23 Julho 2015
"Em questões estruturais, traços essenciais do 'modelo' que vinha sendo ensaiado no Brasil estão ameaçados", constata André Biancarelli, professor do Instituto de Economia da Unicamp e coordenador-executivo da Rede D, associação de acadêmicos da corrente desenvolvimentista, em artigo publicado por Brasil Debate e reproduzido por Carta Maior, 22-07-2015.
Eis o artigo.
Além da crise política que se amplia a cada semana, o segundo semestre de 2015 no Brasil se inicia com um quadro econômico angustiante. À exceção da ligeira melhora nas contas externas (cujas razões não deveriam ser motivo para comemoração), todos os indicadores estão piores do que há seis meses: PIB, produção industrial, investimento, inflação, desemprego, renda, níveis de confiança.
E a quase todos eles faltam motivos para melhora no curto prazo. As contas públicas, alvo mais explícito da guinada na política econômica, continuam surpreendendo negativamente, e ninguém mais de fato acredita que as metas neste campo serão cumpridas.
O desastre da opção ortodoxa, da forma como foi feita, não era tão difícil de prever cerca de um ano atrás. A falta de demanda efetiva e de horizonte de crescimento é clara, mas há outra face muito importante nos problemas econômicos atuais.
Em algumas questões estruturais estão ameaçados traços essenciais do “modelo” que vinha sendo ensaiado no Brasil. E nestes, ao contrário da gestão macro, o segundo governo Dilma (ou parte dele) não parece ter jogado a toalha completamente. Daí o provável quadro de impasses à frente. São pelo menos quatro frentes de batalha.
A primeira delas é o petróleo. Ninguém a sério poderia ter dúvidas sobre a centralidade da exploração do pré-sal para o futuro do Brasil. E não apenas do ponto de vista da geração de divisas, receitas fiscais ou do financiamento da saúde e educação. Essa é a nossa grande chance de desenvolvimento – entendido como sofisticação da estrutura produtiva– mas, para isso, precisa ser bem governada, sob o risco de repetir a “maldição dos recursos naturais” vista em outros países. Tanto o modelo de partilha quanto as exigências de conteúdo nacional são dois ingredientes críticos nesta governança.
Não por acaso, estão sob forte questionamento, inclusive por personagens que por vezes se apresentam como “desenvolvimentistas”. Assim como o já prolongado ataque à Petrobras enquanto exploradora principal desta riqueza.
Apesar de todos os problemas da empresa, dos interesses envolvidos e de opiniões no mínimo dúbias (inclusive do ministro da área), a diretriz oficial não parece ter sido trocada – e isso vem sendo reiterado nos discursos presidenciais e mesmo na delicadíssima troca do presidente da estatal, meses atrás. Há concessões e replanejamentos sendo feitos, mas não se pode dizer que o governo tenha abraçado a agenda liberal para o petróleo.
O segundo dilema também se refere ao papel do Estado, mas no setor financeiro. Há mais de uma década economistas liberais e porta-vozes do setor privado aprimoram e repetem os argumentos contra a atuação dos bancos públicos, particularmente o BNDES. Isso a despeito (ou por causa) do importante papel anticíclico que desempenharam em 2009/10 e da pressão concorrencial que exerceram para a redução do custo do crédito.
Além dos subsídios implícitos e das supostas distorções causadas (em um setor que nunca cumpriu a tarefa de financiar o longo prazo), hoje são muito mencionadas a transparência e o favorecimento a setores de engenharia – responsáveis pelo único item da conta de Serviços do Balanço de Pagamentos que apresenta superávit significativo e duradouro.
A já encomendada “CPI do BNDES”, um dos últimos lances do espetáculo surreal que têm sido as relações entre Executivo e Legislativo, tem como óbvio objetivo de fundo enfraquecer ainda mais o banco.
Mas novamente aqui o governo, a despeito do ritmo menor da expansão do crédito público, do aumento na TJLP e até de um flerte inicial com a abertura de capital da Caixa Econômica Federal, não abraçou por completo a agenda liberal. Até por isso o tema segue em pauta.
O terceiro item da lista é a inserção externa. Se é verdade que a diplomacia sob Dilma sofreu nítido rebaixamento de importância em relação à vitoriosa ousadia de seu antecessor, aparecem alguns sinais alvissareiros.
Há uma bem organizada – e muito vocalizada, inclusive e novamente por alguns ministros– agenda de abertura comercial que rejeita a integração regional e ambiciona tratados de livre comércio com Europa e Estados Unidos. Porém, surgem contrapontos importantes nas iniciativas financeiras do grupo BRICS e nas promessas de investimentos chineses em infraestrutura. E a América do Sul voltou a pontuar algumas falas e eventos presidenciais.
A política externa em alguma medida recuperou protagonismo, e se for bem trabalhada, pode render frutos econômicos importantes, num cenário global difícil e no qual o comércio exterior é visto como uma das poucas alternativas para a retomada. Mesmo que não seja assim, há muito o que se fazer nessa área além de repetir platitudes sobre “cadeias globais de valor” ou vantagens comparativas.
Por último, e até mais importante, aparecem as consequências sociais da estratégia de ajuste macroeconômico. Para dar certo, o forte ajuste fiscal combinado com forte correção de tarifas e desvalorização cambial, evidentemente, conta com a elevação do desemprego e a queda na renda real. A redução no custo do trabalho é o objetivo principal, mas nem sempre explicitado, da aposta para uma eventual recuperação do dinamismo.
Isto é a negação pura e simples do caráter distributivo que dava especificidade ao “desenvolvimentismo” de Lula e Dilma, e por isso mesmo tem chances muito pequenas de ser levado às últimas consequências por este governo. A reação da própria presidenta na recente entrevista à Folha de S. Paulo é reveladora: “o meu (ajuste) não é igual ao deles não. Eu não cortei salário real”.
Está cortando, e de maneira surpreendentemente acelerada, mas os limites políticos disso são óbvios. E suas consequências são bem mais importantes do que injustiças cometidas em algumas das medidas do ajuste.
Em suma, o argumento é o de que há mais do que opções conjunturais em disputa neste dificílimo início de segundo governo Dilma. Nos quatro temas estruturais comentados, apesar de sinais dúbios e enormes pressões, a partida não está decidida, e é possível enxergar pelo menos tentativa de resistência e de fidelidade ao projeto que venceu quatro eleições presidenciais seguidas.
Tal como sua contraparte heterodoxa de algumas décadas atrás, tudo indica que a ortodoxia desastrada – por uma questão de inviabilidade objetiva, já clara pra quem quer enxergar – deve ser em breve, pelo menos, amenizada. Nas questões de fundo, também com alguma semelhança em relação aos anos 1980, a situação é de indefinição sobre os rumos do desenvolvimento.
É claro que estes dilemas seriam rapidamente superados se, nas próximas semanas ou meses, prosperar alguma das variantes de golpismo em ação no triste cenário político atual. Neste sentido espera-se que, se o governo Dilma sobreviver, consiga evitar uma outra repetição: a da mudança de rumo verificada na década de 1990.
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A ortodoxia desastrada e os impasses estruturais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU