05 Mai 2015
As pessoas querem ou não querem ser livres? E, se querem, por que há o poder? E, se não querem, por que o ideal da liberdade tem tanto fascínio sobre eles? O novo livro de Gustavo Zagrebelsky se debruça sobre essas perguntas a partir da Lenda do Grande Inquisidor, de Fiódor Dostoiévski.
O comentário é do teólogo italiano Vito Mancuso, professor da Universidade de Pádua, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 04-05-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
A Lenda do Grande Inquisidor, de Fiódor Dostoiévski é ambientada em Sevilha, na sequência de um imenso incêndio com mais de 100 hereges queimados. O Cristo voltou para a terra e é reconhecido pela multidão festejante, mas é prontamente detido pelo cardeal Grande Inquisidor, que, depois, em plena noite, se dirige ao seu encontro e lhe dirige um longo discurso para defender o mérito da correção da sua obra por parte do poder eclesiástico, a fim de torná-la realmente adequada ao governo dos homens, porque estes, ao contrário do que Cristo pensava, não querem ser livres, mas anseiam por encontrar, o mais rápido possível, alguém para entregar o dom insidioso do liberdade. Diz o Inquisidor a Cristo: "Corrigimos a tua obra, fundamentando-a no milagre, no mistério e na autoridade".
Mas o Inquisidor tem razão ao sustentar que os homens não querem ser livres, ou a sua tese é mais um engano do poder para justificar a si mesmo? Os homens querem ou não querem ser livres? E, se querem, por que há o poder? E, se não querem, por que o ideal da liberdade tem tanto fascínio sobre eles?
Esse nó conceitual está na origem do oxímoro que serve de título para o novo livro de Gustavo Zagrebelsky, Liberi servi [Servos livres] (Ed. Einaudi, 298 páginas). Um servo pode ser livre? E um homem livre pode desejar ser servo?
O subtítulo, O enigma do poder, remete, assim, ao enigma mais radical da liberdade, da qual o poder é controle e sem o qual não existiria. Mas novamente: o que é, para o ser humano, a liberdade? É o seu bem mais caro ou um peso para se livrar? E quem tem razão: o Cristo que quer os homens livres, ou o Inquisidor que, "para o seu próprio bem", pretende libertá-los da liberdade?
São admiráveis as análise sobre o texto de Dostoiévski conduzidas por Zagrebelsky em páginas densas de pensamento e de erudição, mas nunca pesadas ou complacentes, mas sempre a serviço da inteligência do leitor. Pode-se compará-las com uma cascata de variações musicais, "Variações Dostoiévski", se poderia dizer, inspirando-se em Bach. E, assim como nas Variações Goldberg há um ar principal ao qual se seguem 30 composições ligadas entre si, mas, ao mesmo tempo, independentes, assim também no livro de Zagrebelsky o centro é a análise da Lenda da qual partem reflexões sobre o sentido da política, do poder, da religião, da beleza.
O cume é alcançado quando o autor se pergunta quem é, hoje, o Grande Inquisidor. Que potência hoje administra "as únicas três forças capazes de vencer e subjugar para sempre a consciência desses rebeldes fracos", isto é "o milagre, o mistério, a autoridade"? Quais são os milagres, os mistérios e as autoridades dos quais, hoje, os humanos se alimentam às custas da liberdade?
No Ocidente, o Inquisidor não veste mais ricos hábitos cardinalícios, nem a rude batina franciscana; são necessários bem outros paramentos para seduzir a sensibilidade contemporânea. Assim diz Zagrebelsky: "A tecnologia e o laboratório, alimentados pelas finanças, serão, talvez, a forja do ser humano liberto da liberdade e programado para ser dócil ou agressivo, dependendo das circunstâncias. Os 12 mil para cada geração (isto é, os assistentes do Inquisidor) serão, talvez, esses diáfanos técnicos de jaleco branco, que manejam tubos de ensaio e dinheiro".
Estamos diante do problema da liberdade, tratado aqui não se perguntando se a liberdade existe ou não, porque Dostoiévski, e com ele Zagrebelsky, não tem dúvidas ao rejeitar o determinismo que remete o ser humano ao ambiente ou aos genes, e ao afirmar que os humanos são livres, como demonstra a existência do tédio, que neles não surgiria se fossem totalmente determinados, mas que, surgindo, assinala a real fratura entre ambiente e indivíduos, e a liberdade destes últimos.
O problema da liberdade é tratado, ao contrário, sob o perfil político: o que fazer com ela? Como utilizá-la? Alimentá-la vivendo na inquietação ou entregá-la encontrando despreocupação?
Para o Inquisidor, os humanos não sabem sustentar o peso da liberdade e, por isso, gritam: "Salve-nos de nós mesmos". Comenta Zagrebelsky: "Essa é a grande descoberta da teoria política: quem tira a liberdade dos seres humanos não age contra, mas secondo natura... baseia-se em uma propensão instintiva, a mediocridade, o instinto do rebanho". Trata-se da "revelação da última verdade do mundo dos humanos, uma verdade terrível e obscena".
Não se resignando a isso, Zagrebelsky lança um grito de alerta e oferece, ao mesmo tempo, a indicação de uma possível salvação. O alerto é dado pelo fato de que "a humanidade se pôs à caça, sem se dar conta, dentro de um mecanismo que a está destruindo, estrangulando a sua liberdade".
Tal situação-cabestro se concretiza em iminentes catástrofes: ecológica (daí a necessidade de repensar a Terra como organismo vivo), política (o fim da projetualidade e a adequação à lógica da governança ou da estabilidade como fim em si mesma), social (o Palácio de Cristal, a Torre de Babel, o rebanho, o formigueiro mundial), espiritual (o fim do pensamento livre e o homem transformado, de artífice, em artefato).
A libertação proposta por Zagrebelsky é, à primeira vista, decididamente impolítica "Silêncio, solidão, escuridão", uma receita adequada para a vida interior, mas bem pouco eficaz para a vida exterior, já que a política, como escreve o próprio autor, vive do acordo entre as duas dimensões: "O problema político está todo aqui: como concordar a interioridade com a exterioridade... fazendo com que o que está nas consciências, o éthos, coincida com o que está no poder, o kratos".
Na realidade, para que possa haver acordo, é preciso que, antes, haja vida interior, sem a qual a política é reduzida a mera administração.
Por isso, a proposta densa de interioridade de Zagrebelsky tem um grande valor político. Ele escreve: "O silêncio é o ponto de partida a partir do qual se pode iniciar uma obra de construção autônoma da consciência". É o primado da dimensão espiritual da vida, a ser entendido não em oposição à práxis, mas como posicionamento consciente de si em relação ao mundo: "Fazer silêncio não significa cortar os pontos da realidade, mas se isentar da pressão exterior condicionante que anula a autonomia do próprio pensar".
Mas há uma novidade: além do valor político, o silêncio também assume em Zagrebelsky um inédito valor espiritual, quando escreve que, dele, "pode nascer uma vibração em uníssono, em que somos nós mesmos e, ao mesmo tempo, somos imersos em uma totalidade: uma totalidade que não nos é estranha e que não nos olha zombeteira, mas que nos estende a mão amiga, como uma promessa, uma primícia".
Palavras que descrevem perfeitamente a experiência humilde e discreta da mística como união. Com quem? Responde o autor: "Na falta de outro nome, podemos chamar essa unidade, na língua da nossa cultura, deus, deus sive natura, ser".
Para Zagrebelsky, a salvação da massificação dos Inquisidores de todos os tempos e de todas as divisas passa pela experiência da beleza, "a beleza pacificada da harmonia", que é "justeza de relações". Ele escreve: "A beleza está em relação com a justiça, e a justiça pode realmente salvar o mundo".
Aqui também, porém, ele vai além da simples dimensão política: "É algo que sentimos como familiar quando a calma entre dentro e fora do ser entra em nós, mas que, ao mesmo tempo, nos surpreende como a descoberta ou a redescoberta de algo que havíamos perdido. Isso é o que dá esperança de 'salvação' e que nos pacifica com nós mesmos e com o mundo".
E ainda: "A paz não está na natureza dos homens tomados singularmente; ao contrário, está na relação com a natureza do mundo, isto é, da criação. Com um passo a mais, pode-se dizer que o ser humano será salvo quando... imergir e se confundir na beleza da criação. Isso é a filocalia... sentir a presença da divindade na beleza do mundo". E conclui: "a harmonia do universo – aquilo que Dostoiévski chama de Deus".
A partir da Lenda do Grande Inquisidor, o livro de Zagrebelsky oferece uma análise de toda a obra dostoevskiana, colocando-se entre as suas grandes interpretações filosóficas, ao lado de Rozanov, Berdyaev, Thomas Mann, George Steiner, Evdokimov, Pierre Pascal, Pareyson, Givone.
O seu livro é uma crítica literária e, ao mesmo tempo, um tratado filosófico e político. Nele, também emerge uma veia de mística natural até agora inédita em Zagrebelsky e que torna o seu livro ainda mais dostoievskiano.
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A liberdade que nasce do silêncio e da beleza. Artigo de Vito Mancuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU