17 Setembro 2015
A situação era ruim e ficou pior, mas nenhuma das consequências dos últimos dias era imprevisível diante da fraqueza da economia, das decisões erradas do governo e da turbulência política. Na sexta-feira 4, a pesquisa semanal do Banco Central com as instituições financeiras identificou uma nova queda da previsão do PIB em 2015, dos 2,26% negativos apurados uma semana antes para -2,44%. Na quarta-feira 9, a Standard & Poor’s, agência de classificação de riscos, anunciou o rebaixamento da nota do Brasil, de BBB-, o menor grau de recomendação de investimento, para BB+, o primeiro do patamar especulativo. Apesar da credibilidade abalada pela atribuição de notas favoráveis a bancos quebrados na crise de 2008, agências como a S&P são levadas em conta pelo setor financeiro e o rebaixamento deve resultar em restrição e encarecimento do crédito para o País, e menor atratividade aos investimentos estrangeiros.
A reportagem é de Carlos Drummond, publicada por CartaCapital, 16-09-2015.
Na sua justificativa, a S&P destacou que o crescimento dos desafios políticos afeta a capacidade de o governo submeter ao Congresso um Orçamento para 2016 “consistente com o ajuste fiscal”. O Projeto de Lei Orçamentária Anual para 2016 foi encaminhado ao Senado, em 31 de agosto, pelo ministro do Planejamento, Nelson Barbosa, com previsão de um déficit de 30,5 bilhões de reais, ou 0,5% do PIB. Dois dias mais tarde, após uma reunião de alguns grandes empresários com o ministro Joaquim Levy, da Fazenda, o governo retrocedeu para a definição anterior, de obter um superávit de 0,7% no próximo ano.
Antes do anúncio feito pelo governo na segunda-feira 14, com propostas de aumento de receitas e de corte de gastos, tornou-se mais acirrada a discussão sobre o tema. Alguns protagonistas abandonaram o discurso aparentemente neutro em favor da austeridade e passaram a apontar quem ficará com a conta.
O relator do Orçamento, deputado Ricardo Barros, do PP, admitiu a possibilidade de cortes no Bolsa Família, um programa com 51,2 milhões de beneficiários. O presidente da Câmara, Eduardo Cunha, do PMDB, considerou inevitável reduzir os programas sociais e citou o Fundo de Financiamento Estudantil, o Fies, com 2 milhões de estudantes incluídos. O ministro das Comunicações, Ricardo Berzoini, confirmara um corte no programa de habitações populares Minha Casa Minha Vida, que engloba 2,17 milhões de unidades entregues e 1,69 milhão contratadas até março.
O alvo principal, nunca assumido, da artilharia contra os gastos sociais do governo, dissimulada por apelos à responsabilidade fiscal e ao equilíbrio orçamentário, são direitos garantidos pela Constituição de 1988, base da concessão de benefícios rotulada como irresponsável no caso dos governos a partir de 2002. Interpretações à parte, não se trata de exclusividade de uma corrente política. Os gastos sociais aumentam de modo consistente desde 1998, mostram os economistas Sérgio Wulff Gobetti e Rodrigo Octávio Orair no trabalho Flexibilização Fiscal: Novas evidências e desafios, a ser publicado em breve pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
A média de crescimento real da despesa primária pouco variou no período e isso “evidencia não só uma elevada rigidez da despesa, mas certa inércia, associada principalmente aos gastos sociais e, mais precisamente, aos benefícios sociais previdenciários e assistenciais”, anotam os autores. A tendência é crescer acima do PIB “tanto mais quanto menor for o crescimento da economia”. Há um movimento de expansão do gasto social que “independe de viés político-partidário” e reflete as pressões em favor de transferências redistributivas e da “consolidação de um Estado de Bem-estar Social com ampliação do acesso a serviços sociais básicos pela população”.
A situação está longe de ser uma singularidade brasileira. As pressões por proteção social governamental crescem desde os anos 1980 no mundo e se intensificaram nas últimas duas décadas na medida do enfraquecimento financeiro das nações, inclusive nos países avançados, devido à renúncia da tributação dos mais ricos, mostra o sociólogo alemão Wolfgang Streek: “A crise financeira do Estado não se deve ao fato de a massa da população, induzida por um excesso de democracia, ter retirado demasiado para si dos cofres públicos. Ao contrário, os maiores beneficiários da economia capitalista pagaram demasiado pouco, aliás, cada vez menos, aos cofres públicos”. Se houve uma “inflação de reivindicações”, que levou a um déficit estrutural das finanças públicas, este registrou-se nas classes altas, cujos rendimentos e patrimônios aumentaram rapidamente nos últimos 20 anos, alimentados por benefícios tributários.
O alerta dos economistas sobre a tendência de aumento dos gastos sociais e a dificuldade de financiá-los põe em xeque afirmações como aquela do presidente do Senado, Renan Calheiros, a respeito da necessidade de se discutir “primeiro os cortes, depois as receitas”. Do lado do aumento das receitas, o governo cogitou a reintrodução da Cide, e a criação de uma quarta faixa de alíquotas do Imposto de Renda, entre 30% e 35%, para os indivíduos de renda mais alta, segundo anunciou Levy na terça-feira 8. Outro recurso seria elevar o imposto pago por donos de empresas.
Havia preocupações, no Planalto e no Congresso, em relação a um reajuste da Cide, dado o seu impacto inflacionário. Concluiu-se que entre recompor minimamente a força econômica do Estado com risco de aumentar a inflação e agravar a recessão o governo parece preferir a última alternativa. Quanto à proposta de uma nova faixa do IR, o cuidado de assessores presidenciais em esclarecer que se tratava de uma posição ainda não fechada indicava a baixa disposição de Brasília em patrocinar medidas para reduzir a injustiça do sistema tributário, um dos mais regressivos do mundo.
Reforça ainda a impressão de o governo não ter uma estratégia para reequilibrar a economia e encaminhar a retomada do crescimento, como transpareceu nos avanços e recuos em relação à possibilidade de reintrodução da CPMF, o chamado “imposto do cheque”, e à proposta orçamentária para 2016.
A presidenta Dilma Rousseff, de quem se poderia esperar, por força do ofício, o papel de fiel da balança, dias depois de dizer que cortou “tudo o que poderia ser cortado” no Orçamento e que o País não pode “voltar atrás” e perder programas sociais, defendeu, no discurso de 7 de Setembro, a adoção de “remédios amargos”. O oposto fez Lula no dia seguinte, durante uma visita ao presidente do Paraguai, Horácio Cartes. Para o ex-presidente, “os gastos com programas sociais não devem ser deixados de lado no Orçamento”. Outros países “ficaram mais pobres com ajustes fiscais muito fortes”.
Não ficar preso à visão tradicional poderia ser um bom começo para enfrentar a questão do Orçamento. O economista Paulo Kliass, entre outros, considera a existência ou não do déficit primário um falso debate. “A verdadeira questão é como o governo balanceará o Orçamento”. Os conceitos de déficit e superávit nominais foram um “artifício criado pelo establishment financeiro internacional, a partir da década de 1980”, na crise da dívida externa dos países em desenvolvimento, para dar maior grau de coerção ao pagamento dos juros e do serviço da dívida. Uma política só será responsável, segundo definiram os representantes do sistema financeiro, se apresentar um saldo de receitas superior às despesas vinculadas a investimentos, programas sociais, pagamento de pessoal e semelhantes. O pagamento dos juros e serviços da dívida pública não entra nessa conta. “Assim, o governo é forçado a realizar um esforço fiscal enorme para obter sobras de recursos para cobrir as despesas financeiras. Uma inversão total de prioridades.”
Alguns números do Tesouro Nacional ilustram a inversão de prioridades criticada por Kliass. O pagamento mensal médio de juros da dívida pública para os seus credores, constituídos em mais de 90% por instituições financeiras, supera 31 bilhões de reais mensais. O déficit previsto na proposta orçamentária para o próximo ano é de 30,5 bilhões, equivalentes a um mês de pagamento de juros da dívida pelo governo.
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No Brasil, ajuste fiscal liberou uma disputa pela civilização - Instituto Humanitas Unisinos - IHU