24 Junho 2015
"O papa proporcionou o primeiro grande ensino papal sobre o planejamento urbano, observando, por exemplo, a necessidade de se 'cuidar dos espaços comuns, dos marcos visuais e das estruturas urbanas que melhoram o nosso sentido de pertença, a nossa sensação de enraizamento, o nosso sentimento de ‘estar em casa’ dentro da cidade que nos envolve e une", escreve David Cloutier, professor de teologia moral e Ensino Social da Igreja em na Mount St. Mary’s University (MD), em artigo publicado pela revista Commonweal, 18-06-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
A importância imediata de Laudato Si’ é chamar tanto a Igreja e quanto mundo a responder ao “urgente desafio de proteger a nossa casa comum” (n. 13). Como Tony Annett já habilmente assinalou, Francisco não está pondo meias palavras aqui. Acima de tudo, a encíclica sugere que somos os sabotadores deste nosso lar, mas que também temos a oportunidade para uma conversão mais profunda a partir dos nossos “desertos interiores” (n. 217, uma das muitas citações de Bento XVI) para uma forma mais alegre e mais desafiadora de vida: “Os seres humanos, capazes de tocar o fundo da degradação, podem também superar-se, voltar a escolher o bem e regenerar-se, para além de qualquer condicionalismo psicológico e social que lhes seja imposto. São capazes de se olhar a si mesmos com honestidade, externar o próprio pesar e encetar caminhos novos rumo à verdadeira liberdade” (n. 205). Tal resposta, e o papa deixa isto claro nos capítulos 1 e 5, requer uma cooperação internacional por causa da natureza dos problemas.
É revelador o fato de que Francisco tenha escolhido destacar a atmosfera, a água e a diversidade de espécies – estes são os problemas em que se faz absolutamente necessária a cooperação global. O seu carro, o seu gramado e o seu piso de madeira podem muito bem estar implicados aqui. “Todavia, para se resolver uma situação tão complexa como esta que enfrenta o mundo atual, não basta que cada um seja melhor” (n. 219).
Os capítulos 1 e 5 contêm uma grande quantidade de matérias que atrairão a atenção nos meios de comunicação em geral. Porém o núcleo da encíclica, teológica e espiritualmente falando, são capítulos 2 a 4. É importante destacar que este documento é firme e claramente teológico. Se contemplarmos a ampla estrutura destes capítulos, veremos um esquema elegante da criação, da queda e da redenção. Este padrão fundamental da narrativa cristã é fácil esquecer – cantar “Cântico das Criaturas” ao mesmo tempo esquecendo-se da cruz, ou oferecer a cruz como uma válvula de escape para a criação, em vez de uma árvore da vida que abre caminho para o Espírito de renovação da criação. Ler a encíclica como um todo – nem sempre fácil, dada a sua extensão e seu detalhamento incrível! – significa ser lembrado deste padrão básico: o dom de Deus, a nossa pecaminosidade humana e a aliança eterna selada pelo Espírito, prometendo uma visão de renovação até os confins da terra.
O capítulo 2 oferece uma teologia da criação, onde “cada criatura tem uma função e nenhuma é supérflua” (n. 84). A imagem de toda a criação orientada para o louvor de Deus pode ser uma das imagens mais espiritualmente reveladoras a muitos de seus leitores; embora deixe de lado a salmodia, ela nem sempre faz parte funcional do repertório espiritual católico. Francisco tem o cuidado de salientar como o cristianismo desmistifica corretamente a natureza (n. 78), mas, ao mesmo tempo, podendo ser visto como aquela que eleva a sua importância, especialmente por nos lembrar que “não somos Deus” (n. 67). Certamente, este capítulo é um contraste chocante com qualquer tipo de visão social darwinista da natureza como “vermelha [de sangue] em seus dentes e garras” [alusão ao famoso poema “In Memoriam A. H. H.” de Alfred Tennyson ]”, e a sua forte convicção de que as criaturas carregam fins inerentes é um desafio às ideologias da ciência que veem a natureza como cega.
Em seguida, o capítulo 3 passa a diagnosticar a pecaminosidade da situação atual. Não é nenhuma surpresa que Francisco apresente palavras duras ao descrever a atual ordem mundial; o que é um pouco mais inovador é a aproximação de um conjunto de doenças que se combinam para criar este problema. A ordem aqui é importante: o papa começa com a tecnologia. Embora reconheça o que de bom aconteceu durante os dois últimos séculos, Francisco aqui começa a sua crítica trazendo citações de livro de Romano Guardini ameaçadoramente intitulado O Fim da Idade Moderna: “Tende-se a crer que toda a aquisição de poder seja simplesmente progresso, aumento de segurança, de utilidade, de bem-estar, de força vital, de plenitude de valores; (...) [uma assimilação] de novos valores, como se a realidade, o bem e a verdade desabrochassem espontaneamente do próprio poder da tecnologia e da economia” (n. 105). O biógrafo papal Austin Ivereigh já observou que esta encíclica de Francisco é particularmente um desafio para a mentalidade do progresso inevitável; nesse sentido, este documento faz um paralelo com a esquecida encíclica de Bento XVI Spe Salvi, cujo tratamento prolongado da esperança cristã comunitária é justaposto a falsas ideologias do progresso, particularmente as do individualismo libertário e do totalitarismo fascista.
Francisco passa a tecer longas críticas ao consumismo e à globalização e, em seguida, origina todo este edifício crítico em um “relativismo prático”, que, ainda mais perigoso do que o “relativismo doutrinal”, desenvolve “nos indivíduos este relativismo no qual tudo o que não serve os próprios interesses imediatos se torna irrelevante” (n. 122). Aqui, como em vários outros lugares, o papa faz a mesma conexão que Bento XVI fez na encíclica Caritas in Veritate (n. 51), em que as distorções da sexualidade humana e da vida humana são, em si, manifestações da mesma mentalidade que subjaz a exploração do planeta. No geral, o texto deste capítulo sobre os pecados de nossa época deve gerar muita discussão na Igreja.
O mais importante, penso eu, é a extensa discussão da teologia do trabalho de João Paulo II em Laborem Exercens. Nesse documento, João Paulo II oferece uma interpretação do livro de Gênesis 1, no mínimo tão importante quanto a sua “teologia do corpo”. Francisco afirma que “se procurarmos pensar quais possam ser as relações adequadas do ser humano com o mundo que o rodeia, surge a necessidade duma concepção correta do trabalho; (...) Qualquer forma de trabalho pressupõe uma concepção sobre a relação que o ser humano pode ou deve estabelecer com o outro diverso de si mesmo” (n. 125). Francisco ecoa o ensaio clássico de Wendell Berry Conservation is Good Work”, que sustenta que o “trabalho” é simplesmente o que nomeia a nossa relação com o meio ambiente, e que o trabalho pode ser bom ou ruim – para o planeta, para as nossas relações com os outros e para nós mesmos.
Finalmente, o capítulo 4 explica a “ecologia integral” com mais detalhes do que qualquer outro documento papal anterior. Esta é uma visão de uma sociedade redimida, em que o consumo individual passa a ter ambientes urbanos bem planejados, onde as ações estão direcionadas para o bem comum. O papa proporcionou o primeiro grande ensino papal sobre o planejamento urbano, observando, por exemplo, a necessidade de se “cuidar dos espaços comuns, dos marcos visuais e das estruturas urbanas que melhoram o nosso sentido de pertença, a nossa sensação de enraizamento, o nosso sentimento de ‘estar em casa’ dentro da cidade que nos envolve e une. É importante que as diferentes partes duma cidade estejam bem integradas e que os habitantes possam ter uma visão de conjunto em vez de se encerrarem num bairro, renunciando a viver a cidade inteira como um espaço próprio partilhado com os outros” (n. 151).
Em essência, o papa está pedindo para compartilharmos o espaço, e não simplesmente redistribuirmos os recursos. Ele está pedindo que consideremos a importância real da praça da cidade pequena e dos parques de cidades clássicas. Também é notável que ele coloca uma grande ênfase sobre o que estamos transmitindo às gerações futuras. Ao descrever a importância do bem comum, Francisco enfatiza que “a noção de bem comum engloba também as gerações futuras. As crises econômicas internacionais mostraram, de forma atroz, os efeitos nocivos que traz consigo o desconhecimento de um destino comum, do qual não podem ser excluídos aqueles que virão depois de nós. Já não se pode falar de desenvolvimento sustentável sem uma solidariedade intergeneracional” (n. 159). Talvez a característica singular mais assustadora daqueles que ignoram os problemas ambientais é o quão sentimental estas mesmas pessoas, por vezes, podem ser quando se trata de “proteger as nossas crianças”.
A ideia de que a forma de vida que nós americanos atualmente temos não irá durar muitas gerações à frente, por causa de sua insustentabilidade ambiental, não faz com que mudemos os nossos hábitos. E isso é incrível. E, com a imagem de que a Terra é a nossa casa comum, o papa está sabiamente apelando para a importância de um sentimento de família que venha a provocar uma conversão real. O chamado final do papa para a importância dos sacramentos em mostrar-nos essa renovação, central em seu capítulo final, é expressão de como ele leva a sério o compromisso ambiental como algo essencial para a identidade católica.
Devido à extensão da encíclica, quem quiser criticar as suas citações não enfrentará muitas dificuldades. Aliás, Francisco foi cuidadoso ao longo do texto em reconhecer as limitações de suas afirmações. E isso é muito apropriado em um documento cujo capítulo final elogia a importância espiritual da sobriedade e da humildade (o que papa observa ironicamente dizendo que “não gozaram de positiva consideração no século passado”, n. 224). No entanto, o efeito global desta encíclica é inegável: trata-se de um chamado à mudança, um chamado profundamente enraizado em uma visão de mundo católica, uma visão que toca em todas as facetas de nossas vidas e, profundamente, no coração humano igualmente.
Francisco aqui está confirmando o que muitos já disseram: a crise ambiental é realmente a chave para as questões econômicas, para as questões sexuais, para as questões espirituais. Ela é a chave para tudo, porque a mensagem do ambientalismo é, como Francisco repete muitas vezes no documento, que “tudo está interligado”. É extremamente revelador o fato de que a data “oficial” do documento seja o Pentecostes. Este “aniversário da Igreja” é importante para aquilo a que a Igreja se destina: não para si mesma, mas para as redenções e para a renovação de toda a criação de Deus.
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O núcleo teológico de Laudato Si’ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU