12 Mai 2015
“Quando o branco tem gripe, ele vai à farmácia. Quando tem fome, vai ao mercado. E se o branco quer construir uma casa, vai à loja de construção”, disse David Karai Popygua. “Mas para o índio, a farmácia, o mercado e a loja de construção são as terras, os rios e a mata”, completou o professor de língua indígena da etnia guarani mbiá.
A reportagem é de Marina Rossi, publicada por El País, 08-05-2015.
O discurso de David foi feito no dia da inauguração de uma casa de reza, na aldeia guarani Tekoa Itakupe, que em português significa ‘atrás da pedra’. O local fica dentro de uma área de 532 hectares, na região do Pico do Jaraguá, o lugar mais alto de São Paulo, na zona norte da cidade. Todo esse terreno foi reconhecido pela Funai como terra indígena em abril de 2013, depois de um longo estudo que levou onze anos para ser concluído. Mas, até hoje, apenas 1,7 hectares foi demarcado, em 1987. Esse pequeno espaço é a menor terra indígena já demarcada no país e abriga 800 pessoas. Cerca de 40% são crianças. "Vivemos espremidos ali", contou o cacique Ari Martins.
Como todo o restante da terra ainda não demarcado - apenas reconhecido pela Funai - essa brecha deu vazão para que a Justiça determinasse, no dia 26 de março, que os indígenas saíssem do local. O advogado Antônio Tito Costa reivindica parte dessas terras, alegando que sua esposa, Lea Nunes Costa, já falecida, era a proprietária de 72 hectares do terreno. Justamente a área Tekoa Itakupe, onde, entre outras coisas, estão a casa de reza e as plantações de alimentos como mandioca, batata doce e inhame, que fazem parte da agricultura de subsistência dos indígenas.
Na terça-feira houve uma reunião de lideranças com Costa e a Polícia Militar. Os indígenas reivindicavam que a reintegração de posse aguardasse a decisão sobre o futuro dos Guarani, que hoje está em duas mãos: Primeiro, nas de Ricardo Lewandowski, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF). Ele pode decidir por revogar esse pedido de reintegração de posse. Ou do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, que é quem tem o poder de reconhecer essa demarcação realizada pela Funai.
O resultado da reunião desta terça-feira foi mais uma derrota para os Guarani Mbiá: A Polícia Militar afirmou que fará a operação de reintegração entre os dias 25 e 29 de maio. Os indígenas prometem resistir. "A comunidade não tem para onde ir e também não tem nada a perder", disse o assessor jurídico dos Guarani, Bruno Morais. "A comunidade está bastante disposta a resistir. E todas as aldeias estão engajadas, incluindo as do litoral". Por enquanto, as lideranças ainda não sabem o que farão, já que receberam a notícia da data da reintegração de posse, que seria nesta terça. Mas, há uma petição online para a retirada do pedido, que pode ser acessada por aqui.
Os trâmites para a demarcação de terra indígena ocorrem da seguinte maneira: primeiramente, a Funai realiza estudos antropológicos, históricos, fundiários, cartográficos e ambientais, que justificam a delimitação das terras indígenas. Atualmente, há 129 terras indígenas em estudo. Mas uma Proposta de Emenda à Constituição (a PEC 215) tira das mãos da Funai esse processo e dá ao Congresso a prerrogativa de pedir a demarcação de terras.
Enquanto a PEC tramita no Congresso, e é discutida por uma comissão cuja maioria é feita de deputados da bancada ruralista, os trâmites seguem desse jeito: com o estudo concluído, e se constatado que o local tem fundamentações suficientes para ser reconhecido como território indígena, a Funai delimita a terra. Hoje, 38 terras estão delimitadas, como é o caso dessa região Guarani no Pico do Jaraguá.
Depois da delimitação, é preciso que o ministério da Justiça declare a terra como indígena - atualmente há 66 declaradas - e que a presidência realize a homologação - há 14 homologadas nesse momento. A última fase é a regularização da terra, que é o registro em cartório em nome da União e na Secretaria do Patrimônio da União. Hoje, 426 terras estão regularizadas. Todos esses dados estão no site da Funai para consulta.
Anos de luta
A disputa por essas terras está na Justiça desde 2005, quando os indígenas ocuparam pela primeira vez o local. "Na época, o Tito Costa conseguiu ganhar o pedido de reintegração e despejou os indígenas como se eles fossem Sem Terra", conta Bruno Morais. Com isso, a comunidade se dispersou.
Eles voltaram ao local em 2013, após o reconhecimento das terras pela Funai. Desde então, segundo o cacique Ari Martins, ocorreram incêndios criminosos no local que tem mais de 100 nascentes. De acordo com ele, Costa vai construir um condomínio de luxo no local. A reportagem não conseguiu realizar contato com Costa, mas ao Estado de S. Paulo, ele afirmou que ali é uma Zona Especial de Proteção Ambiental (Zepam) e, por isso, ele não poderia construir nada a não ser casas populares. Costa ainda afirmou que plantou milho, árvores frutíferas e eucaliptos no terreno antes da segunda ocupação. Segundo as lideranças que vivem ali, Costa nunca apareceu no local. "Eu nunca vi o Tito Costa aqui", disse o cacique Ari.
No processo, Tito Costa se refere aos indígenas da seguinte maneira: “Saíram do acampamento onde vivem, se instalaram em uma área por mero capricho (...). São invasores ridiculamente fantasiados com cabeças de gado e arco e flecha para intimidar eventuais pessoas que se aproximam da área, poucos homens desocupados e mulheres idem, que nada produzem no espaço invadido, ao qual chegaram agora, e nunca fora “tradicionalmente ocupada, com atividade produtiva”.
Na quarta-feira (13), haverá uma audiência pública na Assembleia Legislativa para debater a situação.
Quem é Antonio Tito Costa
Antonio Tito Costa nasceu em 1922 na cidade de Torrinha, que faz parte da chamada Chapada Guarani, no interior de São Paulo. Formou-se em Direito em 1950 e começou sua carreira como advogado e procurador na Prefeitura de São Bernardo do Campo.
Foi vereador de Torrinha e prefeito de São Bernardo do Campo entre 1977 e 1983. Em seguida, elegeu-se deputado federal pelo PMDB entre 1987 e 1990. Durante sua gestão como prefeito de São Bernardo, foi acusado de subornar vereadores para aprovarem projetos de sua autoria.
Em fevereiro deste ano, a Justiça de São Paulo condenou Costa, o ex-prefeito de Osasco Francisco Rossi de Almeida (hoje no PR), os advogados Aymoré de Mello Dias e José Daniel Farat Junior ao pagamento de quase 850.000 reais por improbidade administrativa. Costa foi condenado por ter prestado serviços de advocacia à Prefeitura de Osasco sem ter passado por licitação.
Uma Ação Civil Pública, movida em 1993, tornou Francisco Rossi inelegível. A principal alegação foi que a contratação de Tito Costa como advogado foi irregular, sem licitação. O escritório de Costa recebeu na época dois milhões de reais em honorários.
A terra de 72 hectares reivindicada por Costa era de sua esposa, já falecida, Léa Nunes Costa. Ela seria dona da área em conjunto com outras pessoas, todas já falecidas.
Ao portal R7, Costa se referiu aos indígenas que vivem no local de maneira pejorativa. "Os índios estão lá, alvoroçados. Meia dúzia de índios desocupados. Porque há um acampamento de índios próximo dali. Lá eles recebem cesta básica, ajuda do Estado. E tem uma mulherada barriguda dançando pra lá e pra cá. Criança suja. Não fazem nada, mas vivem lá. E agora querem invadir outras áreas para continuar não fazendo nada", disse, no mês passado.
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A briga pela terra ‘atrás da pedra’ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU