27 Janeiro 2015
"Em favor do protesto violento invoca-se, entre outros mártires do não violento, Gandhi e Martin L. King Jr., mas casos emblemáticos como esses não constituem regra, embora seja certo que ambos se sacrificariam, de novo, se vivos fossem, em defesa das muitas vítimas que motivaram os seus protestos", escreve Jacques Távora Alfonsin, advogado do MST, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos, em artigo.
Eis o artigo.
Os movimentos sociais populares e ONGs organizam frequentemente protestos coletivos, a maior parte deles motivados por ameaça ou violação de direitos humanos fundamentais sociais, com presença massiva de gente na rua, portando bandeiras, cartazes, com som alto e panfletos para serem distribuídos à população.
Essa forma de manifestação, legítima sob todos os seus aspectos, tem garantia prevista no inciso XVI, do art. 5º da Constituição Federal:
“ todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente.”
Desde que “sem armas”, portanto, ela não pode ser reprimida, salvo quando abusa ou fere direitos alheios, evidentemente, mas ela pode perder e até desmoralizar uma causa popular importante de reivindicação do respeito devido a direitos já adquiridos ou de direitos a serem conquistados, quando não identifica claramente a favor do que, contra o que e contra quem ela está sendo posta em movimento público.
A responsabilidade das/os intelectuais por esse vício, aparece num artigo recente de Emir Sader, publicado na Carta Maior de 20 deste janeiro:
“O intelectual olha a teoria, a encontra magnífica (de fato, varias delas o são), olha para a realidade, a encontra muito menos coerente e atraente, e fica com a teoria, dando as costas para a realidade. Essa é a postura espontânea dos intelectuais, cuja prática está vinculada a atividades acadêmicas, desvinculadas da prática política. A postura normal de um intelectual é a de interpelar a realidade a partir da teoria, perguntando-se por que a realidade não obedece os cânones da teoria, sendo sempre um desvio em relação a esses cânones. Nada melhor então que o refúgio da teoria, das teorias sobre as teorias, da crítica crítica.”
O risco de se esvaziar o sentido e as referências dos protestos populares, então, encontra-se presente nesse distanciamento, para não dizer nessa acomodação, entre as convicções abstratas criadas pelo estudo de textos e opiniões de famosos “formadores de opinião”, e a realidade histórica que teima em desautorizá-los. Em ambiente e circunstância completamente diferentes desse, as doutrinas jurídicas, as decisões administrativas e judiciais fazem o mesmo quando se eximem de criticar ou até negar a aplicação da própria lei, quando essa vai fatalmente provocar uma injustiça. Não se conhece injustiça que não seja violenta, mesmo aquela que não deixa pistas visíveis como a injustiça social. À possível violência popular posta em movimento contra ela raramente é associada àquela que lhe deu causa, ou seja, a violenta injustiça oficial.
O confronto entre dois grupos armados, previamente preparados para usarem de violência em protesto que reúne multidões, um oficial de repressão e outro não oficial de manifestação, quase sempre acaba mal. Dá exemplo disso uma história engraçada, até hoje lembrada nos encontros do MST. Trata-se de uma resposta que o falecido deputado federal Adão Pretto teria dado a um oficial da Brigada Militar do Rio Grande do Sul - um coronel segundo algumas versões - durante um protesto público do MST. Depois de muito ver suas/seus integrantes apanhar dos militares, o Movimento tinha acabado de optar por sair para os seus protestos, equipado com enxadas, pás, foices e facões. O Oficial questionou Adão, um agricultor simples mas sabidamente esperto, trovador e sempre bem humorado: Por que vocês não vêm a esses protestos apenas com símbolos desses instrumentos do trabalho na roça, essas pás e enxadas, mas tudo feito só de isopor colorido? Adão respondeu: trataremos de vir, sim, coronel, mas só quando a Brigada vier armada de fuzis feitos de isopor também.
Lenda ou não, o cômico dessa história revela muitas coisas, além da óbvia de que o simples fato de haver um grupo armado adverte outro que deve se armar também: primeira, a persistência histórica de um protesto com proposta clara, a do MST, em favor de multidões pobres sem terra, pelo respeito devido à dignidade e à cidadania delas, à Constituição Federal, ao Estatuto da Terra e outras leis garantes de reforma agrária, apontando até, em muitos casos, como existem latifúndios passíveis de desapropriação, onde estão e quando essa pode ser utilizada; segunda, a persistência histórica também de o Poder Público enfrentar o problema, não pelo caminho justo e legal da sua solução, mas sim pela preferência em servir-se da força das armas, tratando uma ferida político-social como uma questão criminal de segurança pública, por mais que isso, há anos, além de não conter os protestos, recentemente seguidos também por movimentos sociais urbanos, acentue o atraso na implementação da política pública de reforma agrária; terceira, o desperdício da experiência histórica coletiva sobre a espiral da violência. Para começar, basta um gesto dela, mas essa tem de estar prevenida de que jamais saberá quando a soma das réplicas e das tréplicas vão terminar, nem como se os efeitos dessas não serão até piores do que os motivadores da primeira; quarta, enquanto não se enfrentam as causas pelas quais as violências são iminentes ou já em curso, não há solução de trégua ou paz, dialogável ou negociável à vista, nem quando os fuzis forem feitos de isopor.
Em favor do protesto violento invoca-se, entre outros mártires do não violento, Gandhi e Martin L. King Jr., mas casos emblemáticos como esses não constituem regra, embora seja certo que ambos se sacrificariam, de novo, se vivos fossem, em defesa das muitas vítimas que motivaram os seus protestos. Mesmo aí, porém, a história mostrou a inutilidade da violência por quem a empregou: até o assassinato deles teve efeito contrário ao poder opressor e repressor contra o qual lutavam. Mais empoderadas ficaram as causas por eles defendidas, ampliando significativas vitórias político-jurídicas, e mais desacreditadas e execradas as defendidas pelas violências que os mataram. Só uma crítica muito contrária e tendenciosa é capaz de atribuir aos protestos populares o desejo de criar mártires, como fez a Zero Hora, quando noticiou a morte de Elton Brum da Silva um integrante MST assassinado em São Gabriel por um brigadiano, durante a execução de uma ordem judicial de reintegração de posse, em 2009.
Violentos ou não violentos os protestos populares, não é possível garantir-se o Brasil não ter de conviver com protestos massivos de gente descontente neste 2015 recém iniciado. O horizonte está carregado de nuvens escuras, não sendo poucos os prognósticos de estar se armando uma tempestade social. Num livro de formato pocket (Bela Baderna, São Bernardo do Campo: Edições Ideal, 2013), que nos foi emprestado pelo amigo Vinicius Galeazzi, um engenheiro defensor de direitos humanos de populações pobres de Porto Alegre, há referência a um estudo que volta a defender, de modo bem fundamentado, a proposta do protesto popular não violento.
Respeitadas como sempre as opiniões em contrário, ele pode ser útil aos movimentos sociais e às ONGs que estão avaliando a situação brasileira de hoje, para decidir o que fazer em favor das pessoas que defendem. Sair armado para um protesto massivo e público pode ser um gol contra às causas pelas quais ele se movimentou, por melhores e mais justas sejam elas:
“A cientista política Erica Chenoweth e o sociólogo Kurt Schock analisaram dados dos movimentos de resistência do passado e descobriram que ter um braço armado reduz drasticamente a habilidade de um levante de atrair ampla participação. A maioria das pessoas não está interessada em ser mártir no meio de um tiroteio, então prefere ficar em casa. Em vez de apenas representar uma ala dentro de uma “diversidade de táticas”, portanto, a violência insubordinada de um grupo tende a reduzir a eficácia do movimento de massa não-violento. É por isso que os opressores amam infiltrar provocadores dentro dos movimentos de resistência, para incitá-los à violência e depois colocá-los em descrédito.”
Protestar é um direito e, conforme as circunstâncias, é um dever. A forma de ele se expressar, entretanto, além de muito bem justificada esclaerecida a causa de sua proposta, tem muito mais chance de credibilidade e êxito quando não apela para a violência, tanto por conveniência e oportunidade da sua ação quanto por garantir maior participação de gente e não prestigiar e legitimar a violência contrária.
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Do protesto sem proposta a uma proposta de protesto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU