15 Janeiro 2015
Da embaixada do Equador em Londres, onde permanece há dois anos e meio por causa de sua luta pela liberdade de expressão, o fundador de Wikileaks analisa causas e consequências do massacre e alerta sobre os riscos que se avizinham.
A entrevista é de Marcelo Justo, publicada pelo jornal argentino Página/12. 14-01-2015. A tradução é de Benno Dischinger.
A interpretação do massacre de Charlie Hebdo se converteu num território em disputa. A liberdade de expressão e a relação com a minoria muçulmana, a dicotomia entre multiculturalismo à la britânica ou integração secular à la francesa, a luta anti-terrorista e a privacidade são alguns dos eixos do debate. No Reino Unido, o diretor do MIS, Andrew Parker, propôs uma nova lei anti-terrorista que conceda mais poderes de vigilância eletrônica aos serviços secretos e um importante editor e historiador conservador, Mark Hastings não duvidou em acusar como co-responsáveis do sucedido o fundador de Wikileaks, Julian Assange, e ao ex-agente da CIA, Edward Snowden.
Enquanto Snowden vive na Rússia com uma permissão de asilo temporal, Assange está resguardado na embaixada do Equador em Londres pela pressão judicial à qual o submetem a Suécia – que continua demandando sua extradição por presumidos delitos sexuais – e os Estados Unidos, que o acusam de terrorismo midiático. O fundador de Wikileaks se transformou num símbolo da liberdade de expressão ao difundir milhões de cabos diplomáticos dos Estados Unidos sensíveis à opinião pública mundial. A partir da sede diplomática na qual permanece há dois anos e meio à espera de autorização para deixar o país, Assange concedeu a entrevista abaixo.
Eis a entrevista.
Qual é sua interpretação do massacre da semana passada?
Como editor, penso que foi extremamente triste o que sucedeu com uma publicação que representa a grande tradição francesa da caricatura. Mas, hoje temos que olhar em frente e pensar sobre o que se passou e qual deve ser a reação. É preciso entender que a cada dia se está produzindo um massacre dessa magnitude no Iraque e em outros países do mundo árabe. E isso tem sucedido graças aos esforços desestabilizadores dos Estados Unidos, do Reino Unido e da França. A França participou na subministração de armas na Síria, Líbia e na recolonização do Estado africano de Mali. Isto estimulou o ataque, neste caso usando um objetivo fácil como Charlie Hebdo. Mas, a realidade é que o serviço secreto francês deixa muitas questões abertas sobre o sucedido.
Crê que houve um fracasso dos serviços secretos franceses?
É o que se está tratando de ocultar. Os serviços de segurança da França sabiam das atividades dos responsáveis do massacre, e sem embargo deixaram de vigiá-los. Por que os irmãos Kouachi, conhecidos por seus laços com extremistas, não estavam sob vigilância? Cherif Kouachi havia sido condenado por delitos terroristas e havia servido 18 meses em prisão. Ambos estavam em listas de potenciais terroristas. Longe de se estarem enviando mensagens criptadas, se comunicaram centenas de vezes antes e durante os ataques com celulares comuns e correntes.
Há muitas perguntas. Por exemplo: por que as oficinas de Charlie Hebdo não estavam mais bem protegidas, dadas as duras críticas da revista ao Islã? Ou como conhecidos jihadistas puderam conseguir armas semi-automáticas na França? Tratou-se de apresentar os assassinos como super-vilões para ocultar a própria incompetência dos serviços. A verdade é que os terroristas eram amadores bastante incompetentes que bateram o carro, deixaram sua cédula de identidade à vista e coordenaram seus movimentos por telefone. Não se necessitava de uma vigilância massiva da Internet para evitar este fato: se requeria uma vigilância específica.
Uma percepção bastante ampla é que você e Wikileaks se opõem à vigilância eletrônica. Na realidade, você faz uma clara distinção entre vigilância massiva e vigilância com objetivos definidos.
A vigilância massiva é uma ameaça à democracia e à segurança da população, já que outorga um poder excessivo aos serviços secretos. O argumento para propô-la é que assim se pode achar gente que não se conhecia de antemão. O que vemos no caso de Paris é que os protagonistas haviam sido identificados. Deveria haver uma investigação profunda sobre como se cometeram estes erros, embora minha experiência seja que isto não vai ocorrer porque estes serviços são corruptos e o são porque são secretos. A vigilância massiva não é gratuita e neste sentido é uma das causas do sucedido, porque lhe restaram recursos e pessoal para o que deveria ter sido a vigilância específica de uma ameaça terrorista.
Uma das reações mais virulentas na imprensa britânica foi a do historiador Max Hastings, que acusou você e a Snowden de responsabilidade nestes fatos. Há muitas vozes que pedem que se ajuste mais o torniquete sobre Wikileaks. Sente que Wikileaks está ameaçada pela atual situação?
Faz um ano que os setores vinculados a este modo de ver as coisas, que propõem um aumento da vigilância massiva e uma redução das liberdades, estão em retrocesso por todas as denúncias que tem havido sobre os excessos de espionagem cometidos pelos governos, inclusive com seus próprios aliados. O que estão tratando de fazer é aproveitar esta situação para recuperar o terreno perdido. Wikileaks publicou as caricaturas de Charlie Hebdo, utilizadas como pretexto para o atentado, algo que não fizeram diários como The Guardian ou The Times, porque têm medo. Mas, uma das coisas positivas que surgiu nos últimos dias é a defesa da liberdade de expressão. Digo isto apesar de que, na marcha de domingo, estiveram figuras que são os piores inimigos da liberdade de expressão, como a Arábia Saudita e a Turquia. Mas, por mais que estejam tentando aproveitar-se da situação, Wikileaks funciona desde faz bastante tempo e temos desenvolvido técnicas para lidar com este tipo de ameaças. Não nos vão intimidar. Esperemos que outros meios de comunicação, a nível mundial tampouco se deixem intimidar.
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“Por que Charlie não estava mais protegida?” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU