29 Junho 2015
A partir de hoje, com a Laudato si', as comunidades cristãs de base têm uma referência poderosa para legitimar as suas batalhas, tanto dentro quanto fora da Igreja oficial.
A opinião é do sociólogo e escritor italiano Guido Viale, em artigo publicado no jornal Il Manifesto, 27-06-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Na encíclica Laudato si', chama a atenção a amplitude das questões abordadas e a competência com que são tratados, que fazem do Papa Francisco um gigante do pensamento, em relação ao qual os políticos que regem os destinos da Europa nada mais são do que anões.
A altura desse pensamento não é atacado, mas exaltado, pelo fato de não desdenhar os detalhes mais minuciosos e humildes, o que nenhum outro chefe de Estado jamais fez: "A educação à responsabilidade ambiental pode incentivar vários comportamentos que têm incidência direta e importante no cuidado do meio ambiente, tais como evitar o uso de plástico e papel, reduzir o consumo de água, diferenciar o lixo, cozinhar apenas aquilo que razoavelmente se poderá comer, tratar com desvelo os outros seres vivos, usar os transportes públicos ou partilhar o mesmo veículo com várias pessoas, plantar árvores, apagar as luzes desnecessárias…" (n. 211).
Essencialmente, essa encíclica faz decorrer a norma que deve regular as relações dos seres humanos entre si, com o ambiente e com o vivente a partir da ordem que vigora nos ecossistemas e das modalidades, ao mesmo tempo dinâmicas e resilientes, com que se reproduzem.
Portanto, regras e finalidades que não podem ser obtidas da história humana, da sua dialética ou das suas hipotéticas tendências como o progresso ou o crescimento, nem de supostas leis do mercado, hipostasiadas em uma espécie de segunda natureza; mas sim de uma espécie de eterno retorno, que é o ciclo através do qual o vivente se reproduz, garantindo e aperfeiçoando vida e relações de cada componente seu na alternância das gerações: uma visão da natureza que deve ser transposta ao processo produtivo, que deve assumi-la como modelo com o fechamento dos seus ciclos, contrapondo-se àquela concepção linear que caracteriza a economia extrativa em que estamos imersos.
O Papa Francisco é expressão direta de Deus dessa modalidade cíclica que preside a reprodução da vida. E Cristo, o Deus encarnado, é a manifestação dessa coincidência entre a lei divina e a circularidade através da qual a vida se perpetua nos ecossistemas. Toda a vida, incluindo a dos seres ínfimos: "os fungos, as algas, os vermes, os pequenos insectos, os répteis e a variedade inumerável de micro-organismos (…) Até a vida efêmera do ser mais insignificante é objeto do seu amor e, naqueles poucos segundos de existência, Ele envolve-o com o seu carinho" (n 34, 77).
Não há eskaton nessa abordagem: não há finalidade diferente da defesa e da promoção da dignidade de cada pessoa e de cada ser vivo.
Por isso, talvez, essa acusação contra as características dominantes da nossa época não começa com a acusação das finanças sobre a qual se aponta a atenção daqueles que fazem uma leitura imediatamente política da encíclica ("A salvação dos bancos a todo o custo, fazendo pagar o preço à população, sem a firme decisão de rever e reformar o sistema inteiro, reafirma um domínio absoluto da finança que não tem futuro", n. 189). Ao contrário, começa da denúncia dos problemas criados pela poluição e pela produção de "centenas de milhões de toneladas de resíduos": problemas dos quais todos carregamos a responsabilidade e que "estão intimamente ligados à cultura do descarte, que afeta tanto os seres humanos excluídos como as coisas que se convertem rapidamente em lixo" (n. 22).
Decorre desse sistema a estreita integração entre ambiente e sociedade, curvada como nunca antes à defesa dos pobres, dos últimos, dos explorados, dos excluídos: "Há uma relação íntima entre os pobres e a fragilidade do planeta". Uma integração que acompanha toda a encíclica e, em alguns dos seus comentaristas, como Raniero La Valle, viram a maior novidade dessa virada papal.
Mas que, em vez disso, tem uma história própria na elaboração de conceitos de justiça social e ambiental ou de conversão ecológica, que são abordagens ao real desenvolvidos em âmbitos seculares, cultivados e às vezes experimentados fora da cultura cristã, mesmo que com a participação de alguns dos seus componentes.
No entanto, a encíclica, às vezes forçando a verdade histórica, busca contínuas bases doutrinais de matriz testamentária ou evangélica, para derrubar a recepção tradicional da mensagem bíblica e cristã: a que confia o domínio incontestado sobre a Terra e sobre todo o vivente ao ''ser humano". Ser humano, e não homem: um termo, este, que a encíclica nunca usa para não atribuir ao gênero masculino a representação de toda a espécie, embora essa perspicácia não o impede, depois, de se pronunciar obstinadamente contra a chamada "teoria do gênero", tal como faz contra o aborto (mas, deve-se notar, não contra a liberdade de decidir a própria morte).
Mas esses são os temas nos quais se baseiam o catolicismo e o protestantismo mais reacionário para continuar a fazer da religião um apoio da conservação; e não há dúvida de que a reunião na Praça de São João, em Roma, "pela vida" e "em defesa da família" – contextual para aquela em apoio do povo grego e dos refugiados, ou seja, de quem já está ou ainda está vivo e quer continuar vivendo – vê neles, acima de tudo, alavancas para contestar a reviravolta que o Papa Francisco tenta impor na doutrina cristã com esse novo posicionamento da Igreja no mundo.
Mas, mais do que recriminar aquilo que há de autoritário e de desumano nas ênfases da encíclica a esses temas – sobre os quais é oportuno que a batalha pela autodeterminação continua mais forte do que nunca –, vale a pena nos determos sobre a vitória do ambientalismo social que essa encíclica sanciona: a vitória de uma cultura nascida e desenvolvida certamente também em alguns laboratórios científicos, mas, principalmente, através da reflexão e do compromisso de milhares e milhares de comitês, associações, mobilizações e a participação de milhões de militantes de todas as idades, de todos os continentes, de todos os gêneros e de muitas e diversas colocações sociais com os quais Francisco também reconhece que aprendeu muito.
Se quem guiou o papa também foi a inspiração divina, o resultado ainda é o de colocar a proteção do ambiente e a busca de uma relação positiva, de recíproco enriquecimento, entre o ser humano e a natureza no centro de toda abordagem para os problemas da justiça social. E vice-versa. E esse talvez seja o sinal premonitório de uma radical mudança de paradigma que está investindo debaixo dos nossos olhos toda a cultura de que nos alimentamos.
Naturalmente, dadas as premissas, é impossível rever todos os temas tratados nessa encíclica. Mas bastam poucas referências. Francisco reitera a urgência de "converter o modelo de desenvolvimento global", sem procurar "meios termos", que são apenas "um pequeno adiamento do colapso".
"Em qualquer discussão sobre um empreendimento, dever-se-ia fazer uma série de perguntas, para poder discernir se ele levará a um desenvolvimento verdadeiramente integral: para que fim? Por qual motivo? Onde? Quando? De que maneira? A quem ajuda? Quais são os riscos? A que preço? Quem paga as despesas e como o fará?" (n. 185). São perguntam que configuram a própria essência da conversão ecológica.
Por isso, ele pede para desacelerar o crescimento (ele propõe uma moratória sobre o ritmo das inovações, respeitando o princípio de precaução) e promover o decrescimento de muitos dos bens e dos processos hoje em voga. Ele contesta o princípio da maximização do lucro, "uma distorção conceitual da economia". Convida a reformar a educação, orientando-a à criação de uma "cidadania ecológica" e enfatiza a importância das ações em nível local, especialmente através da constituição de redes que ajudam a superar o isolamento do indivíduo. E muitas outras coisas que já são, mas serão muito mais a partir de agora, objeto de discussão pública.
A partir de hoje, as comunidades cristãs de base têm uma referência poderosa para legitimar as suas batalhas, tanto dentro quanto fora da Igreja oficial; e quem faz do conformismo aos ditames da Igreja um instrumentum regni – usando a luta contra o aborto, a liberdade de morrer e a livre escolha do próprio gênero como cavalo de batalha – terá muito mais dificuldades para motivar o próprio apoio ou a própria indiferença para com tudo o que ofende ou fere o ambiente, a "Mãe Terra".
Mas a voz do papa, ao contrário da nossa, chega a todo o mundo. E, a partir de hoje, muitos dos temas pelos quais lutamos poderão alcançar – também literalmente – milhões e talvez bilhões de pessoas às quais nunca poderíamos nos dirigir. E isso, especialmente se forem devidamente pressionados, os poderosos da Terra deverão levar em conta. Até aqui, o papa. O resto cabe a nós.
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Mais do que "antiglobalização", uma encíclica ecológica. Artigo de Guido Viale - Instituto Humanitas Unisinos - IHU