Por: Cesar Sanson | 25 Março 2015
Lá fora, um som vindo da medina, ou masjid, como se referem os muçulmanos ao local (templo ou lugar de culto é o que signica), avisa que é hora da reza. A voz em árabe e a impossibilidade de entender o significado das palavras é, para a maioria de nós ocidentais, um dos pequenos abismos que tornam um desafio a compreensão da região e de das múltiplas perspectivas do mundo árabe. Nos falta informação plural, nos falta diálogo, sobram generalizações impostas pelos meios de comunicação internacionais.
“Ninguém quer falar a fundo sobre o atentado que ocorreu no Museu do Bardo, porque é terrorismo, e terrorismo não se discute. Acontece que temos de falar para entender de fato”, critica Hamouda Soubhi, marroquino e um dos principais representantes da organização do comitê organizador do Fórum Social Mundial no continente africano.
O Fórum começou nesta terça-feira, 24 de março de 2015, na capital da Tunísia, a cidade de Túnis, com uma marcha no Centro da cidade. Na entrevista abaixo, ele fala sobre o complexo contexto atual na região.
O Fórum começa seis dias depois do atentado que deixou 21 pessoas mortas, em sua maioria turistas, e cuja autoria foi reivindicada pelo Estado Islâmico. Mas a principal marca da cidade de Túnis é outra. Aqui foi onde se iniciou a “Primavera Árabe”, desencadeada pela “Revolução de Jasmim”, entre dezembro de 2010 e janeiro de 2011, iniciada logo depois do suicídio de Mohamed Bouazizi, de 26 anos, vendedor ambulante de frutas e verduras, em Sidi Bouzid. Sem conseguir uma licença para trabalhar na rua, Mohamed fora, por anos, assediado pelas autoridades tunisianas: impossibilitado de continuar pagando propinas aos fiscais, acabou por ter sua mercadoria e sua balança confiscadas. Desesperado, o rapaz ateou fogo ao próprio corpo. O episódio foi a gota d’água em um movimento que crescia e deu o pontapé para uma transição democrática. As primeiras eleições após a revolução ocorreram no final de 2014.
Hamouda Soubhi concedeu entrevista à Camila Nobrega do Canal Ibase, 24-03-2014.
Eis a entrevista.
O Fórum Social Mundial se inicia com uma marcha que irá até as proximidades do Museu do Bardo. Qual a mensagem dela?
No início, a marcha seria sobre dignidade, equidade e a luta por direitos. Eram os temas que norteariam. Mas, seis dias antes do Fórum, levamos um choque com o atentado. E pensamos: como falar com a população tunisina, homens e mulheres simples que não têm contato com movimentos sociais, que estamos solidários a elas e eles? Como dizer que estamos juntos nessa dor? No primeiro comunicado oficial do Fórum após o atentado, reforçamos nossa posição contra o terrorismo e afirmamos que a vinda de pessoas do mundo inteiro para cá para participar das atividades seria uma atitude de apoio ao povo tunisino e à transição democrática pela qual passa o país.
O Fórum é também um ato pelos mortos no Museu do Bardo. Debatemos muito com toda a comissão internacional e, ao final, definimos que somos contra todos os tipos de terrorismo em todo o mundo. Assim, o slogan da marcha é ” Todos os povos do universo unidos pela liberdade, dignidade, justiça, paz e pela solidariedade ao povo tusiniano e contra todas as formas de opressão”. A marcha em si já será um grande apoio ao povo da Tunísia e ao momento histórico pelo qual o país está passando, de estabelecimento da democracia.
Qual o significado deste fórum para o mundo árabe e para todos os países participantes neste momento?
É a segunda vez que a cidade de Túnis recebe uma edição do Fórum Social Mundial (além de Túnis, a única outra cidade que sediou duas edições do FSM foi Porto Alegre, no Brasil) e é um momento importantíssimo para nós consolidarmos nosso trabalho. A transição democrática está feita, mas agora é o momento exatamente de fortalecer os movimentos sociais para construírem este país e a região como um todo, citando Egito, Marrocos, Líbia, Síria. A Tunísia se renovou, mas uma revolução não se faz de um dia para o outro, há disputas, há riscos. A partir do final deste fórum, em 28 de março, temos novos desafios pela frente. Vamos trabalhar mais fortemente em dinâmicas específicas, como as dinâmicas do movimento de mulheres, das juventudes…
Trabalhamos desde 2001, em Porto Alegre, até hoje, nessa região, com essa lógica de dinâmicas. E foi a junção da força de todas elas que fez surgir outros fóruns sociais regionais. Em 2002, foi o Forum Social do Marrocos, 2003 novamente, em 2004 foi a primeira edição do Fórum Social do Magreb. Isso possibilitou conquistas em cada luta. No Marrocos, por exemplo, as mulheres conquistaram leis civis. Agora, mulheres marroquinas, se casarem com estrangeiros, podem passar sua nacionalidade aos filhos. Antes, isso não era possível. Foi uma briga enorme.
E no caso da revolução de 2010-2011 na Tunísia, como funcionou o apoio entre os movimentos e entre os países da região?
Em 2010, a articulação criada inclusive pelo Fórum Social Mundial nos possibilitou apoiar o movimento, estar próximo. Esse é um dos principais ganhos do Fórum, a facilidade de se articular e criar redes. É uma plataforma onde todos estão, sem chefe, sem secretário-geral ou coordenador. Nós convergimos as dinâmicas e os movimentos sociais. A revolução na Tunísia não começa em 2010, começa em 2006, quando surgem grandes revoltas pelos direitos das mulheres e no campo dos direitos humanos.
Quem estava à frente da revolução na Tunísia? Havia muitos movimentos populares, certo?
Sim, o que aconteceu em Túnis não foi uma revolta de intelectuais, foi uma revolta de jovens, de pessoas de classes populares. E nós, no Marrocos, fomos às ruas para apoiar os jovens tunisinos. Os egípcios fizeram a mesma coisa. Assim, o movimento ganhou espaço no mundo árabe. A Tunísia pensou: Ben Ali precisa sair. Os egipcios vieram em seguida: Mubarak precisa sair. Marrocos e Síria fizeram o mesmo. E assim surgiu a Primavera Árabe. Cada país com suas características locais, mas houve um movimento por democracia e anti-imperialista que conectava a todos.
Essas são as similaridades, mas há diferenças entre esses países no que diz respeito à atuação dos movimentos sociais. Que diferenças você ressaltaria?
Na Tunísia, Marrocos e Egito foi mais fácil trabalhar nas mudanças, porque os movimentos sociais já estavam fortalecidos. Na Síria e na Líbia, por exemplo, eles eram inexpressivos, não havia espaço para nada. As ditaduras eram muito fortes, extremas. Na Tunísia, os movimentos sociais chamaram a todos para estarem juntos naquele momento. No Marrocos, foi a mesma coisa. O movimento social é forte, assim como no Egito. O governo não estava não surpreso, pois o que ocorreu era resultado de um processo. A Tunísia inclusive já tem uma nova constituição. Mas na Síria, na Líbia, houve confronto. Muamar Kadafi começou a matar civis e, até ele ser capturado e morto, a situação foi de luta nas ruas. Os movimentos de resistência surgiram ali, as pessoas começaram a pegar em armas. Houve desertores das forças armadas que se juntaram. Turquia e Qatar, de maioria sunita, forneceram armas. Na Síria, o contexto foi parecido. Nesses dois países, o enfrentamento foi direto.
Sobre o crescimento do Estado Islâmico na região, qual sua avaliação e a perspectiva que vem sendo discutida no âmbito do FSM?
O Estado Islâmico diz que quer fazer um único estado desde a Mauritânia até o Iraque. Trata-se de correntes diferentes, interpretações muito diferentes dentro do islamismo. O combate a eles têm apoio norte-americano, há muita participação internacional nesse embate. Por outro lado, é importante perceber que a estratégia dos Estados Unidos também preocupa. Querem dividir os países do mundo árabe. O ideal para eles seria o Iraque dividido em cinco países, a Síria em dois, Iêmem talvez em dois também, a Turquia ganharia um território a mais… A Árábia Saudita, Qatar, Turquia apóiam. Eles são de maioria sunita e querem acabar com xiitas. Mas é preciso compreender que, dentro dos sunitas, há também muitas perspectivas. O Estado Islâmico é também sunita, por exemplo. Não é possível generalizar o islamismo apenas dividindo as duas correntes.
Sobre o atentado que acaba de ocorrer no Museu do Barco, qual sua interpretação? Qual a mensagem contida nele?
O objetivo era atacar estrangeiros, eles sabiam que atingiriam mais estrangeiros. São pessoas que não creem em Deus, assim eles veem. Além disso, eles querem atacar a economia da Tunísia. Boa parte da economia do país está baseada em Turismo. Com um atentado como aquele, as pessoas têm medo de vir. Por fim, eles mandam a mensagem de que estão na região. Há muitos deles nas montanhas, na Algéria e aqui. Eles ficam entre Argélia, Líbia e Tunísia e é difícil encontrá-los, vigiá-los.
Quais os próximos desafios para a transição democrática na Tunísia?
A Tunísia não é um país com muitos recursos. Eles têm fosfato e nem tanto. Claro, eles têm agricultura. Mas não há dinheiro para reconstruir o país, falta base econômica para sustentar a transição. Nesse momento, são as multinacionais que trazem dinheiro, dinamizam a economia. É por esse caminho que estão seguindo. Tem sido um governo de coalização, combinando muitos interesses. Como disse, é um processo. A mídia tradicional aqui, por exemplo, não quer falar uma linha sobre o FSM. É uma mídia fechada com interesses próprios. Mas há espaço para a mídia alternativa, ela cresce cada vez mais. Isso é essencial.
A mídia alternativa é também um dos principais debates do Fórum, com o Fórum de Mídia Livre…
Sem dúvida. O movimento de mídia alternativa começou como parte do Fórum Social Mundial e agora é um fórum próprio, o Fòrum Mundial de Mídia Livre. Na Tunísia e no Marrocos, o espaço está crescendo muito. Os blogs, sites, estão se tornando plataformas importantes para o crescimento da mídia livre. Sobre o FSM, se a informação não chega pela mídia alternativa, ninguém fica sabendo que existem pessoas do mundo inteiro reunidas aqui neste momento. E ninguém quer aprofundar o assunto sobre o Museu do Bardo, porque o Bardo é “terrorismo”, só se reduz a isso. Não se fala sobre perspectivas, sobre as diferenças dentro do islamismo, ou sobre interesses políticos. E o desconhecimento sobre o mundo árabe, o preconceito que vivem imigrantes, por exemplo, também não é assunto.
Para fazer a transição democrática, é necessário que movimentos de base tenham força, certo? Como o FSM trabalha esta questão?
O espírito do Fórum são os movimentos de base e, ao mesmo tempo, a possibilidade de pensarmos, refletirmos e propor alternativas. Mas não podemos pensar em alternativas, como por exemplo, sair distribuindo painéis solares para as pessoas, sem movimentos de base, sem que as pessoas entendam a importância daquilo. Só fará sentido, por exemplo, se for usado como algo para manter a dinâmica de vida das comunidades. Nesta região, temos trabalhado com dinâmicas, e cada movimento coordena sua relação com os movimentos de base. Cada segmento trabalha suas prioridades na luta contra as diversas opressões.
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“Lutamos contra todos os tipos de terrorismo” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU