06 Fevereiro 2015
No período dos papas João Paulo II e Bento XVI, tantas questões de moral - leia-se, "questões sexuais e reprodutivas" - foram tratadas quase como se fossem artigos de fé que não podiam ser questionados, duvidados ou debatidos.
A opinião é de Robert Mickens, editor-chefe da revista Global Pulse. Desde 1986, vive em Roma, onde estudou teologia na Pontifícia Universidade Gregoriana, antes de trabalhar na Rádio Vaticano por 11 anos e, em seguida, como correspondente do jornal The Tablet de Londres. O artigo foi publicado no sítio National Catholic Reporter, 02-02-2015. A tradução é de Claudia Sbardelotto.
Eis o texto.
Infelizmente, há uma enorme quantidade de absurdos que acontecem na nossa amada Igreja. Durante quatro décadas - aquelas que terminam em zero - que coincidiram com a minha vida aqui em Roma desde meados dos anos 1980, eu já presenciei muitos deles. (...)
Agora estou tentando descobrir o quê George Weigel tinha em mente quando escreveu recentemente o artigo "Nonsense on 'Sixty Minutes'" [Absurdos no 'Sessenta Minutos', programa jornalístico da televisão dos EUA].
Nessa sua mais recente preleção sindicalizada (e moralizante), o apologista de João Paulo II mais importante do mundo finge colocar na mira o programa da CBS News por causa de um segmento que foi ao ar no dia 28 de dezembro tratando do "efeito Francisco". Mas o programa "60 Minutes" não é o único alvo do Sr. Weigel.
É também este que vos fala.
Qual é o meu crime? De acordo com o autor da biografia de 992 páginas do homem que ele chama de "João Paulo, o Grande", é o seguinte comentário que fiz sobre um papa que muito provavelmente poderia ser visto como ainda maior - o Papa Francisco.
"O que ele está fazendo é abrir a discussão na Igreja", eu disse no "60 Minutes". "Não havia discussão sobre questões como o controle de natalidade, sexo antes do casamento, católicos divorciados e recasados. Nenhuma discussão. Não houve nenhuma discussão nos últimos, provavelmente, 35 anos sobre isso".
Não é verdade, escreve o Sr. Weigel. E ele passa a usar outras 500 palavras, habilmente entrelaçadas, para explicar por quê. Ele também critica o apresentador Scott Pelley, da CBS, dizendo que ele "deu uma chance a Mickens" por não me pressionar a defender as minhas observações.
"O que Robert Mickens e da mesma forma outros católicos bem situados estão realmente reclamando quando dizem que não houve 'nenhuma discussão' sobre essas questões é que eles perderam a discussão: eles não gostam do fato de que o magistério da Igreja nega-se a revogar as concepções morais já estabelecidas que tratam dos métodos moralmente adequados de planejamento familiar, da natureza do amor humano e da indissolubilidade do matrimônio, não considerando o conselho daqueles que têm ideias diferentes (e defeituosas) sobre essas questões", proclama, com florescer quase magisterial e um desprezo arrogante pela pontuação.
"Uma insistência constante com tudo isso pela autoidentificada ala 'progressista' da Igreja Católica me parece uma confissão tácita de empobrecimento intelectual", declara ele.
Eu vou voltar aos pontos do Sr. Weigel em breve, mas, em primeiro lugar, gostaria de fornecer um pouco da história que está por trás da minha participação no episódio do "60 Minutes".
Os produtores do programa entraram em contato comigo em março de 2014, e acabamos fazendo a entrevista no dia 13 de abril, em Roma, duas semanas antes do Domingo de Ramos, quando o programa foi finalmente ao ar. Entre os outros convidados do programa estavam o presidente Barack Obama, que estava na cidade para seu primeiro encontro com o papa, o cardeal Gerald Lacroix, de Quebec, e Elisabetta Piqué, uma jornalista argentina que cobre o Vaticano.
Aparentemente, o programa foi bem recebido, e as opiniões expressas mantiveram a sua validade com o passar do tempo, de modo que a CBS decidiu exibir uma versão ligeiramente modificada do programa no final de dezembro.
Fiquei surpreso que os produtores usaram grande parte da entrevista que dei a eles. Eu esperava que eles usassem apenas um breve comentário e uma ou outra frase. Isso é bastante normal. No entanto, até mesmo os vários minutos que eles incluíram no programa foram apenas um pequeno pedaço de uma conversa gravada que se estendeu por quase uma hora.
Bem, esse é o pano de fundo.
Agora, a tarefa mais fácil: em resposta à objeção de George Weigel à minha afirmação de que não houve nenhuma discussão sobre certas questões nos últimos 35 anos na Igreja.
"Se há uma coisa evidente sobre a alegação de Mickens é que ela é evidentemente não verdadeira", diz ele definitivamente.
Obviamente, o Sr. Weigel não participou ou acompanhou quaisquer encontros sinodais. E ele não tem prestado muita atenção para a gama de talentos de onde a Santa Sé está tirando os candidatos em cuja cabeça caem aqueles chapéus pontudos chamados mitras.
Ou talvez ele simplesmente fecha os olhos com uma ignorância intencional para tudo isso.
Porque a verdade autoevidente é que o debate sobre as questões polêmicas mencionadas anteriormente nunca foram toleradas dentro da Aula [do Sínodo]. Elas eram, por nota prévia, proibidas. E o teste decisivo estritamente imposto para se tornar um bispo é que os candidatos evitassem claramente questionar esses tópicos.
Ainda assim, o Sr. Weigel lamenta que tenha havido demasiada discussão, no entanto - em publicações e salas de aula universitárias dominadas pela "autoidentificada ala 'progressista' da Igreja Católica".
Mais uma vez ele está enganado. Apelos e protestos para discussão são apenas isso. A Santa Sé e, com poucas exceções, a maioria dos bispos do mundo rejeitaram ou simplesmente ignoraram estes pedidos.
Provavelmente o que mais o irrita em meus comentários no "60 Minutes" é a parte: "Nos últimos, provavelmente, 35 anos". Esse, é claro, é o intervalo de tempo que remonta ao início do pontificado de João Paulo II (1978-2005) e que engloba o seu perfeito e, em certos aspectos, mais inflexível adendo, o pontificado de Bento XVI (2005-2013).
No período desses dois papas, tantas questões de moral - leia-se, "questões sexuais e reprodutivas" - foram tratadas quase como se fossem artigos de fé que não podiam ser questionados, duvidados ou debatidos.
Mas, em um breve período de tempo, o Papa Francisco deu mais do que apenas a mera aprovação ao questionamento, à dúvida e ao debate sobre a eficácia da abordagem da Igreja para muitas dessas questões que não pertencem ao Credo. Através de sua exortação apostólica (Evangelii Gaudium), seu primeiro consistório e a sessão extraordinária do Sínodo dos Bispos, ele realmente incentivou tal discussão como algo muito normal e muito saudável.
Mas, ao contrário do Sr. Weigel, o papa sabe que não tem todas as respostas.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Biógrafo de João Paulo II se irrita com absurdos em torno do ''efeito Francisco'' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU