palavras do Bispo de Roma. Porque a experiência humana da Igreja é a da dor de tantos, de muitos, que não podem mais esperar.
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Por experiência em humanidade. Artigo de Andrea Riccardi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU