Por: Jonas | 27 Janeiro 2015
Abaixo, a reprodução do discurso do vice-presidente do Estado Plurinacional da Bolívia, Álvaro García Linera, que foi lido na sessão de posse do presidente Evo Morales, no dia 22 de janeiro de 2015, publicado por Rebelión, 26-01-2015. A tradução é do Cepat.
Eis o discurso.
Nós, bolivianos, e a maior parte da América Latina estamos vivendo uma década extraordinária de lutas e grandes conquistas populares.
A mobilização de identidades populares, indígenas, camponesas, operárias e juvenis mudou e está mudando as estruturas políticas e econômicas, dando lugar a maior concentração de governos progressistas e revolucionários de nossa história.
A América Latina se colocou na vanguarda mundial da construção de sociedades pós-neoliberais. Enquanto no restante do mundo o neoliberalismo ainda continua destruindo sociedades e economias populares, na America Latina já não é mais que uma triste recordação arqueológica.
Nacionalizamos recursos naturais devolvendo aos estados do continente a base material da soberania extraviada; distribuímos a riqueza entre os mais necessitados, criando Estados sociais protetores e equitativos; dinamizamos e diversificamos a economia sustentando a criatividade dos produtores; milhões de jovens tiveram acesso à educação escolar e universitária e outros tantos ao emprego, renascendo em seus espíritos a esperança de pátrias dignas.
O continente está rompendo tutelas e apadrinhamentos obscenos e retomou a capacidade de decidir seu próprio destino.
As nações indígenas oprimidas por séculos e os movimentos sociais explorados por décadas não apenas retomaram o protagonismo histórico, mas também, como na Bolívia, assumiram o poder de Estado e hoje conduzem o país.
Em 10 anos, avançou-se mais do que nos 200 anos anteriores. Porém, não é suficiente. O despertar revolucionário dos povos abriu um horizonte de possibilidades muito mais profundo, muito mais democrático, muito mais comunitário, ou seja, socialista, ao qual não podemos renunciar, a não ser sob o risco de uma restauração conservadora, na qual nem sequer a memória dos mortos estará salva.
SOCIALISMO não é uma etiqueta partidária, pois muitas vezes estes só serviram para camuflar a aplicação da barbárie neoliberal.
Socialismo também não é um decreto, porque isso seria reduzir a ação coletiva do povo a uma decisão administrativa de funcionários públicos.
Socialismo também não é estatizar os meios de produção. Isso ajuda muito a redistribuir riqueza, mas a estatização não é uma forma de propriedade comunitária, nem uma forma de produção comunitária da riqueza.
O Capitalismo é uma civilização que subordinou todos os aspectos da vida a uma maquinaria de acumulação de lucros. Desde o comércio, a produção, a ciência e a tecnologia, a educação, a política, o ócio, a própria natureza, tudo, absolutamente tudo, foi pervertido para ser submetido à ditadura do lucro.
E para isso, paradoxalmente, o Capitalismo se viu obrigado a despertar de maneira mutilada, parcial, a forças comunitárias, como a interdependência entre os seres humanos, como o mercado mundial, como a ciência e as tecnologias ou a internet, mas para submetê-las ao serviço do lucro monetário ilimitado de poucos.
E é por isso que aquilo que um dia terá que substituir o Capitalismo como sociedade, necessariamente, terá que ser outra Civilização que libere e irradie, em escala mundial, todas essas forças e poderes comunitários hoje existentes, mas submetidas ao lucro privado.
Marx chamava isto de Comunidade Universal. Outros a chamam de ayllu planetário; outros de bem viver. Não importa o nome, mas, sim, o conteúdo de comunitarização universal e total de todas as relações humanas e dos humanos com a natureza.
Porém, para que esta nova civilização comunal triunfe é necessário um longo e complicado processo de transição; uma ponte. E é essa ponte que chamamos de Socialismo.
O Socialismo é o campo de batalha dentro de cada território nacional entre uma civilização dominante, o capitalismo ainda vigente, ainda dominante, mas decadente, enfrentado a nova civilização comunitária emergente a partir dos interstícios, das fendas e contradições do próprio capitalismo. Comunitarismo inicialmente minoritário, como gotas no deserto; em seguida, como pequenos fios de água que às vezes secam, são interrompidos abruptamente, e depois renascem, e em longo prazo se somam e tornam riacho; depois rio; depois lago; depois mar.
O socialismo não é uma nova civilização; não é uma economia ou uma nova sociedade. É o campo de batalha entre o novo e o velho, entre o capitalismo dominante e o comunitarismo insurgente. É a velha economia capitalista ainda majoritária, gradualmente assediada pela nova economia comunitária nascente. É a luta entre o velho estado que monopoliza decisões na burocracia e um novo Estado que cada vez mais democratiza decisões em comunidades, em movimentos sociais, na sociedade civil.
Socialismo é transbordamento democrático; é socialização de decisões nas mãos da sociedade auto-organizada em movimentos sociais.
Socialismo é a superação da democracia fóssil na qual os governados apenas escolhem governantes, mas não participam nas decisões sobre os assuntos públicos.
Socialismo é democracia representativa no parlamento mais democracia comunitária nas comunidades agrárias e urbanas mais democracia direta nas ruas e fábricas. Tudo ao mesmo tempo, e tudo isso em meio a um Governo revolucionário, um Estado dos Movimentos Sociais, das classes humildes e carentes.
Socialismo é o fato de que a democracia, em todas suas formas, envolva e atravesse todas as atividades cotidianas de todas as pessoas de um país; da cultura até a política; da economia até a educação.
E, é claro, socialismo é a luta nacional e internacional pela ampliação dos bens comuns e da gestão comunitária desses bens comuns, como são a água, a saúde, a educação, a ciência, a tecnologia, o meio ambiente...
No Socialismo coexistem muitas formas de propriedade e de gestão da riqueza: a propriedade privada e a estatal; a propriedade comunitária e a cooperativa. Entretanto, existe apenas uma propriedade e uma forma de administração da riqueza que possui a chave do futuro: a Comunitária, que apenas surge e se expande com base na ação voluntária dos trabalhadores, pelo exemplo e experiência voluntária da sociedade.
A propriedade e gestão comunitária não podem ser implantadas pelo Estado. O comunitário é a antítese de todo estado. O que um Estado revolucionário, socialista, pode fazer é contribuir para que o comunitário que brota por ação própria da sociedade se expanda, seja fortalecido, possa mais rapidamente superar obstáculos. Porém, a comunitarização da economia só pode ser uma criação heroica dos próprios produtores, que decidem exitosamente assumir o controle de seu trabalho em escalas expansivas.
Socialismo é, então, um longo processo de transição no qual estado revolucionário e Movimentos Sociais se fundem para que cotidianamente sejam democratizadas novas decisões; para que cotidianamente mais atividades econômicas assumam a lógica comunitária ao invés da lógica do lucro.
E como fazemos esta revolução a partir dos andes, da amazônia, dos vales, das planícies e o chaco, que são regiões marcadas por uma história de antigas civilizações comunitárias locais; então, nosso socialismo é comunitário por seu porvir, mas também é comunitário por sua raiz, por sua ancestralidade. Porque viemos do comunitário ancestral dos povos indígenas, e porque o comunitário está latente nas grandes conquistas da ciência e da economia moderna, o futuro será necessariamente um tipo de socialismo comunitário nacional, continental e em longo prazo planetário.
Ao mesmo tempo, o socialismo para o novo milênio que se alimenta de nossa raiz ancestral, incorpora os conhecimentos e as práticas indígenas de diálogo e convivência com a mãe terra.
O resgate do intercâmbio metabólico vivificante entre ser humano e natureza praticado pelas primeiras nações do mundo, pelos povos indígenas, é a filosofia do Bem Viver; e está claro que não só é a maneira de arraigar o futuro em raízes próprias; como também é, além disso, a única solução real à catástrofe ambiental que ameaça a vida inteira no planeta.
Por isso, o Socialismo do Novo Milênio só pode ser democrático, comunitário e do bem viver.
Este é o HORIZONTE de ÉPOCA da sociedade mundial. E é este socialismo democrático comunitário do bem viver a única esperança real para uma regeneração dos povos e da própria natureza.
Nós, revolucionários, não viemos para administrar da melhor forma ou mais humanitariamente o Capitalismo. Estamos aqui, lutamos e continuaremos lutando para construir a Grande Comunidade Universal dos povos.
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“Em 10 anos, avançou-se mais do que nos 200 anos anteriores”. Discurso de Álvaro García Linera, vice-presidente da Bolívia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU