14 Julho 2015
Em 18 de junho, o Papa Francisco publicou a sua tão esperada encíclica sobre o meio ambiente Laudato Si’, que começa com um verso do Cântico das Criaturas, de São Francisco de Assis. A revista America pediu a vários especialistas que respondessem a este documento histórico. Trechos de suas respostas estão abaixo.
Os artigos são de Kevin Ahern, Drew Christiansen, Daniel P. Scheid, Agnes M. Brazal, Daniel P. Horan e Elizabeth Pyne, publicados na revista America, volume 213, nº 2, edição de 20 a 27-07-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis os artigos.
Sigamos as notas de rodapé
Além da utilização de uma linguagem inclusiva de gênero – a primeira nas encíclicas sociais católicas –, um dos aspectos mais surpreendentes de Laudato Si’ são as notas de rodapé. Francisco se afasta da tradição das encíclicas sociais católicas ao citar várias fontes não católicas oficiais, tais como documentos da ONU, as conferências episcopais nacionais e, de modo mais surpreendente, um místico sufi!
Agora, embora possa parecer um tanto pedante para a maioria dos leitores, as notas de rodapé no ensino papal têm funcionado como uma forma de alertar o leitor para a continuação de uma tradição. Por exemplo, a Caritas in Veritate, a encíclica social de 2009 do Papa Bento XVI, na maior parte faz referência aos ensinamentos sociais oficiais de outros papas. Esta tradição reflete uma teologia específica do papado que entende que o papa deva ser o professor principal da doutrina católica com uma rígida divisão dos papéis entre professor e aluno. Como tal, o papa nunca precisaria aprender de fontes “abaixo” dele. Isso também inclui as declarações emitidas pelas conferências nacionais dos bispos. Sob os pontificados de João Paulo II e Papa Bento XVI, as publicações sociais das conferências episcopais nacionais e dos sínodos foram percebidas como carecendo de competência para um ensino (magisterial) com autoridade. Em Evangelii Gaudium, o Papa Francisco abordou este ponto quando pediu pelo desenvolvimento do “estatuto das Conferências Episcopais” com “autêntica autoridade doutrinal” para melhor servir a missão da Igreja (n. 32).
Embora não tenha sido bem recebida por todos, Laudato Si’ afirma a autoridade destas estruturas regionais com 20 citações de declarações de 18 conferências episcopais nacionais e regionais. A seleção de documentos de várias regiões do mundo parece querer significar algo referente às preocupações expressas pelos bispos quanto aos problemas em jogo. Com efeito, ela construtivamente mostra como a promoção de uma ecologia integral não é apenas a preocupação do Papa Francisco. Embora sutil, é também um aceno para uma visão indutiva e mais descentralizada de Igreja, onde as declarações (os documentos) das conferências episcopais têm valor na formação do ensino social católico universal.
Por Kevin Ahern, especialista em ética teológica e professor assistente de Estudos Religiosos da Manhattan College, Bronx, Nova York
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Uma família cósmica
Esta encíclica oferece tanto soluções éticas como políticas para os males ambientais e as injustiças que o papa descreve. Porém, eu gostaria de salientar duas curas religiosas que ele oferece e que abordam o isolamento social como fonte de injustiça ambiental. Uma delas é teológica, a outra espiritual.
A visão teológica é a de uma família cósmica de criaturas do Deus uno. “[Todos] estamos unidos por laços invisíveis”, escreve Francisco, “e formamos uma espécie de família universal, uma comunhão sublime que nos impele a um respeito sagrado, amoroso e humilde” (n. 89). É nessa visão vivida, como na fraternidade das criaturas de Deus (o Irmão Sol, a Irmã Lua) de São Francisco, onde podemos superar o afastamento uns dos outros, especialmente o afastamento dos ricos para com os pobres, e o distanciamento da humanidade para com o nosso lar terrestre.
Finalmente, o caminho à harmonia ambiental e social é encontrado por meio do cultivo de paz: a paz interior e a paz com a criação. Esta encíclica enxerga a degradação ambiental e a injustiça social como resultados de desequilíbrios dentro de nós mesmos, entre os seres humanos em geral e entre os seres humanos e o mundo natural.
A paz interior, escreve o Papa Francisco, “reflete-se num equilibrado estilo de vida aliado com a capacidade de admiração que leva à profundidade da vida. A natureza está cheia de palavras de amor; mas, como poderemos ouvi-las no meio do ruído constante, da distração permanente e ansiosa, ou do culto da notoriedade?” (n. 225).
Por Drew Christiansen, SJ, ex-editor-chefe da revista America, detém o título de Distinguished Professor of Ethics and Global Human Development, na Georgetown University. Christiansen assessorou os bispos dos EUA na elaboração de seu documento pastoral, de 1991, sobre o meio ambiente intitulado “Renewing the Earth”, e posteriormente organizou e supervisionou o programa de justiça ambiental da Conferência Episcopal americana.
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A comunhão da criação
De muitas maneiras, a muito aguardada encíclica do Papa Francisco Laudato Si’ continua e desenvolve a tradição que São João Paulo II e o Papa Emérito Bento XVI estabeleceram, ainda que ela, de maneira significativa, marca também uma direção audaz e renovada do ensino social católico sobre ecologia. Como temos visto em outras áreas com este papa, há também uma mudança de tom e um movimento em direção a uma visão que muitos ecoteólogos católicos vêm articulando há vários anos. Mais do que os documentos papais anteriores, Laudato Si’ rejeita fervorosamente o antropocentrismo (n. 67), sublinha “um sentimento de união íntima com os outros seres da natureza” (n. 91) e comemora com entusiasmo a bondade da criação e de cada criatura, amada em seu próprio direito por Deus.
O texto começa com São Francisco de Assis e seu famoso Cântico das Criaturas, em que a Terra – “a nossa casa comum” – não é simplesmente um recurso, mas “uma irmã, com quem partilhamos a existência, ora a uma boa mãe, que nos acolhe nos seus braços” (n. 1). Toda criatura, insiste Francisco, “é objeto da ternura”, e até mesmo “a vida efêmera do ser mais insignificante é objeto do seu amor” (n. 77). Os seres humanos são chamados a refletir esse amor, a “amar e aceitar o vento, o sol ou as nuvens, embora não se submetam ao nosso controle”. De fato, Francisco diz mesmo que “podemos falar duma fraternidade universal” (n. 228).
Enquanto São João Paulo II e o Papa Bento XVI afirmam o valor intrínseco de criaturas não humanas e nos exortam a respeitar a gramática de criação, o Papa Francisco incorpora a bondade do cosmo ao núcleo de uma abordagem católica à ecologia (n. 236). A reverência pela criação permite a admiração e o encanto (n. 11) para penetrar em nossos corações e nos chamar a uma “comunhão universal” (n. 76), ao parentesco com todas as criaturas, a um sentido de pertença e de enraizamento (n. 151) e à alegria no cosmo. Afinal, o objetivo final de uma encíclica sobre a ecologia não é apenas as economias sustentáveis e uma ação internacional imediata para com as alterações climáticas, mas também o louvor e adoração ao Criador (n. 87).
Por Daniel P. Scheid, professor assistente de Teologia na Duquesne University. O seu próximo livro, intitulado “The Cosmic Common Good: Religious Grounds for Ecological Ethics (Oxford)”, explora os princípios ecologicamente orientados do pensamento social católico no diálogo com outras tradições religiosas.
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A visão a partir do sul global
Vinda de um arquipélago frágil, onde a subida do nível do mar é a mais alta do mundo e onde os eventos climáticos extremos estão previstos para aumentar ainda mais neste século, fico preocupada com o nosso futuro e, fervorosamente, peço que o apelo do Papa Francisco seja atendido. Esta encíclica sublinha que todos podem fazer algo pela nossa casa comum. Em resposta a este apelo, cada diocese da Igreja, nas Filipinas, em colaboração com outras religiões e organizações da sociedade civil, pode planejar atividades de educação e mobilização das comunidades no sentido de proteger o meio ambiente, os recursos e as espécies ameaçadas na região. Isso, sem dúvida, irá deixar um rastro de mártires ecológicos. A Global Witness relata que cerca de 1 mil ativistas ambientais que se opuseram à mineração, ao desmatamento, etc., em todo o mundo foram mortos entre 2002 e 2013, com os números subindo em 20% em 2014, como um sinal de que estamos em meio a uma crise ambiental global.
Para sustentar este compromisso como “cidadãos ecológicos” é, pois, preciso uma espiritualidade que inspira, estimula e proporciona um sentido ulterior para os nossos atos pessoais e comunitários. Embora Laudato Si’ fale explicitamente de espiritualidade somente no último capítulo, esta encíclica como um todo trata de uma ecoespiritualidade integradora baseada numa ecologia integral que relaciona trabalho e desenvolvimento tecnológico e social com o cuidado da criação e da diversidade das formas de vida e culturas, assim como relaciona-os com uma preocupação especial para com os pobres e vulneráveis. O papa constrói a ideia de que esta espiritualidade encontra sua fonte profunda no evangelho da criação, na comunhão trinitária e no mundo como sacramento desta comunhão.
Por Agnes M. Brazal leciona na St. Vincent School of Theology-Adamson University, nas Filipinas.
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O caráter franciscano de Laudato Si’
O Papa Francisco claramente “capta” tanto a escrita quanto o espírito da tradição teológica e espiritual franciscana. Uma das dimensões mais marcantes, e aparentemente mais polêmicas, de Laudato Si’ é a conexão explícita que o Papa Francisco faz entre pobreza abjeta e degradação ambiental. A verdade é que esta não é uma ideia nova, mas remonta tão distante no tempo como a Francisco de Assis, se não antes. Já de início o Papa Francisco escreve que “a pobreza e a austeridade de São Francisco não eram simplesmente um ascetismo exterior, mas algo de mais radical: uma renúncia a fazer da realidade um mero objeto de uso e domínio” (n. 11). Esta declaração aponta para o centro do abraço da pobreza evangélica de São Francisco como um meio para aprofundar a solidariedade. O que o santo de Assis reconheceu em sua época era que não somente coisas, mas também as mulheres e os homens começaram a ser valorizados em termos financeiros. O valor de alguém vinha a ser determinado pela quantidade de dinheiro de que dispunha, e não pelo valor inerente decorrente do fato de ter sido amorosamente criado por Deus.
O Papa Francisco chama a atenção para a inter-relação entre a realidade das mudanças climáticas globais (em grande parte causada pelos ricos e poderosos do nosso tempo) e os pobres que sofrem os efeitos devastadores de forma desproporcional. A categoria de “os marginalizados” se estende para além da espécie humana para incluir o nosso próprio planeta. Como Papa Francisco diz: “Entre os pobres mais abandonados e maltratados, conta-se a nossa terra oprimida e devastada” (n. 2).
Para Francisco de Assis, uma mudança radical no estilo de vida era obrigatória para se autenticamente seguir o Evangelho. Abraçar a pobreza evangélica como uma forma de protesto contra as injustiças sociais e como um meio para se aproximar da solidariedade levou-o a estar entre os pobres e marginalizados de seus dias.
Por Daniel P. Horan, OFM, autor de vários livros, incluindo “The Franciscan Heart of Thomas Merton”. Atualmente, Horan está escrevendo sua tese doutoral intitulada “Imagining Planetarity: Toward a Postcolonial Franciscan Theology of Creation”.
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A diversidade da vida criada
Embora Laudato Si’ reafirma o ensinamento católico contra o controle artificial da natalidade e do aborto, o único comentário específico sobre gênero ou identidade sexual é breve e um tanto estranho, colocado no final da seção sobre a “ecologia da vida cotidiana”. Na sequência de um tratamento mais substancial do planejamento urbano e das realidades enfrentadas pelos pobres vem uma reflexão sobre a interação do corpo com seu ambiente como uma faceta da “ecologia humana”. E então vem isto: “Também é necessário ter apreço pelo próprio corpo na sua feminilidade ou masculinidade, para se poder reconhecer a si mesmo no encontro com o outro que é diferente. Assim, é possível aceitar com alegria o dom específico do outro ou da outra, obra de Deus criador, e enriquecer-se mutuamente” (n. 155).
Como devemos ler esta afirmação um tanto ampla sobre identidade de gênero e interação? Francisco termina o parágrafo com uma pista, citando a sua Audiência Geral de 15 de abril deste ano: “Não é salutar um comportamento que pretenda ‘cancelar a diferença sexual, porque já não sabe confrontar-se com ela’” (n. 155). Nesse discurso, Francisco criticou a teoria de gênero quando apresentou “a diferença e a complementaridade entre homem e mulher” como base para a reflexão sobre o sacramento do matrimônio dentro “da beleza do plano do Criador”. Por isso, seria um erro ver as sementes de qualquer mudança radical do ensino magisterial sobre gênero e sexualidade no texto de Francisco. Uma declaração geral baseada no direito natural em favor do essencialismo de gênero não é de surpreender.No entanto, a interpretação deve atender a silêncios específicos ou, neste caso, a uma relativa calmaria sobre a sexualidade contra a demanda retumbante por justiça econômica e ecológica, cultivada nos níveis pessoal e político. Num certo sentido, portanto, as cartas foram tiradas, mas os jogadores ainda não as acrescentaram ao seu conjunto. Dentro do desenvolvimento do ensino papal a respeito da “ecologia integral”, este pode ser uma jogada, um movimento notável.
Por Elizabeth Pyne é doutoranda em Teologia na Universidade de Fordham, Bronx, Nova York.
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Louvada seja a criação. Examinando uma encíclica vivificante - Instituto Humanitas Unisinos - IHU