Por: André | 12 Março 2015
“Visto da favela argentina de La Cárcova, o mundo está do avesso. Ali tudo depende do que se descarta. Tudo coloca em tela de juízo as nossas certezas. E não apenas porque o que Buenos Aires descarta La Cárcova recicla, transformando o lixo em mina a céu aberto, em um canteiro repleto de coisas que os olhos estranhos são incapazes de ver. Isso é a superfície, nada mais. La Cárcova é a pedra descartada que deixa nus os pés de barro da gigantesca megalópole. Revela sua fragilidade. Faz duvidar de seus fundamentos. Muitas vezes, o que descartamos é justamente o que estamos procurando. Não é por acaso que o Papa tenha decidido responder as perguntas de La Cárcova. E demonstrar, assim, que, verdadeiramente, os últimos serão, melhor dito, já são os primeiros.” A reflexão é de Paolo Ruffini, em artigo publicado no sítio Tierras de América, 11-03-2015. A tradução é de André Langer.
Fonte: http://bit.ly/1xg5PI6 |
Paolo Ruffini é diretor da Rede TV2000 e da Rádio InBlu.
Eis o artigo.
Visto da favela argentina de La Cárcova, o mundo está ao contrário. Ali tudo depende do que se descarta. Tudo coloca em tela de juízo as nossas certezas. E não apenas porque o que Buenos Aires descarta La Cárcova recicla, transformando o lixo em mina a céu aberto, em um canteiro repleto de coisas que os olhos estranhos são incapazes de ver. Isso é a superfície, nada mais. La Cárcova é a pedra descartada que deixa nus os pés de barro da gigantesca megalópole. Revela sua fragilidade. Faz duvidar de seus fundamentos. Muitas vezes, o que descartamos é justamente o que estamos procurando. Não é por acaso que o Papa tenha decidido responder as perguntas de La Cárcova. E demonstrar, assim, que, verdadeiramente, os últimos serão, melhor dito, já são os primeiros. Dizia o padre Primo Mazzolari: “Eu nunca contei os pobres, porque os pobres não podem ser contados; os pobres se abraçam, não se contam”. Bom, esta entrevista é um abraço. Palavra por palavra. Embora nem sempre as palavras consigam expressar tudo, estamos tão acostumados a dizê-las que as consumimos. Mas as palavras são importantes. Algumas são fundamentais. Francisco fala sobre uma delas: pertença. Só o sentido de pertença a um destino comum pode fazer nascer a consciência de que compartilhar não significa dividir ou subtrair, mas somar e multiplicar. A cultura da partilha é a única que não leva a descartar.
Esquecemos o significado, o sentido, o valor dessa palavra. E a substituímos por sinônimos parciais, filhos da cultura do consumo, onde o que importa não é o que se compartilha, mas precisamente o contrário, o que se evita compartilhar. No entanto, pertencemos uns aos outros, e o pior pecado contra o amor é – como disse Francisco nesta entrevista – desconhecer uma pessoa, renegá-la. A incapacidade de reconhecê-la e de me reconhecer nela. Dias atrás, tive em minhas mãos a foto de algumas crianças em uma favela. Alegres e tranquilas, como todas as crianças. As nossas e as dos outros, as pobres e as ricos. Inconscientes do valor do dinheiro, mas muito conscientes do valor da relação com o outro. Nesta foto há algumas crianças brincando. Sorriem enquanto olham o mundo com a cabeça para baixo, o que está encima e embaixo. E transmitindo-nos involuntariamente uma mensagem. As crianças são as que estão mais próximas de Deus na terra. Sempre devemos aprender com elas. Por exemplo, a ver as coisas de outra perspectiva. A ser curiosos. A saber aprender com os outros. A voltar à radicalidade da mensagem original do evangelho. A saber ver a pedra descartada pelos construtores, a pedra angular de uma construção diferente. A não considerar importante a riqueza material, mas a espiritual. A não considerar a pobreza material como um limite absoluto. A não nos perdermos muito na contabilidade material que se converte em um controle estéril. A não seguir tanto os que não compreenderam que o Evangelho é outra coisa. Caso contrário, para que Deus se fez homem?
Lendo a entrevista do Papa Francisco à revista La Cárcova News lembrei-me da carta que enviou, este ano, à sua comunidade um padre que escolheu exercer seu ministério em uma favela, assim como o Pe. Pepe. Chama-se Wilson Groh e mora em um morro de Florianópolis.
Por que Deus se fez homem? Por que se fez pão? E por que se fez luz? Fez-se homem para nos dizer que a pessoa não se reduz a uma mercadoria... Fez-se homem para dizer que a justiça é o caminho para alcançar a paz entre os povos. Fez-se homem para dizer que as relações, quanto mais humanizadas, revelam a força da sua divindade. Fez-se homem para fazer frente ao modelo consumista, concentrador e excludente que globaliza a economia e coloca os bens nas mãos de poucos em detrimento de milhões de pessoas sem acesso aos direitos fundamentais no planeta Terra. Fez-se homem para fazer a experiência da corporeidade, experimentar as dores, os sofrimentos, as angústias de cada ser humano e dar sentido a tudo o que não tem sentido. Fez-se homem par salvar a relação criador-criatura.
Ele se fez pão para que a humanidade o buscasse como um dom que sacia a fome de pão, a fome de beleza, destruindo a abominação da miséria. Fez-se pão para nos ensinar a compartilhar os bens produzidos por todos... Fez-se pão não para se contaminar, mas para colocar-se do lado dos mais excluídos e oferecer-lhes acesso a um pedaço de pão. Fez-se pão para que não vivêssemos a solidão da falta de sentido. Fez-se pão para que todos experimentássemos o gosto e o sabor do amor. Fez-se pão para que o ato de comer fosse coletivo e compartilhado, e não individualista e solitário, como em um fast food ou um self service. Fez-se pão para valorizar o fruto do trabalho de cada ser humano, não como um fim, mas como um meio para ser felizes. Fez-se pão para dizer que a solidariedade nasce do estômago e da pele e não de grandes discursos teológicos, políticos, econômicos, sociais e culturais. Fez-se pão para que a corresponsabilidade de todos nós com a comunidade humana não acabe aceitando a desigualdade social e a injustiça como uma realidade natural e normal. Fez-se pão para dizer ao ser humano que ele é fruto da Mãe Natureza, e advertir-nos que devemos recomeçar, com uma atitude de reconciliação e não de exploração, ao usar os bens da terra. Fez-se pão para aproximar os lados opostos ao compartilhar a mesa e o diálogo. Fez-se pão para evitar que tivéssemos medo do outro, para que não o demonizássemos como se fosse um inimigo.
Fez-se luz para que não vivêssemos na escuridão, para guiar os seres humanos pelo caminho da esperança. Fez-se luz para nos mostrar e nos fazer compreender os mecanismos que produzem a opressão e a escravidão, e para que lutássemos pela libertação pessoal, integral e comunitária, porque a liberdade é o fruto de um caminho de busca da verdade. Fez-se luz para nos fazer entender que os bens públicos devem ser compartilhados para que toda a comunidade tenha acesso aos seus direitos, respeitando a ética pessoal e coletiva, e não apropriar-se deles indevidamente aumentando a cultura da corrupção. Fez-se luz para ser um fogo que jamais se apaga e arder no coração de cada ser humano que segue despertando cada manhã e volta a se apaixonar pela vida. Fez-se luz para que não perdêssemos a ternura de viver com compaixão e sensibilidade, acolhendo em nossas relações a pele do outro por meio do afeto. Fez-se luz para que não perdêssemos o brilho dos olhos de cada ser humano que tem em si mesmo um capital social que necessita de crédito e de oportunidade para se desenvolver. Fez-se luz para que concretizássemos os nossos sonhos e as nossas utopias em benefício da comunidade humana. Fez-se luz para ser um farol no mundo, iluminando as noites escuras de cada ser humano.
Fez-se homem, pão e luz para nos ensinar que a vida só tem sentido se for vivida intensamente pelos outros, como foi Sua vida... Ele fez-se homem, pão e luz e deixou-se matar por amor a nós, para que experimentássemos o amor do seu Pai, como filhos e filhas, amados e amadas pelo itinerário do coração.
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O mundo do avesso das crianças da favela - Instituto Humanitas Unisinos - IHU