06 Janeiro 2015
Os habitantes de El Tule e de Rivas, vilarejos do sul de Nicarágua, tiveram este ano um "Natal negro". Na quarta-feira (24), centenas deles enfrentaram a polícia para protestar contra o lançamento das obras do "grande canal interoceânico" entre o Pacífico e o Mar do Caribe. Esse projeto faraônico, que supostamente competiria com o Canal do Panamá, ameaça a maior reserva de água doce da América Central, a floresta tropical e as populações que vivem no traçado da obra.
A reportagem é de Frédéric Saliba, publicada pelo jornal Le Monde e reproduzida pelo portal UOL, 31-12-2014.
"A polícia nos atacou com balas de borracha e gás lacrimogêneo", contou à imprensa Yader Francisco Sequeira, morador de El Tule, município situado 260 quilômetros a sudeste da capital Manágua. Assim como esse camponês, que vive na província de Rio San Juan, 30 mil nicaraguenses, entre eles indígenas ramas e nahuas, deverão ser expropriados de suas terras para a construção do canal que atravessa o país de leste a oeste.
Na quarta-feira, os confrontos com a polícia resultaram em 21 feridos, um deles em estado grave, segundo as autoridades, que prenderam 33 manifestantes. Quatro dias depois, seis deles ainda estavam detidos.
Na segunda-feira (22), o ex-comandante sandinista, Daniel Ortega, reeleito em 2011 para um terceiro mandato presidencial, lançou a obra do canal com grande aparato. O projeto, avaliado em US$50 bilhões (R$135 bilhões), foi concedido de forma totalmente obscura ao empresário chinês Wang Jing. O magnata asiático das telecomunicações, que comanda o consórcio internacional Hong Kong Nicaragua Development Investment (HKND), obteve uma concessão de cinquenta anos, renovável por uma vez, para construir a mais ambiciosa obra da América Latina.
"Cessão ultrajante"
O pontapé inicial da obra foi dado no vilarejo de Brito, na costa pacífica. É lá que terá início, em 2015, a perfuração do canal, cuja inauguração está prevista para 2020. Seu trajeto atravessará o lago de Nicarágua, também chamado de Cocibolca, por 105 quilômetros, e depois florestas tropicais, para chegar à foz de Punta Gorda, na costa do Mar do Caribe. Uma vez terminada, a obra, com seus 278 quilômetros, terá três vezes a extensão do Canal do Panamá (77 quilômetros). O projeto também prevê uma zona comercial de 35 quilômetros quadrados, diversos complexos turísticos, um aeroporto, dois portos, estradas e usinas de cimento e de aço.
"Não ao canal, fora chineses!", gritaram os manifestantes contrários ao projeto, que organizaram cerca de quinze protestos desde setembro. Deverão ser expropriadas 277 comunidades pelo valor venal (inferior ao valor de mercado), sem nenhuma possibilidade de recurso. "Os habitantes se recusam a vender suas terras", criticou a advogada Monica Lopez.
Membro do Grupo Cocibolca, que reúne uma dezena de organizações científicas e ecologistas contrárias ao projeto, Lopez entrou com um recurso por inconstitucionalidade contra a concessão atribuída à HKND que, segundo ela, "representa uma cessão ultrajante da soberania nacional". Quem também protesta é o centro de defesa ambiental Alexander von Humboldt, que se juntou ao movimento para denunciar uma possível catástrofe ambiental. A construção do canal ameaçaria 16 bacias hidrográficas e 15 zonas protegidas, entre elas o sistema de terras úmidas de San Miguelito.
Jorge Huete-Pérez, presidente da Academia de Ciências de Nicarágua, também soou o alerta ao co-assinar um artigo, publicado em fevereiro na revista científica "Nature", sobre os riscos de permitir a entrada de água salgada no lago Cocibolca, imensa reserva de água doce (8.624 quilômetros quadrados) de biodiversidade excepcional, situado na rota de pássaros migradores.
Desde então, esse especialista em biologia molecular vem afirmando à imprensa que "a composição química da água será modificada, alterando a fauna e a flora. A sedimentação também poderá afetar drasticamente esse ecossistema. A contaminação por petróleo causada pelos barcos poderá afetar os animais, mas também os humanos que bebem a água do lago e a utilizam para irrigar suas terras", sem contar a destruição em potencial de milhares de hectares de floresta em uma zona já vitimada pelo desmatamento.
Esses argumentos são refutados pelo governo, que garante que o traçado do canal "minimiza os riscos para o meio ambiente". Sua principal motivação está nas consequências econômicas do projeto, que permitiriam criar empregos para reduzir a pobreza que atinge 45% da população. "O canal também representa uma oportunidade de alocar mais recursos à proteção de água do lago Cocibolca e ao reflorestamento do país", afirmou Manuel Coronel Kautz, presidente da autoridade do Grande Canal de Nicarágua.
Mas os opositores parecem mais determinados do que nunca. "Aqui estou, aqui morrerei", jura Ramona Henriquez, moradora da comunidade de Santo Domingo de Piche, em um documentário disponibilizado na internet pelo Centro Humboldt. A advogada Lopez se mostra preocupada: "A repressão policial pode acabar provocando uma escalada da violência". A queda de braço só está começando.
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Canal da Nicarágua ameaça maior reserva de água doce da América Central - Instituto Humanitas Unisinos - IHU