18 Fevereiro 2015
Além das críticas aos excessos do capitalismo e da globalização, o papa manifestou opiniões sobre muitas outras questões como as mudanças climáticas, a pobreza, a desigualdade e os direitos dos homossexuais. Duas ações papais recentes, o avanço no caso do arcebispo salvadorenho Oscar Romero à santidade e a aceitação do papa de se dirigir a uma sessão conjunta do Congresso dos Estados Unidos quando ele visitar o país em setembro, também têm fortes implicações políticas.
A opinião é de Walter G. Moss, professor emérito de História da Eastern Michigan University, Estados Unidos, e editor-colaborador da rede History News Network. É autor do livro "An Age of Progress? Clashing Twentieth-Century Global Forces". O artigo foi publicado na revista Time, 15-02-2015. A tradução é de Claudia Sbardelotto.
Eis o texto.
A revista The New Republic (NR) publicou recentemente um artigo de Elizabeth Stoker Bruenig intitulado "Pope Francis: Radical Leftist?" [Papa Francisco: um radical de esquerda?]. Ele citava um outro texto da revista The Week intitulado "How Pope Francis allows politics to distort the Christian faith" [Como o Papa Francisco permite que a política distorça a fé cristã]. Seu autor falava, em vez disso, de "um papado verdadeiramente humilde, onde a política é evitada". A acusação de que o papa é muito político não é nova e intensificou-se nos círculos de direita desde que Rush Limbaugh afirmou, em 2013, que as palavras do papa a respeito do capitalismo eram "puro marxismo".
Além das críticas aos excessos do capitalismo e da globalização, o papa manifestou opiniões sobre muitas outras questões como as alterações climáticas, a pobreza, a desigualdade e os direitos dos homossexuais. Duas ações papais recentes, o avanço no caso do arcebispo salvadorenho Oscar Romero à santidade e a aceitação do papa de se dirigir a uma sessão conjunta do Congresso dos Estados Unidos quando ele visitar o país em setembro, também têm fortes implicações políticas. Como ressalta Rick Shenkman, editor da History News Network, ao comentar um artigo no The Nation, "a opção do papa por Romero reflete um abraço consciente da teologia da libertação", algo que "as forças conservadoras na Igreja Católica se opõem há muito tempo".
No artigo do The Nation (por Greg Grandin), podemos ler mais sobre o pano de fundo dessa teologia e por que os conservadores se opuseram a ela, por exemplo, por alinhar "a Igreja com os pobres" e condenar o "militarismo apoiado pelos Estados Unidos". Não menciona, no entanto, que os dois papas predecessores de Francisco a criticavam.
Como já mencionei em um outro artigo, João Paulo II estava convencido de que o regime comunista que ele tinha experimentado na Polônia era maléfico e que a teologia da libertação refletia muito a influência marxista.
Antes de suceder João Paulo II, Bento XVI tinha sido o autor de duas críticas à teologia da libertação, "Instrução sobre alguns aspectos da 'Teologia da Libertação'" e "Instrução sobre libertação cristã e liberdade". Em algumas notas preliminares, em 1984, ele reconheceu que há diferentes formas dessa teologia, mas que sua crítica era dirigida a "essas teologias que, de uma forma ou de outra, adotaram a opção fundamental marxista" e que "uma análise do fenômeno da Teologia da Libertação, revela que se trata de uma ameaça fundamental à fé da Igreja".
O artigo da NR acima mencionado, no primeiro parágrafo, observou que os pensadores de direita não se opuseram às declarações papais de apoio de seus pontos de vista e que é falacioso pensar que a religião deve ser mantida separada da política - um erro que os membros da esquerda também cometem às vezes.
Toda essa controvérsia sobre a "política" do papa me faz lembrar de um artigo similar que eu escrevi há muito tempo (em uma dissertação de 1968). E essa controvérsia ocorreu no final do século XIX. Ela envolve o principal pensador filosófico e religioso da Rússia, Vladimir Soloviev, e um grupo de nacionalistas conservadores que eu rotulei de "russófilos". O argumento destes últimos resultava da aliança de Soloviev com os liberais russos e sua crença de que a religião não era apenas uma questão privada, mas devia infundir nossas ações políticas.
Nascido em 1853, Soloviev tinha sido amigo de Dostoiévski, que era uma geração mais velho, e até a morte do escritor, em 1881, o jovem filósofo (e poeta) foi considerado mais um conservador religioso do que um liberal. Mas, como o nacionalista Dostoiévski, Soloviev acreditava que os seres humanos poderiam ajudar a inaugurar o Reino de Deus na terra, e esta crença incentivou uma abordagem mais ativista de mudança do que aquela mantida pelos russófilos. Em 1880, a crítica do antissemitismo e do nacionalismo russo fez Soloviev cada vez mais se afastar dos conservadores. Sua oposição à execução dos assassinos de Alexander II (em 1881) e seu pensamento ecumênico, que os russófilos consideravam demasiado pró-papal, também os irritavam. Mas foi só no fim de 1880 que Soloviev começou a cooperar com os liberais, em busca do bem comum e de uma ordem social mais justa e política, que ele pensava ser um prelúdio necessário para inaugurar qualquer Reino de Deus sobre a terra.
Como muitos norte-americanos conservadores que, hoje, acreditam que os EUA são excepcionais - "os Estados Unidos continuam a divergir da maioria dos outros países democráticos desenvolvidos. E o coração dessa diferença é a religião" (veja também a declaração da plataforma do Partido Republicano) - muitos dos russófilos pensavam que a Rússia era excepcionalmente boa. Eles pensavam que eram melhores do que outros países, porque refletiam melhor os verdadeiros princípios cristãos. Soloviev, no entanto, discordava. Ele pensava que a Rússia era injusta de várias maneiras, por exemplo, por discriminar as muitas nacionalidades não russas - em 1897, os russos estavam em menor número em seu próprio império, ultrapassados por todas as "minorias" que viviam na Rússia, como ucranianos, poloneses e seus muitos povos muçulmanos. Para a mente de Soloviev, uma sociedade injusta não poderia ser verdadeiramente cristã. Justiça era uma exigência mínima para a criação de uma sociedade cristã, e ele afirmava que muitos não crentes que lutavam por justiça e progresso eram mais verdadeiramente cristãos do que aqueles que se diziam cristãos, mas que defendiam injustiças como a discriminação.
Quando uma grande fome atingiu a Rússia em 1891, o governo czarista tentou primeiramente minimizar a crise e evitar esforços sociais independentes de aliviá-la, mas Soloviev, Leo Tolstoy e muitos liberais russos cooperaram para despertar a opinião pública e ajudar os famintos. Soloviev criticou as russófilos por se recusarem a se juntar aos liberais no esforço de ajuda. Mas os russófilos, como muitos conservadores norte-americanos hoje, acreditavam que era perigoso cooperar com os liberais, que isso poderia poluir a fé dos crentes cristãos.
Para os russófilos, salvar a alma era a principal tarefa de qualquer bom cristão. Claro, dever-se-ia ser gentil para com o próximo e praticar uma caridade privada; mas a política, acreditavam eles, deveria ser deixada para o czar autocrático e seus ministros. Se as pessoas comuns estivessem muito envolvidas com a política, com as instituições privadas, com a tentativa de mudar as leis, isso apenas iria corromper suas almas cristãs.
Lendo algumas das palavras do Papa Francisco e sobre a teologia da libertação e seus opositores, podemos perceber um conflito semelhante ao que existiu entre Soloviev e seus oponentes conservadores. Como a Rússia na década de 1890, a América Latina em que a teologia da libertação, o arcebispo salvadorenho Romero e o Papa Francisco amadureceram, foi uma área povoada por uma elite rica e uma maioria de pessoas pobres, principalmente trabalhadores rurais; e a Igreja estava associada principalmente aos regimes autoritários conservadores. E, como na Rússia, apenas uma pequena minoria de líderes da Igreja, como Romero, eram simpáticos a uma teologia de mudança, que criticava a sociedade existente e salientava uma maior ajuda aos pobres.
No final dos anos 1890, Soloviev escreveu sua principal obra filosófica, "A justificação do bem", que lidava com a ética. Nela, ele sustentava que o principal papel do governo era ajudar e defender os mais fracos - cada indivíduo "deveria ter assegurado para si os meios necessários para a existência e desenvolvimento digno material", e deveríamos ter "piedade por aqueles que estão cansados e sobrecarregados, e não (...) definir um valor inferior a eles".
Soloviev não era somente crítico do capitalismo desenfreado, mas ele também acreditava que os seus proponentes não valorizavam suficientemente nosso ambiente comum. Ele acreditava que a busca da "riqueza material como o fim da atividade econômica pode ser chamada de o pecado original da economia política". Além disso, ele afirmava que os seres humanos têm uma obrigação de "não abusar, esgotar ou devastar o ambiente, mas melhorá-lo, levá-lo a ter uma maior potência e plenitude do ser. Nem os nossos semelhantes, nem a natureza devem ser um mero instrumento passivo ou impessoal de produção ou exploração econômica".
A crítica feita em 2013 pelo Papa Francisco ao capitalismo e a sua afirmação mais recente de que o aquecimento global é principalmente criado pelo homem - "Eu não sei se ela (a atividade humana) é a única causa, mas, principalmente, em grande parte, é o homem que tem dado um tapa na cara da natureza" - parece muito com Soloviev na década de 1890.
Durante meses, o papa vem trabalhando em uma encíclica sobre o meio ambiente e o aquecimento global, que se espera que será concluída até a metade do ano. As chances são grandes de que, quando essa encíclica sair, os conservadores, negadores do aquecimento global, irão criticá-la, e alguns vão dizer que o papa deve restringir-se à religião.
Mas, como o russo Soloviev há mais de um século, o Papa Francisco acredita que nossas crenças religiosas devem inspirar e infundir nossos esforços para promover o bem comum.
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O Papa Francisco é muito político? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU