Por: André | 26 Junho 2015
A absoluta liberdade do mercado como solução para os problemas do mundo, a oposição a qualquer proposta de mudanças estruturais no modelo de desenvolvimento: dois “dogmas” do capitalismo atual que o magistério de Francisco questiona, provocando as críticas de alguns “think tanks”.
A reportagem é de Andrea Tornielli e publicada por Vatican Insider, 25-06-2015. A tradução é de André Langer.
Um dos pontos nevrálgicos da encíclica Laudato si’, estreitamente vinculada à exortação Evangelii Gaudium, é a crítica global do atual sistema de desenvolvimento, convertendo a emergência ecológica no rosto contemporâneo da questão social. Francisco afirma: “para além de qualquer previsão catastrófica, é certo que o atual sistema mundial é insustentável”.
Muitas páginas do novo documento, submetido a críticas antes da sua publicação (e, portanto, antes que se conhecesse seu conteúdo), são discutidas desde diferentes pontos de vista. A tese e a hipótese de Francisco, por exemplo, são qualificadas como “imprudentes” pelo Pe. Robert Sirico, presidente do Acton Institute, um “think tank”, cujo objetivo é a promoção de “uma sociedade livre, virtuosa e humana” mediante a reflexão profunda sobre o vínculo entre a fé e a liberdade. Este instituto, de fato, apóia a absoluta liberdade do mercado e dos mercados como solução para os problemas do mundo e trata de relacioná-los com a doutrina social da Igreja.
Na encíclica Laudato si’ o Papa Bergoglio ofereceu um amplo panorama realista sobre a situação, denunciou “a submissão da política à tecnologia e às finanças”, disse que “muito facilmente o interesse econômico chega a prevalecer sobre o bem comum e a manipular a informação para seus projetos não se vejam afetados”. “Os poderes econômicos – lê-se na encíclica – continuam justificando o atual sistema mundial, onde primam a especulação e a busca da renda financeira”, e hoje “qualquer coisa que seja frágil, como o meio ambiente, fica indefesa diante dos interesses do mercado divinizado, convertidos em regra absoluta”.
“A economia assume todo desenvolvimento tecnológico em função do lucro [...] As finanças afogam a economia real. Não se aprenderam as lições da crise financeira mundial e com muita lentidão se aprendem as lições da deterioração ambiental”, da mesma maneira que se afirma que os problemas da fome “serão resolvidos com o crescimento do mercado”. “Mas o mercado por si mesmo não garante o desenvolvimento humano integral e a inclusão social”.
Bergoglio também recordou que “a política não deve se submeter à economia”, e que esta não deve se submeter à tecnocracia. Sobre a crise financeira, além disso, afirmou: “A salvação dos bancos a qualquer custo, fazendo a população pagar o preço, sem a firme decisão de rever e reformar o sistema por inteiro, reafirma uma domínio absoluto das finanças”, que só poderá gerar crise. Francisco pediu para “evitar uma concepção mágica do mercado, que tende a pensar que os problemas se resolvem apenas com o crescimento dos lucros das empresas ou dos indivíduos”, e observou que “o princípio da maximização do lucro, que tende a se isolar de toda outra consideração, é uma distorção conceitual da economia” e que “hoje alguns setores econômicos exercem maior poder do que os próprios Estados”.
O verdadeiro ponto do qual nasce o enfrentamento entre o atual Pontífice e os verdadeiros gânglios do poder mundial é aquele que indica sem meias palavras que “esta economia mata”.
Em seu comentário à encíclica, publicado pelo Wall Street Journal e pela newsletter do Acton Institute, o Pe. Sirico afirma: “Vamos direto ao ponto: muito do que se lê na encíclica do Papa Francisco sobre a proteção ambiental, a Laudato si’, coloca um desafio importante para aqueles que apóiam o livre mercado, para aqueles que acreditam que o capitalismo é uma força potente para o cuidado do planeta e para fazer que as pessoas saiam da pobreza”. Após ter indicado que um dos “pontos mais apreciados” da carta papal é o convite para a discussão, Sirico acrescenta: “Mas grande parte dos pontos discutidos nesta encíclica e muitas das hipóteses que deles surgem são imprudentes. Há um forte preconceito contra o livre mercado, e sugestões de que a pobreza é o resultado de uma economia globalizada”.
O presidente do Acton Institute reivindica que “o capitalismo estimulou a maior redução da pobreza global da história mundial: segundo a Organização Internacional do Trabalho, o número de pessoas que vivem com 1,25 dólar ao dia passou de 811 milhões, em 1991, para 375 milhões, em 2013. Esta é a uma estatística entre todos os argumentos favoráveis ao capitalismo. Um debate honesto entre os especialistas eliminará esta mentira”. Além disso, na sua opinião, “a encíclica concede imprudentemente demasiado à agenda ambiental laica, por exemplo, denegrindo os combustíveis fósseis”. E conclui: “A criação de riqueza pode diminuir a pobreza, e a pobreza e a exploração andas muitas vezes de mãos dadas”.
Então, a economia que mata, o empobrecimento que aumenta nos países desenvolvidos (deveriam fazer-nos refletir as imagens da luta física nos supermercados ingleses Tesco para tratar de adquirir alimentos com um enorme desconte porque já estão com a data de validade vencida, ou o simples dado que demonstra o aumento da pobreza absoluta entre as famílias italianas, que passaram de 5,2%, em 2011, para 7,9%, em 3013) e as responsabilidades do atual sistema capitalista no qual os mercados financeiros campeiam como senhores seriam apenas uma “mentira”. O “dogma” mercantilista não pode ser questionado. A única solução para os problemas da pobreza, do subdesenvolvimento, do meio ambiente é deixar que o mercado tenha maior liberdade para operar e condicionar as vidas de diferentes países, como está acontecendo na União Europeia: união de moedas, mas não de valores comuns e tampouco de estratégias políticas, como demonstra o tratamento que estão recebendo os migrantes e a renúncia a um protagonismo que lidere os esforços para procurar solucionar a crise no Oriente Médio.
Também se pode notar que os questionamentos ao “dogma” mercantilista (inclusive sem a indicação de “terceiras alternativas” que a Igreja abandonou há tempos) foram propostos em várias ocasiões também por Bento XVI, na Caritas in Veritate, na qual convidava para “eliminar as causas estruturais das disfunções da economia mundial”, explicava que o mercado, sozinho, não pode garantir o desenvolvimento humano integral, nem a inclusão social. E Bento XVI esperava que se criasse uma autoridade mundial “para o governo da economia mundial, para sanar as economias afetadas pela crise, para prevenir que piorasse a mesma e ulteriores e maiores desequilíbrios; para realizar um adequado desarmamento integral, uma segurança alimentar e a paz; para garantir a defesa do meio ambiente e para regulamentar os fluxos migratórios”.
Kishore Jayabalan, diretor do Acton Institute de Roma, além de ex-colaborador do Pontifício Conselho Justiça e Paz, que criticou duramente a exortação apostólica Evangelii Gaudium, comentou desta maneira a nova encíclica: “Quanto mais penso nesse dilema, mais me dou conta de que a economia é como a instalação hidráulica da nossa casa comum. A economia é absolutamente necessária para a manutenção e a prosperidade desta última, embora prefiramos não recordá-lo muito. Preferimos nos concentrar na arquitetura, no jardim, e, naturalmente, nas pessoas em seu interior, mas sem uma instalação hidráulica eficaz a casa desmorona e não apenas no nível material”.
Devemos precisar um pouco a eficaz imagem proposta por Jayabalan e sua fé incondicional no mercado. Na nossa “casa comum” a instalação hidráulica encontra-se nas condições necessárias para levar uma quantidade de água potável e perfeita apenas para alguns apartamentos da cobertura. Aqueles que moram nos outros apartamentos, e também nos porões, não recebem nada, mesmo quando abrem a torneira. É inútil chamar o encanador, porque não existem as chaves das tubulações, e as regras sobre a (não) distribuição foram estabelecidas unilateralmente pelos donos das coberturas.
Para todos aqueles que decidem encarar a realidade de frente, a alegação de que todos os instrumentos são neutros em si (e de que não existem problemas no sistema e nas estruturas, pois a única solução é maior liberdade para o mercado), parece ingênua ou contém interesses ocultos. É uma afirmação calorosamente recebida por essas 85 pessoas que possuem uma riqueza que equivale àquela que possui metade da população mundial, ou seja, 3,5 bilhões de pessoas pobres. O abismo entre pobres e ricos é cada vez maior. O Papa Francisco está apenas tratando de bater às portas dessas coberturas que mantêm o sistema hidráulico em funcionamento, mas apenas para seu uso e consumo exclusivos.
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O Acton Institute critica a encíclica: “Hipótese imprudente” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU