09 Setembro 2015
No calor escaldante de um meio-dia de agosto na ilha grega de Lesbos, Ziad Mouatash salta fora de um bote inflável superlotado e toca o solo da União Europeia pela primeira vez. O jovem de 22 anos de Yarmouk – campo de refugiados palestino à beira de Damasco que foi sitiado e bombardeado desde 2012 pelas forças de Bashar al-Assad e recentemente foi invadido pelo ISIS e a Frenta Al-Nusra, filiada à Al Qaeda – abraça todos à sua volta, em êxtase por estar vivo.
A partir da costa grega, ativistas e moradores observaram impotentes o motor do barco quebrar a cerca de três quilômetros dali, a água entornando no bote de borracha que mal era capaz de flutuar. Crianças e adultos gritavam desesperadamente por ajuda, até serem rebocados para a Grécia por outro barco de refugiados vindo da Turquia.
A reportagem é de Jesse Rosenfeld, publicada por The Nation e traduzida por Outras Palavras, 04-09-2015.
Mouatash pagou mais de mil euros (mais de 4 mil reais) a traficantes de pessoas na Turquia por essa experiência de quase-morte, mas, segundo ele, a escolha era muito menos arriscada do que continuar se escondendo numa Damasco em deterioração, que duas semanas antes ele havia trocado pela Turquia. Como palestino que cresceu em campos de refugiados da Síria, Mouatash é apátrida, mas tem um irmão em Paris e espera começar vida nova na França.
Ele anda para cima e para baixo da costa, incerto sobre que direção tomar, enquanto ativistas locais tentam juntar os recém-chegados para dizer-lhes que precisam começar uma caminhada de mais de 60 quilômetros a pé, até um centro de registro do outro lado da ilha.
“Graças a Deus consegui chegar até aqui. Estou livre, estou vivo!”, exclama Mouatash, tomado pela emoção.
Embora tenha escapado dos horrores da massacrante guerra civil da Síria, Mouatash está apenas começando uma difícil jornada pela Europa. Terá de cruzar mais fronteiras ilegalmente; descansar em campos sujos e improvisados; pagar traficantes para ajudá-lo a cruzar essas fronteiras; esquivar-se da polícia de imigração; e dormir em parques e campos, antes que possa reunir-se com seu irmão. Ainda assim, ele é um dos que têm sorte. Quatro dias depois de sua chegada, uma balsa virou ao largo da ilha grega de Kos e seis sírios – incluindo um bebê – afogaram-se.
Segundo a tenente Eleni Kelmani, porta-voz da guarda costeira de Lesbos, mais de dois mil refugiados estão aportando diariamente na ilha. Ela observa que esse ensolarado paraíso turístico viu a chegada de 75 mil dos cerca de 120 mil refugiados que aterrissaram na Grécia neste ano. Fora de seu escritório, centenas deles dormem perto de carros estacionados ou em tendas à beira do porto.
“É óbvio que, se a austeridade não tivesse atingido a Grécia, teríamos melhores condições de lidar com esta crise”, diz Kelmani. Ela fala francamente, enquanto tenta manter a Guarda Costeira fora da briga política doméstica do país.
O partido de esquerda que governa a Grécia, Syriza, é um dos poucos membros da União Europeia a clamar por uma abordagem de “solidariedade” em toda a Europa para reassentar os refugiados que chegam de algumas das piores zonas de conflito do mundo. É uma postura completamente contrária à dos políticos de extrema-direita, anti-imigração e nacionalistas, da UE, que pedem uma Europa fortificada, para tornar o mais difícil possível a viagem dos que buscam asilo, a fim de impedi-los de chegar.
Contudo, com a economia grega fragilizada pelas medidas de austeridade impostas pela UE, o governo do Syriza não pode fazer muito. Ao invés de encontrar solidariedade e uma estratégia de ajuda coordenada em toda a Europa, os refugiados – a grande maioria da Síria, do Afeganistão e, em menor extensão, do Iraque – estão chegando a Lesbos apenas para deparar-se com serviços públicos deteriorados.
Homens jovens, assim como famílias – inclusive mães com crianças nascidas há poucas semanas – fazem fila à beira das rodovias na caminhada de 13 a 20 horas a pé, pela ilha montanhosa. As leis locais impedem que tomem táxis, embarquem em transporte público ou fiquem em hotéis antes de receber os documentos gregos, e há apenas quatro ônibus para transportar pessoas para os dois campos de trânsito e triagem, segundo Kelmani. Um punhado de ativistas voluntários conduz pela ilha as mulheres grávidas, as crianças pequenas e os idosos, mas a maioria não tem escolha se não andar.
Ao lado de uma curva cega, a meio caminho entre a parte norte de Lesbos, onde os refugiados chegam, e o centro de triagem, perto da principal cidade de Mytilini, os carros desviam freneticamente para não passar sobre Abbas Bari e seu amigo Sayed Hassan.
Os dois jovens, vindos da cidade de Basra, no sul do Iraque, escaparam de milícias e arriscaram tudo apenas para ser quase mortos por atropelamento enquanto cochilavam à beira da estrada, depois de caminhar por dez horas. Quando eu os desperto para sugerir que se movam até um campo, eles ficam inicialmente nervosos e com medo, imaginando que eu possa roubá-los. A difícil jornada através do Iraque e da Turquia deixou-os desconfiados de todo mundo, mas depois que expliquei a situação e lhes ofereci um pouco d’água, Bari se abriu.
Ele havia trabalhado como treinador de cães para o governo iraquiano e como tatuador. Entre os poucos pertences que trouxe consigo estão um grande frasco de tinta e uma coleção de desenhos de tattoo, muitos dos quais estão gravados em seu bíceps. Mas disse que foi o treinamento de cães de guarda para o exército que despertou a ira das milícias locais, embora não especifique quais.
“Eles mataram um dos meus cachorros e depois fizeram ligações telefônicas ameaçadoras”, diz, fumando um cigarro iraquiano de um maço que trouxe consigo. Temendo por sua vida, o jovem de 29 anos escapou em pânico da cidade, deixando para trás a esposa e duas crianças. Agora Bari espera chegar à Finlândia, onde planeja recomeçar a vida em segurança, juntando-se à família depois de conseguir se estabelecer. Mas ainda olha para a destruição de sua pátria com amargura. Culpa um ator acima de todos os outros: os Estados Unidos.
“A América matou as pessoas e destruiu o Iraque. Estavam só atrás do petróleo”, diz, citando a invasão de 2003 como a fonte do caos atual que o forçou a imigrar. Apesar do seu papel na criação desse deslocamento em massa, nem os Estados Unidos nem seus aliados europeus naquela guerra estão fazendo muita coisa para receber os refugiados gerados por sua ocupação fracassada.
À medida em que eu viajava com as pessoas em busca de asilo em sua caminhada pela Grécia, ouvi várias histórias semelhantes de afegãos, cujo deslocamento tem raiz nas despojos da invasão de 2001. E dezenas de refugiados sírios falaram que fugiram de seu país por causa da natureza aparentemente interminável da guerra regional por procuração que o está destruindo. Embora culpem Assad por sua brutalidade, culpam igualmente os Estados Unidos, a Europa e seus aliados do Golfo Pérsico e da Turquia por inundar o país com armas e soldados que agravaram o conflito.
Ainda assim, nos campos de trânsito da ilha de Lesbos não há sinal algum de que a Europa assumirá responsabilidade por uma crise política que está levando milhares de pessoas a essas condições insuportáveis de vida. Ao contrário, a tarefa de cuidar dos refugiados tem sido largada para voluntários locais e meia duzia de ONGs subequipadas.
O resultado são dois campos não administrados na ilha pelo qual todos devem passar. O local tem apenas alguns banheiros, que são sobreutilizados e pouco limpos. A comida é providenciada por voluntários locais ou vendida por preços inflacionados por carrinhos de comida e cantinas, que tentam explorar o desespero das pessoas. Os únicos chuveiros são torneiras ligadas a cercas, sem teto ou cobertura, e as pessoas têm que se lavar ao ar livre, onde todos podem vê-las.
Se a pessoa não consegue encontrar lugar em alguma das tendas de exército doadas, ou tem que pagar caro por apetrechos de acampamento ou dormir na sujeira, com pouca sombra e cercada pelo cheiro de milhares de outros cozinhando no calor mediterrâneo. É aqui que eles esperam durante dias, planejando por celulares sua viagem rumo ao Norte e Oeste e assistindo a vídeos do Youtube, com dicas de como driblar a polícia de fronteira.
“Tenho que relembrar meu tempo no Zaire (agora conhecido como República Democrática do Congo) no começo da guerra civil para dizer qual foi a última vez em que estive em um acampamento não gerenciado”, diz Kink Day, líder da equipe responsável por emergências do Comitê Internacional de Resgate (IRC, em inglês), em Lesbos. Ele está chocado com o fato de que mesmo depois de anos trabalhando em zonas de conflito, o IRC seja necessário na Europa. Ele nota que sem dinheiro, vontade ou habilidade do governo para lidar com os refugiados produzidos por esses conflitos, a crise na Grécia era completamente previsível. “Essa é a crise humanitária mais política que já vi. É uma batata quente política”, afirma.
Essas tensões estão tão visíveis nas ruas de Lesbos quanto no Parlamento da União Europeia. Os apoiadores locais do partico fascista grego Golden Dawn se locomovem pela ilha, ameaçando refugiados e ativistas que os ajudam. Muitos gregos sentem simpatia pelos que estão atrás de proteãço, mas muitos outros os acusam de perturbar o turismo e consumir recursos.
Guardas de segurança em praias públicas retiram agressivamente jovens sírios que querem nadar, afirmando que isso incomoda os turistas. Quase ninguém reconhece que estao injetando dinheiro em cafés e restaurantes locais no entorno da cidade de Mytilini. E como um agente de viagem que insistiu em permanecer anônimo me disse, “esses caçadores de asilo são muito bons em vender tíquetes de balsa”.
Quando finalmente recebem seus documentos gregos de registro de refúgio, as pessoas deixam Lesbos tão rápido quanto possível em balsas com destino a Atenas. O convés dos grandes barcos em que viajam parece com uma mistura de um cruzeiro mediterrâneo e uma embarcação de evacuação de zona de guerra, com turistas queimados de sol e pessoas que pedem asilo atropelando-se pelos assentos com a melhor vista e a brisa mais fresca.
“Continuo dizendo aos caras que estamos juntos nesta viagem diz Johnny Mhanna, um ator de 24 anos de idade de Damasco, que voou para Beirute em 2013 para evitar o alistamento pelas forças de Assad. Ele e seus nove outros compnaheiros de viagem estavam passaram a achar que era impossível construir uma vida estável no Líbano, onde a população cresceu um quarto por conta do influxo sírio, enquanto o governo se recusa a reconhecer que aqueles que fogem da guerra são refugiados.
Sem conseguir voltar para a Síria, eles decidiram buscar estabilidade na Áustria ou Alemanha. Ainda assim, se alguém ouvir por alto a conversa deles, será fácil confundir esse grasnar de jovens de bigodes e cabelo bagunçado, vestindo camisetas inglesas irônicas e mexendo em seus iPhones, com uma festa hipster.
Assim que o navio aporta em Atenas, eles se encaminham diretamente à rodoviária. Os que buscam asilo, assim como muitos dos sírios e iraquianos que passam por Atenas, pulam em trens e ônibus que rumam para a cidade costeira de Thessaloniki no mesmo dia e de lá dirigem-se à fronteira grega com a Macedônia o mais rápido possível.
Muitos afegãos, apesar disso, param em Atenas para descansar por muitos dias e planejar seus próximos passos. A maior parte esteve em viagens mais longas e caras, passando pelo Paquistão e Irã antes de entrar na Turquia, e têm menos dinheiro. Histórias de tiros contra eles dados pelos guardas da fronteira e abusos pela polícia iraniana, exército e traficantes são comuns.
“Levamos tiros de guardas das fronteiras iraniana e turca quando tentamos atravessá-las. Fui abatido por traficantes de pessoas e tive que passar meses trabalhando no Irã para ganhar dinheiro suficiente para continuar a viagem”, diz Mohammad Raza, 34 anos, de Mazar-i-Sharif, Afeganistão.
Viajando com nove outros membros de sua família, ele é — como a maior parte dos afegãos que buscam asilo na Grécia — da minoria étnica xiita hazara, num Afeganistão dominado por sunitas pashtuns. Reza descreve a fuga tanto do Talibã quando do governo que persegue as minorias.
Por muitos dias, Raza e sua família acamparam com centenas de pessoas, principalmente afegãos, no Parque Vitória, em Atenas. Um dos lados do outrora bem cuidado jardim da cidade é uma tenda de refugiados; a outra metade tem sido, há tempos, o lugar onde viciados locais usam drogas. O parque era o único ponto de descanso que muitos dos refugiados encontravam, ao repousar em Atenas, até o governo abrir um primeiro acampamento de emergência para refugiados em trânsito na cidade, no final de agosto.
O trem que viaja ao longo da noite de Atenas para Tessalônica pode também ser chamado de Asilo Express. É a principal rota, hoje, de pessoas que buscam refúgio na Europa Ocidental e do Norte. Leva transitoriamente para fora da zona do euro — rumo à Macedônia e a Sérvia — apenas para retornarem à União Europeia na Hungria, de onde podem conectar-se a seu destino por terra, segundo o acordo de fronteiras abertas da UE. O trem esgota suas passagens toda noite. A plataforma fica cheia, uma mistura de refugiados e repórteres locais acotovelando-se por uma foto de centenas de pessoas disputando espaços no trem.
Por causa da crise econômica grega, assim como por sua experiência nas ilhas, nem um único refugiado com quem falei planejava ficar no país; mas seus documentos de registro gregos não são considerados suficientes para permitir-lhes comprar passagens de avião para seu país de destino na União Europeia. Isso submete os refugiados a um risco maior, e coloca mais dinheiro nos bolsos dos traficantes de pessoas — como aqueles que deixaram 71 seres humanos sufocar na caçamba de um caminhão, descobertos na Áustria na semana passada.
“Por que conscientemente deixamos que estas pessoas coloquem suas vidas e as de suas famílias em grave risco, se são refugiados de boa fé?”, Day se pergunta. “Quanto mais vamos deixar pessoas sofrerem?”
Essa foi uma pergunta que povoou asmentes de milhares de pessoas em busca de asilo, acampadas numa fronteira demarcada por trilhos de trem entre a Grécia e a Macedônia, na semana passada. A polícia usou a força em uma tentativa de fechar a fronteira, atacando gente de todas as idades com gás lacrimogênico e balas de borracha. Foi uma visão do inferno, reminiscente de imagens da Grande Depressão nos Estados Unidos, quando a polícia atacava pessoas carentes nas estações de trem.
Enquanto os refugiados gritavam e tentavam pressionar a barreira policial, um grupo de políticos alemães, do legislativo estadual da Bavária, fazia perguntas tentando dar sentido à situação. Eles não firmaram nenhum compromisso para ajudar os refugiados, apenas reconheceram a dificuldade enquanto, simultaneamente, diziam compreender as preocupações da Macedônia.
“É uma situação muito difícil, mas a Macedônia é um país pequeno”, disse Martin Neumeyer, um parlamentar estadual do partido de centro-direita União Social Cristã, sobre aqueles que querem passar pelo país balcânico. Parado no meio de uma grande multidão de sírios e afegãos, ele sustenta que a Alemanha já acolheu muitas pessoas em comparação com o resto da Europa. Tanto a Alemanha quando a Suécia receberam consideravelmente mais refugiados que a Grã Bretanha, mas para Neumeyer, o argumento é usado como uma justificativa para a Alemanha restringir a passagem por suas fronteiras, ao invés de encontrar uma solução para realocar as pessoas desalojadas na Europa.
Enquanto centenas de pessoas são enquadradas pela polícia anti-manifestações da Macedônia a algumas centenas de metros dali, Rawa Abdullah, 39 anos, de Latakia, Síria, ficou enfurecida pelos comentários de Neumeyer. Professora de inglês e mãe de três filhos, que fugiu da Síria no mês passado, está tentando desesperadamente chegar à Alemanha com sua família. Já está encalhada na fronteira há quatro dias. Mais tarde neste dia, milhares conseguiram forçar seu caminho pelas linhas policiais e entrar na Macedônia, mas naquele momento ela se sentiu simultaneamente paralisada e determinada a continuar viajando para o norte.
“Não podemos voltar. Aonde iríamos?”
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Vítimas das “Guerras Humanitárias” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU