02 Julho 2015
"A Igreja, a mais antiga instituição de poder da história humana, por dois milênios instrumento de controle e conservação social, rompe o seu passado e lança o seu aberto desafio aos poderes do mundo laico. Fá-lo, naturalmente, com sua própria linguagem, que pode ser a de todos, os que têm fé e os que não têm: “Necessitamos de uma nova solidariedade universal", escreve Piero Bevilacqua, historiador, em artigo publicado pelo jornal Il manifesto, 30-06-2015. A tradução é de Benno Dischinger.
"Creio - afirma o historiador italiano - que a esquerda deva captar esta virada cultural que faz época. Ela pode reencontrar o seu universalismo perdido, aquele “internacionalismo proletário”, naufragado com a involução autoritária da URSS, que tinha sido a estrela polar de diversas gerações".
Piero Bevilacqua é professor de história contemporânea na Universidade La Sapienza de Roma. Autor de vários livros, citamos os dois mais recentes: Il grande saccheggio. L’età del capitalismo distruttivo, Laterza, Roma-Bari 2011 e Elogio della radicalità, Laterza, Roma-Bari 2012.
Eis o artigo.
Aferra-se com maior plenitude o alcance eversivo da encíclica Louvado seja, do Papa Francisco – com respeito a toda a tradição milenar da Igreja- se se tem em conta a história do pensamento ambientalista. Em 1967, um historiador americano, Lynn White Junior, publicou em Science um ensaio que causou escândalo. Em seu As raízes históricas da nossa crise ecológica, White sustentava, com notável precocidade, que as condições de progressiva alteração dos equilíbrios ambientais residiam no domínio exercido no Ocidente pela cultura religiosa judaico-cristã. Já na Bíblia, no livro do Gênesis ele encontrava as primeiras origens daquela cultura “E Deus disse: “Façamos o homem à nossa semelhança, e domine sobre os peixes do mar e sobre as aves do céu, sobre o gado, sobre todos os animais selvagens e sobre todos os répteis que se arrastam sobre a terra”.
Estava, portanto a Igreja no centro da acusação. A ampla discussão que seguiu redimensionou em parte as argumentações de White. Alguém recordou que da história do catolicismo fazia parte também São Francisco. Correta observação, principalmente neste caso. Mas São Francisco foi uma estrela solitária. Outros recordam que no Japão, plasmado por uma história religiosa bem diversa, já em fins do século dezenove o desenvolvimento industrial havia gerado graves alterações ambientais. É verdade. Mas atualmente o capitalismo poderia vencer também as resistências religiosas mais radicais. Na realidade, ninguém pôde diminuir o caráter por assim dizer fundador da cultura católica no plasmar a relação dominante homem-natureza na sociedade do Ocidente.
De resto, o próprio Francisco – no interior de um raciocínio “laico” – admite que “o pensamento hebraico-cristão desmitizou a natureza”. Enquanto Max Weber que, além de ser um grande sociólogo, era antes de tudo um historiador das religiões, recordou, nos seus estudos sobre o capitalismo, como as religiões orientais, com o seu animismo, tendessem a tornar sagradas não só as outras criaturas, mas também os territórios, as águas, as montanhas...
Agora é verdade que entrementes a Igreja mudou a sua visão da natureza. Nesta encíclica Francisco recorda as primeiras contribuições “ambientalistas” de Paulo VI, aquelas de João Paulo II, de Bento XVI. Mas, a sua posição é hoje explosiva: “Temos crescido – escreve, a propósito da Terra – pensando que éramos seus proprietários e dominadores, autorizados a saqueá-la... Mas não só não somos mais donos incontestados, somos feitos da mesma matéria que estamos destruindo: “nosso próprio corpo é constituído pelos elementos do planeta, o seu ar é aquele que nos dá a respiração e a sua água vivifica e restaura”.
Aqui o Papa Francisco traz precisamente o mais avançado pensamento científico ambientalista. Se pense nas afirmações surpreendentes a propósito da biodiversidade: “Provavelmente nos perturba chegar ao conhecimento da extinção de um mamífero ou de um volátil, por sua maior visibilidade. Mas, para o bom funcionamento dos ecossistemas são necessários também os fungos, as algas, os vermes, os pequenos insetos, os répteis e inúmeras variedades de micro-organismos”.
Embora não apareça o citado Edgar Morin, com os seus estudos publicados nos volumes de O Método, ou a vasta literatura ecologista radical, a impressão, a marca, me parece onipresente. Não menos coerente com tal impostação é a crítica à cultura dominante: “A tecnologia que, ligada às finanças, pretende ser a única solução dos problemas, de fato não está em condições de ver o mistério das múltiplas relações que existem entre as coisas, e por isso às vezes resolve um problema criando outros”.
Mas, outro aspecto da radicalidade eversiva desta encíclica reside, a meu ver, no fato de que o Papa Francisco evidencia constantemente a conexão entre a violência à natureza e o domínio de classe: a exploração exercida pelas potências econômicas do nosso tempo contra os pobres da terra. Ele capta “a íntima relação entre os pobres e a fragilidade do planeta” e põe em evidência como o saque dos recursos golpeia a economia das populações, enquanto a contaminação prejudica em primeiro lugar os mais débeis. E não permanece num exame vago. É o caso de um recurso como a água. “Um problema particularmente sério é a água disponível para os pobres, que provoca muitas mortes a cada dia”.
Problema que não é fruto da fatalidade: “Enquanto a qualidade da água disponível piora constantemente, em alguns lugares avança a tendência de privatizar este recurso escasso, transformado em mercadoria sujeita às leis do mercado. Na realidade, o acesso à água potável e segura é um direito humano essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das pessoas e, por isso, é condição para o exercício dos outros direitos humanos”.
Enfim, outro elemento parece dar a esta encíclica um perfil político de absoluta novidade. É a denúncia, se não de um inimigo, certamente de um adversário. Sabemos que no passado a Igreja não deixou de exprimir denúncias serradas à sociedade capitalista e às suas injustiças. Na sua doutrina social, nas últimas décadas, veio acentuando a radicalidade destas críticas. Mas, no final uma síntese ecumênica acabava por tornar indistinguíveis os responsáveis. Os agentes, os reais esbanjadores, assumiam um perfil evanescente.
O Papa, naturalmente, não pode descer a casos particulares, mas denuncia abertamente – como recordou E. Scandurra (Il manifesto, 23/6) – que “Muitos daqueles que detêm mais recursos e poder econômico ou político parecem concentrar-se principalmente em mascarar os problemas ou esconder-lhes os sintomas”. E o problema do débito dos países é elucidado como melhor não se podia: “A dívida externa dos Países pobres se transformou num instrumento de controle, mas não acontece a mesma coisa com o débito ecológico. De diversos modos, os povos em via de desenvolvimento, onde se encontram as reservas mais importantes da biosfera, continuam alimentando o desenvolvimento dos Países ricos ao preço do seu presente e do seu futuro. A terra dos pobres do Sul é rica e pouco poluída, mas o acesso à propriedade dos bens e dos recursos para satisfazer as próprias necessidades vitais lhes é vedado por um sistema de relações comerciais e de propriedade estruturalmente perverso”. E, já que o Papa tem palavras para todos, não deixa de recordar as responsabilidades dos governos do círculo político do nosso tempo: “A submissão da política à tecnologia e às finanças se demonstra na falência das Cúpulas mundiais sobre o ambiente”.
Por conseguinte, a Igreja, a mais antiga instituição de poder da história humana, por dois milênios instrumento de controle e conservação social, rompe o seu passado e lança o seu aberto desafio aos poderes do mundo laico. Fá-lo, naturalmente, com sua própria linguagem, que pode ser a de todos, os que têm fé e os que não têm: “Necessitamos de uma nova solidariedade universal”.
Creio que a esquerda deva captar esta virada cultural que faz época. Ela pode reencontrar o seu universalismo perdido, aquele “internacionalismo proletário”, naufragado com a involução autoritária da URSS, que tinha sido a estrela polar de diversas gerações.
Na Itália há um grande precedente histórico no qual inspirar-se. Quando, nos primeiros anos ’60, emergiu a figura do Papa João e se abriu o Concílio Vaticano II, o Partido Comunista abriu um amplo diálogo com o mundo católico, sobre os temas da paz no mundo e da emancipação social. Seguiram-lhe consequências políticas de grande monta, com tantas novas forças que entraram na luta política progressista.
A salvação da casa comum da Terra é hoje o novo terreno de diálogo. Mas, se necessita uma mudança de paradigma e novos dirigentes políticos à altura do desafio, que por certo não podem ser os jovens “roda-amadores” de hoje, na realidade representantes da frente adversária, tardios epígonos de uma cultura sem futuro.
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