04 Fevereiro 2015
O ano econômico brasileiro começou recheado de medidas de contenção de investimentos na área social e trabalhista, plenamente ao gosto do mercado e dos ministros escolhidos para contentá-lo. Como resposta, os sindicatos prometem não aceitar os cortes com a mesma solenidade de outros momentos, o que se explica por um cenário de crise econômica que ameaça seriamente a renda e o emprego de suas bases. Para discutir tal cenário, o Correio da Cidadania entrevistou a economista Rosa Maria Marques.
A entrevista é de Gabriel Brito, publicada pelo Correio da Cidadania, 30-01-2015.
“É preciso lembrar o já sabido: é o investimento que permite a manutenção de um crescimento contínuo na sociedade capitalista. Ocorre que o investimento está baixo em todo o mundo, com exceção da China. E isso não só porque a economia capitalista enfrenta uma crise profunda e longa, mas por conta da mundialização e a desregulamentação dos mercados, no qual se destaca o financeiro. Assim, à parte as dificuldades que existem no Brasil e que foram aprofundadas com o câmbio valorizado, soma-se esse ‘traço geral’”, explicou.
No entanto, do momento em que o país se encontra rodeado de outras crises, como da água e da energia, é necessário discutir o próprio modelo de desenvolvimento e seu eventual esgotamento. Além disso, Rosa Marques, também professora da PUC-SP, destaca a posição de submissão do governo brasileiro ao mercado, o que contribui para o agravamento do quadro. “No Brasil, sempre foi importante o papel do investimento público. Ocorre que este é limitado pelo poder dos credores da dívida, pela via da realização dos superávits primários”, lembrou.
Quanto às medidas específicas sobre os direitos trabalhistas, a economista relativiza algumas delas, umas por não terem tanto peso, outras porque, na realidade, já eram alvo de debates técnicos desde outros tempos. Apenas lamenta que não se tenha passado pelo crivo do Codefat (Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador), onde tradicionalmente se tratam tais questões de maneira mais equilibrada.
De toda forma, a entrevista prevê tempos difíceis para os trabalhadores, inclusive para além das medidas mais publicizadas. “O que realmente é digno de nota é que um dos argumentos utilizados foi o déficit da Previdência, mas nada foi dito sobre a desoneração de 56 setores da economia e sobre a Seguridade Social continuar superavitária. O governo Dilma acabou de aprovar a entrada do capital estrangeiro na saúde. Ao mesmo tempo, a PEC 358 está tratando os Royalties do Petróleo destinados à saúde não como um acréscimo de recursos, mas como sendo contabilizados no interior do valor já praticado. Enfim, não é só cortando benefícios ou dificultando o acesso a eles que o governo está pensando em fazer caixa”, destacou.
Eis a entrevista.
Em primeiro lugar, a estagnação da economia em 2014, as perspectivas de um ano ainda mais arrochado em 2015, a crise energética e a crise hídrica são demonstrações de que o modelo de “desenvolvimento” que vigorou durante a era do lulismo está no limite ou até se esgotou?
Desde o início de 2014, dizíamos que o crescimento fundado na expansão do mercado interno – via políticas de transferência de renda, crédito para os setores de mais baixa renda, valorização do salário mínimo, entre outras políticas – havia se esgotado. E, pior do que se esgotado, nada havia sido feito para alterar a situação do câmbio “fora do lugar”, isto é, a valorização do real, e impedir a destruição de parte importante da indústria.
As políticas voltadas para a expansão da capacidade de compra dos setores de renda mais baixa, bem como o ciclo expansivo das commodities e o desempenho da China, criaram a falsa impressão de que era possível manter a economia crescendo, mesmo que a taxas não muito expressivas, a despeito do que ocorria no resto do mundo. O ano de 2014 mostrou quão falso isso era.
Evidentemente, não estou dizendo que as políticas de transferência de renda, de valorização do salário mínimo e de ampliação da capacidade de compra dos setores de menor renda não deveriam ter sido feitas. O que estou dizendo é que a capacidade de essas políticas resultarem na ampliação ou sustentação da demanda tem um limite. Na sociedade capitalista, o que permite manter taxas contínuas de crescimento é o investimento, algo sabido.
A questão da crise energética e da crise hídrica não está diretamente relacionada ao governo Dilma, a não ser por sua clara incompreensão do que se passa em termos de mudança climática e por decisões tomadas que aprofundam os problemas nessa área no Brasil. Embora se possa dizer que faltaram investimentos públicos, os especialistas em meio ambiente há muito vêm dizendo que o desmatamento da Amazônia – Antonio Nobre nos diz que são destruídas 2.000 árvores por minuto na região -, que vem se somar ao que foi feito muito antes, tal como a destruição da Mata Atlântica, já alterou o clima no Brasil.
O baixo volume e duração do período de chuva e a ampliação da estação seca são produtos dessa mudança. Mas os poderes públicos continuam a desconsiderar esse fato e, inclusive, a incentivar ou permitir, por sua ausência regulatória, a ocupação de áreas que deveriam ser preservadas e/ou recuperadas. Isso para os negócios de todos os tipos ou mesmo para a ocupação imobiliária.
Neste contexto, o que diria, especificamente, sobre o investimento público e privado no Brasil nos últimos anos?
É preciso lembrar o já sabido: é o investimento que permite a manutenção de um crescimento contínuo na sociedade capitalista. Ocorre que o investimento está baixo em todo o mundo, com exceção da China, e não só aqui. E isso não só porque a economia capitalista enfrenta uma crise profunda e longa, mas porque houve, nas últimas décadas, com a mundialização e a desregulamentação dos mercados, nos quais se destaca o financeiro, a ampliação de maneira absurda das possibilidades de o capital ampliar-se sem ter de se preocupar com investimentos no sentido restrito do termo.
E isso é dado pelo mercado de títulos, ações e derivativos, que perfazem várias vezes o PIB mundial. Vários economistas já chamaram atenção para o fato de que, desde o início dos anos 1990, houve um descolamento entre o investimento e os lucros, isto é, se antes eles evoluíam juntos, criou-se uma brecha, de modo que, cada vez mais, parte dos lucros não é reinvestida, mas, sim, dirigida para o mercado financeiro de capital especulativo ou fictício, com rentabilidade extraordinária.
Assim, à parte as dificuldades que existem no Brasil e que foram aprofundadas com o câmbio valorizado, soma-se esse “traço geral” que caracteriza o capitalismo contemporâneo, o que empurra ainda mais o nível do investimento para baixo.
Mas estamos falando de investimento privado. E, no Brasil, sempre foi importante o papel do investimento público. Ocorre que este é limitado pelo poder dos credores da dívida, pela via da realização dos superávits primários – termo que hoje ficou conhecido por grande parte da população brasileira, tal foi a avalanche de comentários e notícias veiculadas na imprensa, televisiva ou não, sobre um pretenso descontrole total dos gastos públicos...
Na impossibilidade, real ou política (enquanto escolha de governo), de realização de investimentos públicos significativos, e na ausência ou inibição do privado, não há como a economia crescer.
Como analisa as primeiras medidas econômicas adotadas pelo segundo mandato de Dilma Rousseff, entre os momentos finais de 2014 e iniciais de 2015?
As medidas tomadas ao final de 2014 e que prosseguem neste início de ano apenas mostram que o governo Dilma é totalmente refém do que se convencionou chamar de mercado. Foi o mercado que introduziu como inexorável a realização de superávits primários (mesmo que em nível inferior do que já foi obtido no passado), impondo contingenciamentos no orçamento e buscando reduzir gastos em todos os lados.
A opção por reduzir ou conter os gastos públicos, que constituem um importante componente da demanda interna do país, em um quadro de uma economia estagnada ou, como querem alguns, caminhando para uma recessão, certamente irá deprimir ainda mais a situação econômica.
A partir do reforço dessa ótica conservadora, quais efeitos você espera sobre seguro-desemprego, pensão por morte, abono e auxílio doença?
Não há, a princípio, problema em se alterarem as condições de acesso e mesmo certos aspectos da concessão de benefícios. Isso é feito corriqueiramente junto aos sistemas de proteção, sempre que for considerado necessário. Contudo, no caso específico das medidas que foram encaminhadas, embora elas ainda necessitem aprovação do Congresso Nacional, alguns problemas se colocam.
No que se refere ao seguro-desemprego, a primeira coisa que chama atenção é que a medida encaminhada não foi objeto de discussão do Codefat (Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador), onde participam, paritariamente, empresários, trabalhadores e governo. Não há, contudo, nenhuma regulamentação que determine que matéria desse teor fosse nele discutido, mas, dada a tradição democrática desse conselho, e a importância da mesma sobre a vida do trabalhador, era de se esperar que isso ocorresse. O mais grave é que, se for confirmada a piora da situação econômica, o que implica aumento do desemprego, é possível que parte dos desempregados não tenha como solicitar o seguro-desemprego, caso não comprove vínculo empregatício junto ao mercado formal nos últimos 18 meses. Enfim, é um mau momento para mudar as regras de acesso.
Quanto ao abono, mesmo considerando que isso pode ser entendido como uma perda de direito, não tinha muito fundamento, em termos de justiça no campo da proteção social, a concessão de um salário mínimo para todos trabalhadores que ganhassem até dois salários mínimos, independentemente do número de meses trabalhados no ano. As novas regras exigem que se tenha trabalhado pelo menos seis meses, de forma ininterrupta, no lugar de um, e o pagamento passa a ser proporcional ao tempo trabalhado, tal como ocorre com o 13º. O que se pode discordar é sobre a exigência de seis meses ininterruptos, bem como o fato de, mais uma vez, não ter havido prévia discussão com as entidades e sindicatos que representam os principais interessados. Agora, a bem da verdade, estas e outras propostas de ajustes são discutidas pelos especialistas da área há muito tempo.
No que se refere à pensão por morte, houve piora nas condições de acesso, pois foi ampliado o tempo mínimo de contribuição (e de comprovação da união) para que o cônjuge ou companheiro (a) tenha direito à pensão, bem como foi introduzida a expectativa de vida do cônjuge sobrevivente e dos filhos na definição do tempo de concessão. Em outras palavras, foi extinta a concessão perpétua para qualquer idade: para as condições demográficas atuais, somente aqueles com 44 anos ou mais (com expectativa de sobrevida de 35 anos), têm direito à pensão durante toda sua vida. O tempo para os demais cônjuges ou filhos é função de suas expectativas de vida. Aspectos dessas alterações, principalmente quanto à concessão perpétua, sempre foram objeto de muita crítica entre os especialistas. Contudo, chama atenção que nada mudou quanto às regras dos militares, somente afetando aqueles regidos pelo INSS e os funcionários públicos.
A mudança do auxílio-doença me parece ainda mais problemática, pois o trabalhador irá receber de acordo com a média das últimas 12 contribuições, no lugar de 91% de seu salário (limitado ao teto do INSS). Certamente isso irá significar uma redução do nível do benefício, o que é particularmente preocupante em caso de doença, quando despesas aumentam, ainda que o mesmo tenha cobertura pública ou privada dos cuidados com a saúde.
Mas pouco importa se parte dessas medidas encontra apoio em termos de justiça previdenciária. O que realmente é digno de nota é que um dos argumentos utilizados para seu encaminhamento foi o déficit da Previdência Social, e nada foi dito sobre a desoneração permanente na contribuição sobre a folha de salários, de 56 setores da economia, e que a Seguridade Social, a despeito de tudo, continua superavitária. Vale lembrar que os recursos da Seguridade, entre os quais estamos incluindo do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), são recursos dos trabalhadores, muito embora a Desvinculação de Receitas da União (DRU) promova um “confisco” de 20%, exatamente com vista ao superávit primário.
O que se pode, por sua vez, esperar dos ministros escolhidos por Dilma na área econômica no longo prazo, considerando que os próprios representantes do governo anunciam que os ajustes serão necessários por pelo menos dois anos?
Não há longo prazo à vista. O que iremos assistir, e já estamos assistindo, é ao recrudescimento das lutas em defesa do emprego, dos salários e dos direitos sociais. Para alguns setores da esquerda, enquanto o governo, mesmo fazendo inúmeras concessões ao capital financeiro, ao agronegócio e às empresas em geral (vide as desonerações), continuasse a manter nível baixo de desemprego, elevação do salário mínimo, ampliação do acesso à universidade, políticas de transferência de renda, entre tantas outras ações que sem dúvida beneficiaram parcelas importantes da população brasileira, tudo estaria bem.
Contudo, quando aquilo que parecia ser uma concessão – para acalmar os mercados – passa a ser o determinante dos rumos gerais do governo, parte de sua base de apoio se desloca e se põe a lutar pela defesa daquilo que lhe é mais caro: emprego e renda, sendo que nesta última se incluem os direitos sociais.
E para completar, gostaria de tocar em um assunto da maior importância. O governo Dilma acabou de aprovar a entrada do capital estrangeiro na saúde, o que era vetado pela lei 8.080, de 1990. Ao mesmo tempo, a PEC 358 está, entre outras coisas, tratando os Royalties do Petróleo destinados à saúde não como um acréscimo de recursos para a área, mas como sendo contabilizados no interior do valor já praticado. Ainda nessa PEC, a proposta do Projeto de Iniciativa Popular, conhecida como Saúde +10, subscrito por 2,2 milhões de brasileiros, foi totalmente desconsiderada. Enfim, não é só cortando benefícios ou dificultando o acesso a eles que o atual governo está pensando em fazer caixa.
Que efeitos podem ser projetados sobre a sociedade brasileira e os trabalhadores?
Serão tempos muito difíceis. A capitulação ao mercado, em matéria de política econômica, com todos os desdobramentos que acarreta, terá consequências negativas para os trabalhadores. Elas só não serão maiores se estes continuarem (como já estão fazendo) a se mobilizar na defesa do emprego, dos salários e dos direitos sociais, como disse anteriormente.
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O governo Dilma é totalmente refém do mercado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU