14 Abril 2015
A decisão de fazer um pacto com o diabo é sempre um dilema nascido do desespero, e essa parece ser a escolha desagradável enfrentada pela nação centro-americana de El Salvador e as suas lideranças católicas hoje.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada no sítio Crux, 09-04-2015. A tradução é de Claudia Sbardelotto.
Ao citar dados da polícia civil do país, os meios de comunicação noticiaram na segunda-feira que pelo menos 481 pessoas foram assassinadas em El Salvador, em março, uma média de 16 homicídios por dia, a maioria relacionada a conflitos entre gangues criminosas rivais. Isso é um registro impressionante para um país de apenas 6 milhões de pessoas, representando um aumento de 52% em relação ao mesmo mês no ano passado.
A carnificina é, principalmente, o resultado do colapso de uma trégua entre as duas maiores gangues de El Salvador, MS-13 e Barrio 18. Estimativas mostram que o número de membros de gangues no país pode ser tão alto quanto 65.000, qualquer aumento na hostilidade é devastador. Especialistas acreditam que, se algo não mudar até o final do ano, El Salvador vai substituir o seu vizinho, Honduras, como o país mais perigoso do mundo fora de uma zona de guerra.
Em 2012, a liderança da Igreja Católica estava dividida entre a possibilidade de participar de negociações envolvendo líderes de gangues e funcionários do governo que levaram à trégua.
O bispo Fabio Colindres, que lidera a diocese militar do país, concordou em servir como um dos mediadores. A fundação InSight Crime, com sede na Colômbia, que estuda o crime organizado nas Américas, informou que a participação de Dom Colindres foi fundamental para convencer tanto o público quanto as elites políticas de que a trégua era do interesse nacional.
No entanto, Colindres foi desacreditado pelos líderes da conferência episcopal. Após a trégua ser alcançada, a conferência divulgou um comunicado dizendo que ela "não produziu quaisquer benefícios para a população honrada e trabalhadora".
Com efeito, as gangues concordaram em reduzir a violência em troca de concessões, como melhores condições carcerárias. As taxas de homicídio caíram, mas as pesquisas mostraram que o acordo foi amplamente impopular, em parte porque os membros das gangues podem ter parado de matar uns aos outros, mas eles não se abstiveram dos crime que afetam as pessoas comuns, tais como roubos, seqüestros e extorsões, nem pararam de entrar em confronto com a polícia. Pelo menos 40 policiais foram mortos só em 2014.
"O cessar-fogo significou que as gangues conseguiram parar de se matar umas às outras e concentraram as suas operações em extorquir o resto de nós", disse Elena Sanchez, proprietária de uma banca de frutas, ao jornal Telegraph, do Reino Unido, em fevereiro. "Deixem que se matem e que deem uma pausa para nós".
Em uma medida de frustração popular, um grupo de homens de negócios em El Salvador anunciou em janeiro que eles tinham contratado Rudolph Giuliani, ex-prefeito de Nova York, famoso por sua abordagem de "tolerância zero" para a criminalidade, para enviar uma missão de averiguação para propor maneiras de tornar a repressão mais eficaz.
Outros, porém, acreditam que a única maneira de resolver o problema é através de uma retomada das negociações com as gangues, e muitos nesse campo estão olhando para a Igreja Católica para assumir a liderança, já que esta é a instituição social mais confiável do país.
"Eu acho que a Igreja é a única parceira com credibilidade suficiente para que isso aconteça", disse Héctor Silva, autor e pesquisador da Universidade Americana de El Salvador, em uma entrevista com a Reuters em fevereiro.
Até agora, a posição dos bispos parece ser a do "sim" ao diálogo, mas apenas através dos canais oficiais do governo. Eles não parecem preparados para agir por conta própria.
Em fevereiro, o bispo auxiliar de San Salvador, Gregorio Rosa Chávez, disse que a Igreja está aberta ao diálogo com membros de gangues, embora não para fazer "negociações", especialmente a nível pastoral. Tendo em conta que Chávez foi um colaborador próximo do venerado arcebispo Oscar Romero de El Salvador, morto em 1980 e que será beatificado como mártir em maio, ele tem grande autoridade moral.
"O diálogo deve estar aberto a todos, e todos precisam atuar nesse processo de paz", disse Chávez a jornalistas em meados de fevereiro.
Chávez destacou que a guerra civil em El Salvador, durante os anos 1980 e 1990, acabou finalmente não por esforços militares, mas através de negociações entre o governo e grupos rebeldes.
"Quando se quer encontrar soluções para a violência usando mais violência, isso não vai funcionar", disse ele. "Nós temos que romper os moldes e mudar paradigmas, ou então as mortes vão continuar acumulando, aumentando a dor das famílias".
Depois que Chávez falou, seu chefe, Dom José Luis Escobar Alas, de San Salvador, esclareceu que, embora as portas da Igreja estejam sempre abertas, os líderes da Igreja não vão participar de qualquer negociação "secreta". Essa foi provavelmente uma referência ao fato de que certos políticos tentaram se estabelecer como mediadores informais, apesar de o governo do presidente esquerdista Salvador Sánchez Cerén ter descartado até agora a possibilidade de negociações diretas.
Qualquer papel para a Igreja, disse Escobar, só pode vir através de uma iniciativa transparente do governo.
Em parte, a relutância dos bispos para assumir a liderança pode refletir uma divisão nas bases sobre se o diálogo é a única esperança para parar a matança, ou se simplesmente ele encoraja os criminosos a segurar a ameaça de outra fúria sobre o país.
Há também perigos reais para o pessoal da Igreja que tenta atuar como mediadores, e não apenas o risco de violência.
No ano passado, um padre católico chamado Antonio Rodríguez, conhecido como "Padre Toño", foi forçado a fazer um acordo com a promotoria, que o acusou de ser um receptador para os líderes do Barrio 18, supostamente contrabandeando celulares em suas prisões. Rodriguez alegou que estava tentando persuadi-los a manter a trégua, mas acabou por ter de deixar o país.
Há também o perigo de que a opinião pública transforme o pacificador em vilão se o acordo se desfaz. Quando Colindres lavou e beijou os pés de membros de gangues durante um rito de Páscoa em 2014, os meios de comunicação o execraram por estar acariciando criminosos. Ele retirou-se do diálogo e, hoje, se recusa a discutir o assunto.
Felix Arevalo, pastor batista de San Salvador, diz que muitos líderes da igreja temem a reação de seus rebanhos se eles se aproximam das gangues.
"A Igreja responde a um mercado religioso que não exige um chamado a perdoar nossos inimigos ou a trabalhar para a paz, mesmo ao custo de nossas vidas", disse Arevalo ao The Christian Century, em março. "O mercado exige um deus vingativo, um deus repressivo, e é isso que a igreja oferece".
Além disso, a violência das gangues é tão difundida que muitas vezes transborda para as Igrejas.
Só em 2014, seis membros de uma Igreja evangélica foram mortos em Tacuba; a Igreja Pentecostal Elim relatou ataques contra seus membros; um guarda de 84 anos de idade na histórica igreja "Don Rua", pertencente à Igreja Católica, foi assassinado, e um homem foi morto a tiros no Igreja Evangélica La Luz del Mundo. Os fieis queixam-se de serem incomodados antes e depois dos serviços religiosos, e alguns mantem-se longe por medo.
Grande parte dessa violência pode ser aleatória, mas os observadores acreditam que alguns líderes de gangues têm como alvo os cristãos, especialmente os ministros e outros empregados da Igreja que tentam persuadir os jovens salvadorenhos a não aderir.
Seja qual for a explicação, agora parece existir uma dinâmica da galinha e do ovo - a Igreja não vai se envolver a não ser que o governo aja primeiro, e o governo precisa da cobertura política da Igreja, a fim de agir.
Leanne Rikkers, da FESPAD, uma organização de direitos humanos de El Salvador, disse que uma trégua não vai durar sem o apoio do governo, e uma bênção da Igreja iria dar cobertura política essencial.
"Essa não é uma questão política, é uma questão moral, é uma questão social, é uma questão de direitos humanos", disse Rikkers. "É muito importante que a Igreja desempenhe esse papel".
A tensão se acirra à medida que a Igreja em El Salvador se prepara para a cerimônia de beatificação de Romero em San Salvador, no dia 23 de maio, um evento esperado para ser um dos maiores da história do país.
Morto por sua oposição aberta aos abusos dos direitos humanos e da opressão do governo, Romero tornou-se um ícone do movimento progressista do Catolicismo, conhecido como Teologia da Libertação, que buscou colocar a Igreja do lado dos pobres na luta pela mudança social.
Para os de fora, a beatificação de Romero provavelmente será uma celebração do passado, de outros mártires da guerra civil de El Salvador, incluindo quatro freiras missionárias norte-americanas estupradas e mortas por um esquadrão da morte militar em 1980 e de seis padres jesuítas, juntamente com sua empregada e sua filha, mortos pelos militares em 1989.
Para os salvadorenhos, no entanto, o foco pode estar mais no presente, moldado pelas realidades que o InSight Crime chama de "uma dinâmica criminal que está tomando uma conotação de uma guerra de baixa intensidade".
Diante do sangue nas ruas e de um corpo de bispos talvez, compreensivelmente, cauteloso, a questão latente dos moradores locais apresentada pela beatificação pode ser: "O que Romero faria?".
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Em El Salvador, Igreja debate um possível ''pacto com o diabo'' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU