09 Fevereiro 2015
A doutrina social proposta pelo Papa Francisco não agrada a todos nos EUA. Já faz um ano que as críticas dirigidas por Bergoglio ao modelo do capitalismo financeiro na sua versão globalizada, encontraram o mau humor dos ambientes liberais ou ultraliberais de Além Oceano. Mas também alguns entre os observadores com menores preconceitos avaliaram que talvez o Papa não tenha entendido até o fundo como funciona o “mercado”, pelo menos na sua versão a pau e corda [a stelle e strisce]. Parte desta consideração a análise do bispo auxiliar de San Francisco, monsenhor Robert W. McElroy, contida numa longa intervenção publicada na revista dos jesuítas Aggiornamenti sociali – com o título “A ideologia do mercado” – e reproduzida pela revista da Companhia de Jesus nos EUA, América.
A reportagem é de Francesco Peloso, publicada por Vatican Insider, 06/02/2015. A tradução é de Benno Dischinger.
De uma parte, releva o bispo, o estilo e as novidades introduzidas pelo Papa Francisco encontraram um amplo favor da opinião pública nos Estados Unidos; a reforma da Cúria vaticana, a escolha pastoral de olhar “às necessidades dos homens”, o convite à conversão e à renovação pessoal através da fé, a promoção de uma visão eclesial que não esteja sempre pronta a emitir condenações, tem sido todos eles fatores que contribuíram para atrair a atenção sobre o Papa Francisco.
Todavia, os problemas começaram quando, em particular com a publicação da exortação apostólica “Evangelii gaudium”, o magistério do Papa tocou os temas econômicos e tomou forma a crítica a um sistema financeiro que “mata” quem é excluído, quem não “consome”.
“As críticas ao Papa Francisco – explica monsenhor McElroy – se concentram sobre três elementos principais: o Papa não entende a importância do mercado; o capitalismo criticado por Francisco é bem diverso do sistema econômico dos Estados Unidos; o ponto de vista do Papa é distorcido por suas origens latino-americanas e não está em linha com o ensinamento dos seus predecessores”.
Todavia, segundo o bispo, o problema não é tanto a escassa compreensão da parte do Papa quanto ao sistema capitalista ou à “centralidade dos mercados”, e sim antes quanto ao “que se consegue até demasiado bem e, portanto põe interrogativos de fundo sobre a justiça e sobre o sistema econômico americano”.
Francisco, explica ainda o Bispo auxiliar de San Francisco, põe em discussão alguns dos princípios sobre os quais se fundamenta o sistema econômico dos Estados Unidos: ou seja, o significado a atribuir à desigualdade econômica, “a moralidade do livre mercado e a relação entre a atividade econômica e o lugar que cada um recobre na sociedade”.
Os pontos levantados pelo magistério do Papa, releva McElroy, chamam em causa a presumida sacralidade do mercado da qual descende – numa concepção americana clássica – a inevitabilidade da pobreza – ou seja, o pobre é tal por sua responsabilidade – e a capacidade do sistema de produzir bem-estar e melhorar as condições de vida, prescindindo de qualquer intervenção externa; neste contexto, a livre iniciativa conjugada ao talento de cada um é o elemento-chave da ideologia capitalista. De tal modo, “a desigualdade nasce do direito de homens e mulheres de utilizarem os próprios talentos como melhor lhes parece e da justa exigência de recompensar os indivíduos pela contribuição a iniciativas específicas”.
E, se é justo que uma sociedade estabeleça um mínimo de subsistência para os próprios cidadãos e além disto não se vai, a desigualdade não se deve combater porque faz, de certo modo, parte do sistema. “Mas, para a doutrina católica – escreve McElroy – este pressuposto, tão profundamente conatural à cultura americana, é radicalmente inaceitável. O ponto de partida do pensamento da Igreja não é a necessidade de maximizar o crescimento econômico ou o direito dos indivíduos a serem recompensados, mas a par dignidade de todos os homens e mulheres, criados à imagem de Deus”.
A referência, além disso, é neste caso ao número 29 do documento conciliar “Gaudium et spes”, no qual se afirma: “As desigualdades econômicas e sociais excessivas entre os membros e entre os povos da única família humana, suscitam escândalo e são contrárias à justiça social, à equidade, à dignidade da pessoa humana, bem como à paz social e internacional”. Nesta perspectiva, releva o Prelado estadunidense, “graves desigualdades entre as nações e em seu interior são automaticamente suspeitas segundo a doutrina católica: não constituem a concretização da ordem natural, mas representam uma profunda violação da mesma”.
McElroy observa depois como a sacralidade do mercado tenha sido ”traída” em diversas ocasiões também nos Estados Unidos e em particular com a reforma agrária do século XIX, depois novamente no início do século XX e ainda durante a “Grande Depressão”. Nessas ocasiões as escolhas econômicas foram orientadas pela política para favorecer mudanças e reformas ou enfrentar períodos de crise. O mercado, portanto, deve ser sempre instrumento – “um meio a serviço das pessoas e das comunidades” – e não se transformar em “imperativo categórico”.
Enfim, McElroy, com referência também à última campanha eleitoral presidencial de 2012, põe em luz outra tendência cultural presente na América, com base na qual a sociedade se divide entre “produtores” (makers) e “assistidos” (takers). “Os primeiros são aqueles que pagam taxas maiores pelos benefícios que recebem da administração pública, enquanto os segundos são aqueles que recebem benefícios em medida maior do que as taxas que pagam”. “A idéia de base – explica-se no texto – é que uma fatia consistente da sociedade americana drena continuamente recursos do sistema econômico”.
Trata-se de uma idéia, observa o Bispo, que se reforçou “também por causa do aumento da desigualdade e da redução da mobilidade econômica daqueles que nascem nas famílias que constituem os 20% mais pobres da população”. “O resultado – afirma McElroy – é que precisamente a exclusão contra a qual o Papa Francisco nos põe em guarda atingiu a retórica pública e a unidade da sociedade americana. Os pobres, que estavam no centro da ação política e da atenção pública nos anos 60 e 70 do século passado, se encontram agora relegados ao um ângulo do debate público”. “Os programas em seu benefício – se explica – devem ser justificados na base das vantagens colaterais para a classe média. A idéia com frequência não explicitada, mas profundamente radicada nesta mudança cultural, é que os pobres são em grande parte responsáveis pela própria pobreza”.
E então, “pensar que seja possível dividir uma sociedade em “produtores” e “assistidos” encarna exatamente aquele individualismo que o Papa Francisco condena”. Além disso, tal divisão se baseia no princípio que “a produção da riqueza seja essencialmente um empreendimento individual, desconhecendo a enorme importância do contributo da sociedade para toda iniciativa empreendedora. Nega a afirmação central da doutrina católica que a criação é obra de Deus doada à humanidade no seu conjunto, e que os bens materiais têm uma destinação universal que não deve ser contradita”. É, em definitivo, uma forma de ideologia que, além do dado econômico, confere ao mercado o papel de “árbitro ético de mérito, esforço e talento” e “exerce um influxo subversivo sobre a sociedade americana, semeando discórdia e divisão”.
“Sem reformas estruturais do sistema econômico, visando remover os obstáculos ao crescimento da ocupação – conclui McElroy – o círculo vicioso da exclusão econômica e social que está no centro do desafio lançado pelo Papa não fará senão piorar”.
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O mercado não é sagrado. Por que o Papa põe em crise o modelo USA - Instituto Humanitas Unisinos - IHU