28 Janeiro 2015
No sábado, 24 de janeiro, na Faculdade de Teologia da Itália setentrional de Milão, o cardeal Angelo Scola conferiu a láurea honoris causa a um dos maiores teólogos ortodoxos: Ioannis Zizoulas, Metropolita de Pergamo, do Patriarcado Ecumênico de Constantinopla. É um evento de grande significado eclesial, cultural e positivo para o diálogo ecumênico com o mundo ortodoxo.
A seguir publicamos a lectio magistralis de Zizioulas. A tradução é de Benno Dischinger.
Eis o texto.
Por uns dois mil anos os dois “pulmões” da antiga Igreja, as tradições teológicas Orientais e Ocidentais, deixaram de respirar juntas. O Oriente e o Ocidente seguiram caminhos separados e diferentes, muito frequentemente em contraposição entre si, a despeito daquilo que o defunto padre Georges Florovsky chamou de “o antigo ethos católico”. Este período se encerrou quando os corajosos líderes da Igreja do Oriente e da Igreja do Ocidente, entre os quais o falecido Papa João XXIII e Paulo VI da parte Católica, e o Ecumênico Patriarca Athenagoras da parte Ortodoxa, abriram um novo capítulo na história da Igreja introduzindo o diálogo de amor e verdade entre as duas Igrejas, a Católica Romana e a Ortodoxa, com a perspectiva de instaurar plena comunhão entre elas, em obediência ao querer de Nosso Senhor “para que todos sejam uma só coisa: como tu, Pai és em mim e eu em ti, sejam também eles em nós, para que o mundo creia que me enviaste” (João 17,21).
Esta reaproximação ecumênica está ocorrendo em diversos níveis. Existe, em primeiro lugar, um ecumenismo espacial que reúne as Igrejas Cristãs e as confissões de todo o mundo sob forma de encontros e organizações. Ao mesmo tempo há também aquilo que o padre Georges Florosvsky chamava de ecumenismo do tempo, isto é a tentativa de pôr em relação a busca da Unidade cristã do nosso passado comum, a Escritura Cristã e a Tradição da Igreja, incluído o patrimônio Patrístico, que é de importância decisiva sobretudo para os Ortodoxos e os Católicos Romanos. E também deve existir aquilo que chamamos de Ecumenismo Espiritual, isto é, o esforço de reunir os Cristãos divididos em termos de espiritualidade, enquanto isto é expresso na vida ascética, de prece, etc.
A estas formas de aproximação ecumênica eu gostaria de acrescentar uma quarta que chamarei de Ecumenismo Existencial. Com isso entendo o esforço de relacionar a busca da Unidade Cristã nas mais profundas preocupações existenciais do ser humano, como as questões da vida, do amor, da liberdade, etc., que preocupam todo ser humano em todo tempo e em todo lugar. Este tipo de ecumenismo, que temos tentado ignorar ou deixar de lado no passado, parece ser de crucial importância principalmente no nosso tempo. Se considerarmos a situação na qual os Cristãos vivem hoje em lugares como o Oriente Médio, nós nos daremos conta que todas as diferenças dogmáticas e outras que os dividiram por séculos são substituídos por problemas existenciais fundamentais comuns a todos eles enquanto seres humanos, como a liberdade e a dignidade pessoal, ou até mesmo a vida e a morte. Aqueles que perseguem e matam os Cristãos nestas áreas não lhes perguntam a que igreja ou confissão pertencem. Um ecumenismo do martírio está tendo lugar ali, unindo todos os Cristãos ao nível de fundamentais situações existenciais, como a vida, a morte, a liberdade e a dignidade. Nesta situação, o que emerge como o problema mais importante é o valor da pessoa humana e seu fundamental significado existencial.
Este problema de fato não é limitado às situações de conflito e de guerra. Está presente em todas as sociedades e culturas; é o problema que permeia nossa vida cotidiana, não importando onde vivamos. A questão que está na base e caracteriza nossa conduta e nosso comportamento sempre e em toda cultura é sempre esta: demos à pessoa um fundamental significado existencial, ou o consideramos e tratamos como um meio que pode ser sacrificado por um valor mais alto? De que modo a fé Cristã e a teologia consideram a pessoa humana.
Aqui gostaria de dar-vos algumas modestas reflexões sobre o significado da idéia de pessoa na teologia Cristã, tomando como ponto de partida nossa tradição comum no Oriente e Ocidente. Meu objetivo é o de mostrar que o personalismo é centra à nossa fé Cristã comum e pode servir como fundamento de um ecumenismo existencial que pode tornar a nossa unidade pertinente às necessidades fundamentais da humanidade.
As raízes teológicas da idéia de Pessoa
O termo “pessoa” já era usado no mundo clássico grego e romano, do qual as nossas línguas européias modernas o tomaram. Os gregos, com o termo prosopon designavam originariamente a parte do corpo humano precisamente sob o crânio e os olhos. Neste sentido anatômico encontramos o termo na Ilíade de Homero e na História dos animais de Aristóteles. Muito rapidamente, em todo o caso, o termo foi usado amplamente com o sentido de máscara, endossado pelos atores no teatro e se tornou sinônimo de prosopeion. Significado semelhante foi dado ao termo pelos Romanos. As origens do termo persona ainda são um argumento de discussão entre os estudiosos. Se a teoria prevalecente que associa a origem de persona ao Etrusco phersu, encontrado nas representações funerárias e aceita, a conexão originária do termo com o uso teatral dos Gregos parece plausível. Como o termo persona se estabilizava na literatura latina, ele adquiria o sentido de função ou papel que alguém exerce na vida social, particularmente na relação que alguém tem com o Estado (cf. o termo moderno “pessoa legal” ou “pessoa moral“).
É, portanto, óbvio que o termo “persona” não tinha, no antigo mundo Grego-Romano, um conteúdo ontológico absoluto. Ser uma pessoa queria dizer agir de certo modo, endossar uma “máscara” (prosopeion), não ser si mesmo nem no mais alto sentido ontológico. O mundo antigo não parecia atribuir o mais alto conteúdo ontológico à noção de pessoa.
Foi, de fato, com os Padres da Igreja que o termo “persona” adquiriu o mais alto significado ontológico, e isto se verificou durante a luta para formular a doutrina da Santa Trindade. O personalismo em seu mais alto sentido ontológico é um produto da Teologia Trinitária.
Como sabemos, a primeira vez que o termo persona foi usado na teologia Trinitária, foi na fórmula de una substantia tres personae de Tertuliano. Este termo foi transferido ao grego por Hipólito de Roma na forma da expressão “mia ousía, tria prósopa”. Foi nesta forma que os Padres da Capadócia expressaram a doutrina da Santa Trindade. Este termo tinha sempre o antigo sentido de “máscara” e o perigo era que usando este termo em referência às pessoas da Santa Trindade, isso pudesse ter o significado Sabelliano que as pessoas da Trindade eram três modos pelos quais Deus aparecia. Para evitar este perigo os padres da Capadócia sugeriram que se usasse o termo pessoa como sinônimo da palavra grega “hypóstasis”, a qual indica um “modo de ser” (“tropotsyparcheos”).
Identificando a pessoa com o termo hypostasis pela primeira vez na história do pensamento, a teologia trinitária alçava a noção de pessoa a uma categoria ontológica primária. E, estando em relação ao verdadeiro ser de Deus, a pessoa se tornou sacra quanto Deus mesmo. Nada pode ser mais alto na escala dos valores do que ser pessoa, já que nada pode superar Deus.
O significado existencial do ser Pessoa.
A primeira importante consequência de radicar o personalismo na teologia trinitária é que a pessoa indica uma qualidade divina no ser humano: qualquer insulto à pessoa humana é um insulto ao Próprio Deus. Quando dizemos que o ser humano é uma imagem de Deus (imago Dei), nós nos referimos ao modo em que Deus existe, isto é, como um essere persona. A teologia trinitária adquire deste modo o mais alto significado antropológico. Somente quando se olha o modo pelo qual Deus existe como Santa Trindade se pode captar o pleno significado da pessoa humana.
Partindo desta base, podemos fazer observações que têm efeito sobre a nossa existência como seres humanos.
Na história da filosofia ocidental a idéia de pessoa foi identificada com a de um indivíduo dotado de racionalidade e consciência. A primeira definição de pessoa que nós encontramos no pensamento ocidental foi aquela dada por Boécio no século quinto depois de Cristo: “persona est naturae rationabilis individualis substantia” (Com. Eutyhch. et Nest. 3).
Isto levou ao nascimento do individualismo na cultura ocidental com as nefastas consequências que todos conhecemos. Também tornou a racionalidade como a mais alta qualidade do ser humano, deixando-nos com o problema sobre se os seres humanos que têm falta de racionalidade (por exemplo, os neonatos, as pessoas mentalmente retardadas, etc.) tivessem que ser consideradas como pessoas no pleno sentido do termo. A teologia trinitária não indica uma compreensão do termo persona como um indivíduo racional, mas um conceito inteiramente diferente, que tem as seguintes características:
a) Uma pessoa jamais pode ser concebida em si mesma, mas somente em relação a outra pessoa.
Uma pessoa em nenhuma pessoa. Este caráter relacional do ser pessoa foi enfatizado na teologia trinitária tanto pelos Padres Capadócios no Oriente como por Santo Agostinho no Ocidente. As Pessoas, na Santa Trindade, não são indivíduos que podem ser concebidos em si mesmos, mas existem somente em e através de sua relação com os outros.
Ser uma pessoa, portanto, quer dizer ser em comunhão. Existindo como Trindade, Deus existe como comunhão. E, já que Deus é Ser no sentido pleno da palavra, o verdadeiro ser é comunhão. Atribuir, portanto, o mais alto significado ontológico à pessoa significa dar o mesmo estado ontológico também à comunhão.
a bis) Uma pessoa não é somente relacional, mas ao mesmo tempo outro.
O Pai como pessoa não é o Filho ou o Espírito, o Filho não é o Pai ou o Espírito, e o Espírito é também diverso do Pai e do Filho. Como natureza ou substância divina os três são um Deus. Mas, como pessoas divinas elas são outras.
Este paradoxo de unidade e diversidade que caracteriza a parte mais profunda do ser divino constitui também a essência do ser uma pessoa. O mistério da pessoa está precisamente na combinação da unidade com o ser outro. A Comunhão não leva à eliminação do ser outro, mas, ao contrário, gera o ser outro. Do mesmo modo, ser outro não leva à divisão e ao individualismo, mas à unidade como comunhão.
b) Uma pessoa é única, irrepetível e insubstituível.
As coisas podem ser copiadas, duplicadas, substituídas. As pessoas possuem uma identidade que não é transformada pelo tempo e pela mudança. As relações pessoais sobrevivem às dificuldades, superam as adversidades, sobrevivem até a morte. Com o mesmo amor elas não falham jamais (1 Cor 13, 5); possuem uma qualidade escatológica, um futuro sem fim.
c) Este paradoxo de comunhão e ser outro revela o significado do verdadeiro amor.
O amor não é uma categoria psicológica, um sentimento do indivíduo. O amor é uma categoria ontológica que consiste no dar espaço à outra pessoa de existir como outra e adquirir a existência em e através do outro. É uma conduta kenótica, um dar a si mesmo como o descreve Urs von Balthasar em referência à Santíssima Trindade: “Tu Pai, dás o teu ser inteiro como Deus ao Filho; tu és Pai somente enquanto tu dás a ti mesmo; tu, Filho, recebes tudo do Pai e antes Dele nada mais queres senão receber e restituir... glorificando o Pai na amorosa obediência: tu, Espírito, és a unidade destes dois respectivos encontros, e do dar a si mesmos...” (Mysterium salutis III, 2/1964, pp. 133-326. The Von Balthasar Reader, Edimburgo, 1982, pp.428-429).
Una, portanto, é uma pessoa somente no amor, e um ama somente enquanto permite à pessoa que ama ser outra de si mesma, existir como outra.
d) Isto dá luz ao mistério da liberdade.
A liberdade não é simplesmente a habilidade de fazer escolhas e tomar decisões. A liberdade, em seu mais alto significado ontológico, é ser livre de ser outro, não ser absorvido pelo comum e pelo geral. Isso só pode acontecer em relação kenótica na qual cada pessoa permite à outra pessoa ser ela mesma, ter uma identidade própria, como acontece na Santa Trindade.
Isto, portanto, é o que significa ser uma pessoa humana à luz da teologia trinitária. Significa um modo de ser no qual nós adquirimos a nossa identidade não distanciando-nos dos outros, mas em comunhão com eles no e através de um amor que “não procura a si próprio” (l Cor 13,5), mas está pronto a sacrificar o seu verdadeiro ser para permitir ao outro de ser e de ser outro. É exatamente o modo de ser que se encontra na cruz de Cristo, onde o amor divino revela plenamente a si mesmo na nossa existência histórica. A teologia trinitária e a cristologia oferecem a mesma revelação do que significa ser uma pessoa humana.
Conclusões
Visto o que foi dito até agora, não seria exagero dizer que a fé Trinitária deu à humanidade a sua idéia mais preciosa: a compreensão do ser humano como pessoa. Isto é o que distingue o ser humano do resto da Criação e o torna imagem de Deus. Este dom precioso da nossa fé no Deus Trinitário deve servir como terreno sobre o qual os Cristãos divididos podem construir sua unidade. O modelo da unidade Cristã não pode ser outro senão Deus Mesmo. “Que eles possam ser “uma só coisa como nós somos uma só coisa” (Jo 17,22), era a prece de Nosso Senhor ao seu Pai sobre a unidade daqueles que crêem nele. Uma teologia da comunhão inspirada e derivada da existência pessoal da Trindade de Deus é a única sólida base para a unidade dos Cristãos.
Tornando a comunhão uma idéia chave na eclesiologia, o Concílio Vaticano II endereçou o ecumenismo para sua justa direção. No entanto, não foi feito o suficiente para aprofundar esta idéia de modo que suas raízes na fé Trinitária e seu significado antropológico possam emergir claramente. A tarefa da teologia Católica e Ortodoxa, que se refazem na comum herança Patrística, é trabalhar para uma integração da teologia trinitária, da Cristologia e da antropologia para servir à unidade da Igreja, não por si mesma, porém “de modo que o mundo possa crer” (Jo 17,21). Uma teologia da comunhão com suas implicações personalistas inspirada pela fé Trinitária é tarefa imperativa da teologia Cristã no nosso tempo.
A Igreja não existe para si mesma, mas para a vida e a salvação do mundo. Hoje o ser humano está ameaçado por tendências despersonalizantes ocultas por trás dos sucessos humanos como o progresso tecnológico e científico, o crescimento econômico, a globalização, etc. Até a religião parece despersonalizar o ser humano separando a fé do amor e sacrificando a unicidade da pessoa humana para fins religiosos. Aqueles de nós que crêem num Deus Trinitário não podem senão crer também no valor absoluto de cada pessoa humana pela qual Cristo morreu (I Cor 8,11). A teologia cristã enfrenta novamente a tarefa de interpretar e tornar suas doutrinas existencialmente relevantes para o ser humano.
Possa o Senhor abençoar a todos vós e o trabalho desta renomada instituição de modo que esta sagrada tarefa possa ser seguida para a glória do Deus Trino, Pai, Filho e Espírito Santo. Obrigado.
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De onde nasce a pessoa? A Lectio Magistralis de Ioannis Zizoulas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU