19 Junho 2015
"O continente sul-americano, visto no contexto brasileiro, é comprovadamente plurinacional, pluriétnico e pluricultural, não sendo razoável prossiga tratando povos e nações diferentes como se cada um deles/as coubessem numa forma única de convivência e conduta, sujeitos a um pelo poder sancionatório uniformizado e indiferente a cada uma dessas culturas", comenta Jacques Távora Alfonsin procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
Eis o artigo.
Na noite de 15 deste junho, no Plenarinho da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, um grupo bastante numeroso de advogadas/os reuniu-se para discutir o atual momento político-jurídico que vive o país, escolhido como tema base isso “advocacia e democracia: passado, presente e futuro”.
Com a presença na mesa do ex-Governador Tarso Genro e da professora de direito constitucional Dra. Roberta Baggio, o grupo se dedicou a analisar essa crise pela qual passa o país, pontuando, no passado as principais pessoas dedicadas a defesa da vida e da liberdade, lembrando inclusive aquelas que, mesmo não exercendo profissão jurídica, marcaram a história do direito pela conquista de direitos humanos hoje expressamente previstos nas Constituições-latino americanas.
Aí foram lembrados, por exemplo, Bartolomeu de Las Casas, um frade cuja pregação e prestação de serviço, ainda no século XVI, alcançou ser reconhecido o povo nativo, até ali escravizado pela colonização espanhola, como gente; no caso brasileiro, Zumbi, assassinado por defender a liberdade das/os escravas/os, ainda em 1695; Tiradentes, reagindo contra a exploração colonial portuguesa, assassinado em 1792, e todos aqueles levantes populares posteriores, como Cabanagem (De 1835 a 1840) (Balaiada (de 1838 a 1841), , Canudos (1896 a 1897), Contestado (1912 a 1916) e outros. A resistência indígena de Sepé Tiaraju, liderando os guaranis, ficou marcada por partir, exatamente, do povo, a maior vítima da invasão espanhola e portuguesa sobre o nosso território. Foi morto em combate no ano de 1756.
No passado mais presente não faltam testemunhos históricos de advogadas/os que deram a própria vida em favor de gente que lhes outorgou mandato para defesa de seus direitos, particularmente aquela fração de povo brasileiro pobre com direito de acesso a terra: Eugênio Lira, assassinado em setembro de 1977, em Santa Maria da Vitória e Ecoribe, um dia antes de prestar depoimento numa CPI, montada em Salvador para apurar terras griladas ocupadas por camponesas/es; Agenor Martins de Carvalho que defendia 950 famílias de um despejo ocorrido em Porto Velho em novembro de 1980, depois de ter alcançado vitória numa ação proposta em favor dessas famílias contra agressões e ameaças dos proprietários de latifúndios onde elas viviam; Joaquim das Neves Norte, assessor do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Naviraí-MS, colaborador da CPT naquele Estado, assassinado em junho de 1981; Paulo Fontelles de Lima, assassinado por pistoleiros, em junho de 1987 por seu apoio a luta dos pobres do campo no sul do Pará. Chegou a ser deputado estadual, pautando sua atividade política em defesa da terra e do povo da terra, integrando a tristemente famosa lista dos “marcados para morrer”.
No presente, a mesa de discussão do tema proposto ao debate, nessa reunião, deu destaque ao fato da insuficiência de poder das leis, não alcançando corrigir ou eliminar a superioridade da presença do capital financeiro predominando sobre todas as decisões do Poder Público no país.
Quanto ao futuro, a preocupação do grupo se centrou em três eixos fundamentais: o primeiro relacionado à cultura ideológica presente em grande parte das/os operadoras/es jurídicos brasileiras/os em se satisfazer, ou pior, ser até indiferente, à injustiça social derivada daquele poder econômico financeiro; a segunda, relacionada com a urgência de a advocacia do país não só defender os princípios constitucionais garantes do regime político conquistado em 1988, mas acrescentar a isso a multitarefa de, junto com movimentos populares, sindicatos, partidos políticos, especialmente com aqueles que defendem os direitos humanos fundamentais, mobilizar um esforço ético-político com o povo ao qual a advocacia serve; a terceira, com base em exemplos constitucionais tipicamente latino americanos, como é o caso das Constituições da Venezuela (1999), do Equador (2008) e da Bolívia (2009), empreender um grande esforço ético-político-humanista e democrático dentro da OAB, das universidades, das entidades classistas da magistratura e do Ministério Público no sentido de se repensar o contínuo esforço constituinte latino americano e não só brasileiro, levando as nossas Constituições a um ordenamento jurídico-constitucional capaz de abranger toda a tão sonhada Pátria Grande Latino Americana, cortando de vez aquela parte da herança européia, colonialista, que ainda remanesce nas cartas constitucionais anteriores àquelas acima lembradas.
O continente sul-americano, visto no contexto brasileiro, é comprovadamente plurinacional, pluriétnico e pluricultural, não sendo razoável prossiga tratando povos e nações diferentes como se cada um deles/as coubessem numa forma única de convivência e conduta, sujeitos a um pelo poder sancionatório uniformizado e indiferente a cada uma dessas culturas.
O fato de a Constituição da Bolívia, por exemplo, já ter reconhecido a própria terra como sujeito de direito e não permitir mais, lá, propriedade privada de latifúndio com mais de cinco mil hectares, garantir aos povos de origem indígena uma jurisdição própria com força de lei, vale como um exemplo de extraordinária significação para o restante dos países da América, isso sem se levar em conta ter sido aquela mesma Constituição, depois de redigida, submetida a um referendo popular, que alcançou mais de 60% de aprovação do povo boliviano.
Uma história como essa vale como uma verdadeira revolução, capaz, se não de eliminar, pelo menos reduzir muito, um dos piores defeitos presentes nos ordenamentos jurídicos, aquele de solenizar direitos humanos fundamentais sem nunca alcançar garanti-los, assim desmoralizando a lei, o Estado e a própria democracia.
Esse futuro constitui um verdadeiro mandato que a democracia nos outorga, aquele de, inclusive com a participação do povo pobre e excluído do nosso país, fazer com que ela chegue efetivamente onde ela nunca chega, ultrapasse a porta do banco, da fábrica, penetre no latifúndio, em todas as escolas, hospitais, tribunais, parlamentos, a nossa OAB e todos os governos.
É um trabalho impossível? A história tem mostrado que todos os possíveis de hoje estiveram presos no impossível de ontem, o próprio Jesus Cristo dando um exemplo disso. Sabendo que iria morrer, vítima do poder político-religioso de então, tão semelhante ao atual, reuniu seus seguidores e lhes deu a seguinte ordem: vocês devem ir por aí curando os doentes, ressuscitando mortos, purificando leprosos e expulsando demônios.
O que há de certo numa mensagem extraordinariamente metafórica como essa? É aquela que toda a história posterior provou. Quem defende a justiça e conhece muito bem a limitação e até a manipulação que preside a interpretação das leis, sabe muito bem ter de enfrentar injustiças tão poderosas, dotadas de poder econômico e político capazes de impedir o respeito devido a todo ser humano, seus direitos fundamentais, especialmente os sociais e a sua cidadania, que a impossibilidade aparente de vencer tudo isso praticamente desarma qualquer iniciativa em contrário.
Essas prestações de serviço “impossíveis” como aquelas propostas por Jesus Cristo, constituiu e constitui o maior desafio enfrentado pelas/os advogadas/os no passado, no presente e certamente no futuro. A cidadania e a democracia, entretanto, hão de ser gratas se elas/es, com muita coragem, dedicação, zelo e competência aceitarem este desafio, com a disposição de quem, realmente, acredita que, mais cedo ou mais tarde, nesta ou na próxima geração, vencerá.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Advogadas/os em Defesa da Democracia e da Cidadania - Instituto Humanitas Unisinos - IHU