12 Dezembro 2014
Falar em absoluto de "doutrina que não muda", a propósito de matrimônio e de sexualidade, família e afins, e fixar já os limites do Sínodo vindouro é só fazer confusão onde não é necessário.
A opinião é do teólogo e jornalista italiano Gianni Gennari, publicada no sítio Fine Settimana, 07-12-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
No jornal Corriere della Sera (02-12-2014, na entrevista com o cardeal Angelo Scola), teses e "profecia" secas e precisas: "Devemos explicar que o matrimônio é indissolúvel, sem possibilidade de saída". Isso para poder prever desde o título: "Comunhão aos divorciados, o papa dirá não"!
Ao menos uma aposta: se tudo fosse tão claro, ao longo dos séculos, a propósito da doutrina da Igreja Católica e também de outras Igrejas, a história teria sido e seria diferente. Dentre outras coisas, a "profecia" de Scola vem no momento mais equivocado possível: Francisco, em Istambul, diz que não se deverá "impor nada, senão o que está desde sempre no depósito da fé comum", e se sabe que, sobre o tema de matrimônio, divórcio e segundas núpcias, a disciplina e, portanto, a fé das Igrejas irmãs do Oriente é diferente e, sob certas condições, diz-se "sim", isto é, o oposto do "não sem possibilidade de saída".
É sabido que no Sínodo houve uma diversidade clara: com Kasper e com as linhas da Relatio de Kasper, a maioria clara, embora inferior aos dois terços, por uma abertura que responderia a outra maioria, qualificadíssima da opinião e da consciência responsável de leigos, esposos, teólogos e pastores cristãos e católicos, e como orientação de fundo também a grande parte da opinião pública de não crentes interessados sinceramente nos assuntos da Igreja Católica...
Por que, portanto, propôr, por parte de Scola, essa certeza profética – "O papa dirá não" – na primeira página desse grande jornal? No fundo de tudo, talvez – escrevo "talvez" –, conhecendo um pouco de dentro o mundo eclesiástico, acredito que se possa identificar uma realidade diferente, inadvertida, ou, se advertida, escondida por prudência, para não enfraquecer certos limites, erradamente considerados como "sagrados" e definitivos...
No seu recente livro, jornalisticamente dirigido com um título desenvolto e voltado para o mercado, Amore e sesso ai tempi di Papa Francesco [Amor e sexo nos tempos do Papa Francisco] (Ed. Piemme), justamente na página central da discussão antes do "apêndice", p. 70 das 140 totais, o colega Ignazio Ingrao, inteligente e muito bem informado, se interroga: "Por que a ala mais sensível à doutrina decide aumentar tanto assim o nível da polêmica antes do Sínodo sobre um ponto tão específico, o dos divorciados em segunda união, sabendo que a assembleia será chamada a tratar de um leque de temas muito mais amplo?".
Pergunta crucial, mas a resposta o é ainda mais: "Surge a suspeita de que o fogo de barragem, na realidade, tem um objetivo que vai além do destino dos divorciados na Igreja. Provavelmente serve para evitar que sejam postos novamente em discussão outros temas ainda mais delicados. Começando pela contracepção e pelos métodos de controle de natalidade abordados na controversa encíclica de Paulo VI, Humanae vitae, de 1968".
De fato, se trataria da "doutrina" da Igreja na norma específica contida na Humanae vitae com a admissão apenas dos métodos naturais... É uma "doutrina" absoluta? Sobre ela, joga-se a fé católica?
Muitos dizem até hoje que a rejeição da norma da Humanae vitae se deveu a uma crise de fé por parte dos esposos, mas também se pode pensar o inverso: a crise de fé se deveu à recusa dessa norma específica.
Na realidade, sobre o tema da regulação dos nascimentos, a evolução foi grande ao longo dos séculos, dentro e fora da Igreja Católica. Dentro, até 1951, até mesmo apenas o pensamento de usar os métodos chamados de naturais era considerado culpa grave, pecado mortal. Em 1931, a Casti connubii, de Pio XI, era decisiva e clara: nenhum método e por nenhuma razão, mesmo aqueles chamados naturais! Na época, falava-se do [método] Ogino Knaus [conhecido como "tabelinha"]...
Nos anos posteriores, houve também na Igreja uma acalorada discussão sobre progestínicos e afins, e, em 1951, quando quis comemorar o 20º aniversário da Casti connubii, Pio XII tinha a intenção de repetir a condenação total de qualquer método... Foi decisivo, para lhe fazer mudar de ideia, no célebre discurso às parteiras em novembro de 1951 que admitiu os métodos naturais, a intervenção pessoal e repetida do padre jesuíta Virginio Rotondi, também lembrando em uma biografia sua, publicada pela Rusconi em 1993 e, depois, retirada do mercado por razões diversas, mas não doutrinais.
Essa decisão de Pio XII foi, então, "a" grande novidade, e o mundo conservador da Escola Romana (Ottaviani, Ciappi, Pioli, Parente, Palazzini etc.) ficou surpreso e desconcertado, manifestando também publicamente ao menos o seu desagrado.
De fato, era uma mudança decisiva da doutrina católica. As discussões foram muitas por anos, e depois veio o Concílio, que, na Gaudium et spes (1965), não quis reiterar a chamada hierarquia dos fins do matrimônio, e nem repetir que, no primeiro lugar, estava e permanecia a procriação, nomeada junto com unidade, fidelidade e verdade do amor conjugal, e sobre o tema da "procriação responsável" se confiava à consciência dos esposos.
Na Aula, o confronto foi muito aberto e até mesmo violento, a ponto de Paulo VI advogar para si o tema, deixando que ele fosse tratado pela Comissão instituída anos antes, justamente em vista do Concílio pelo Papa João XXIII. A Comissão, porém, se dividiu, e, depois de muitas consultas, Paulo VI, em 1968, foi como que forçado pela intervenção explícita e pessoal de cardeais e prelados diversos, incluindo seguramente Ottaviani, Bacci e talvez Ciappi, que disseram ao papa que era "subversiva" à fé católica uma norma conclusiva diferente do não absoluto a todo método por eles considerado como "não natural" e, portanto, contraceptivo.
Deve-se notar que, com as premissas personalistas da Humanae vitae, também se podia chegar a uma norma diferente, como sugeriram por anos, muitas vezes punidos até apenas por isso, alguns grandes teólogos – como o padre Häring, o jesuíta Fuchs e, entre os italianos, Valsecchi, Chiavacci , Mongillo, Piana e muitos outros até hoje –, porque a abordagem personalista podia, e poderia, levar a uma norma diferente, no rastro da Gaudium et spes, e também da disciplina das outras Igrejas irmãs.
De fato, nestes dias, fala-se da relação entre católicos e ortodoxos... Sobre o ponto da regulação dos nascimentos, a posição exemplar do Patriarca Atenágoras, o homem da reconciliação fundamental na revogação das excomunhões que voltou a ser de atualidade nestes dias, é importante.
Ele dizia aos esposos cristãos: "Eu, sacerdote de Cristo, acompanho-lhes ao Altar, onde, para vocês, o Senhor é oferecido e doado. Depois, sigo-lhes até a porta do seu leito nupcial e me detenho: lá dentro, os sacerdotes são vocês!". Uma posição doutrinal muito diferente da norma chamada "católica" da Humanae vitae e muito afim à da confiança na consciência dos esposos assumida pela Gaudium et spes.
Eis, portanto: a Humanae vitae está em questão, em 1968! Paulo VI ficou muito entristecido pelo acontecimento e não publicou outras encíclicas pelos restantes dez anos. Mas ele mesmo, encarregando de apresentar a encíclica à imprensa mundial o professor Ferdinando Lambruschini, catedrático na Lateranense, quis que, em nome do papa, fosse dito que a norma não tinha a pretensão da infalibilidade da doutrina.
Lambruschini obedeceu e também por isso, no ano seguinte, foi... "promovido". Os "colegas" da Lateranense o afastaram da cátedra, e Paulo VI o fez arcebispo de Perugia: depois desapareceu...
No ano seguinte, coube a mim uma parte da sua cátedra, mas, em 1974, ainda com o pretexto real de que eu dizia que a Humanae vitae não era infalível, fui privado do ensino. O pretexto oficial era de que, por ocasião do referendo sobre o divórcio, em um encontro com os fomados católicos romanos, dos quais eu era o vice-assistente, eu tinha dito que, talvez, para a Igreja Católica, era melhor se envolver na formação dos namorados e no apoio aos cônjuges, em vez da revogação da lei Fortuna Baslini [lei italiana sobre o divórcio].
Portanto, a publicação da Humanae vitae trouxe uma verdadeira tempestade: 39 Conferências Episcopais em dissidência aberta, sofrimento de Paulo VI, que, no entanto, no dia 4 de maio de 1970, falando a dois mil casais das Equipes Notre Dame, recomendou que não se angustiassem demais sobre o assunto e que caminhassem na confiança também através de um progressivo crescimento da consciência cristã na vida concreta.
Ele indicava explicitamente uma meta, não um "diktat" último e fixo no método automaticamente escolhido como única carteira de identidade do casal católico. Dentre outras coisas, deve-se notar que, naquela circunstância, pela primeira vez no vocabulário de um papa, falou-se de "couple", casal, e não apenas de família.
Mas tudo isso leva a um reconhecimento: fez-se um uso totalmente impróprio da Humane vitae, entendida como sentença definitiva e obrigatória para todos em nome da fé católica. Carreiras eclesiásticas até hoje foram construídas sobre a pretensão de que essa norma fosse doutrina definitiva e, portanto, de fé. Foi e continua sendo "crise"...
Mas, na realidade, não deveria ser assim. O próprio Papa Francisco, na sua conversa com o padre Spadaro, justamente para a pergunta sobre o tema da encíclica e da problemática para a consciência de muitos fiéis católicos, diz que "depende de como se interpreta a Humanae vitae". Acredito que seja uma palavra importante...
Mas está em jogo "a" Doutrina? Alguns, neste ponto, objetarão – fez isso e se fará ao menos até a conclusão do Sínodo de 2015 – que a "doutrina católica", por definição, não muda, nem pode mudar jamais... Cardeais deploraram livros contra os possíveis "balés doutrinais" que haveria se o Sínodo, sobre algum ponto, dissesse aquilo que eles não querem...
Mas a realidade requer uma especificação essencial: salvo o caso da verdadeira indissolubilidade, em jargão eclesiástico matrimônio "ratificado e consumado", e mesmo aí com alguns esclarecimentos necessários, sobre sexualidade e matrimônio é arriscado falar de "dogmas de fé" e utilizar isso como bloqueio a priori.
De fato, em termos de sexualidade, família e afins, a verdadeira "doutrina", mesmo nos mais altos níveis da Igreja Católica, já mudou várias vezes ao longo dos séculos e também recentemente, o que parece ter se perdido para todos. À primeira vista, uma surpresa, mas os fatos dizem exatamente isso.
Um caso clamoroso e meio ignorado
João Paulo II, durante uma das suas catequeses sobre o corpo, a sexualidade, declarou, sem base na palavra de Cristo, algo que era chamado de "dogma de fé", definido pelo Concílio de Trento e declarado como tal também nos números 21 e 28 da Sacra Virginitas de Pio XII, de 1954.
Eis o seu número 21: "Segundo o ensinamento da Igreja, a santa virgindade supera em excelência o matrimônio". Mais claro ainda formal e solenemente no número 28, que cita também o ''anatema sit" do Concílio de Trento sobre o qual afirmava que" a virgindade não é superior ao matrimônio": "A doutrina que estabelece a excelência e a superioridade da virgindade e do celibato sobre o matrimônio, como já dissemos, anunciada pelo Divino Redentor e pelo Apóstolo dos Gentios, foi solenemente definida como dogma de fé no Concílio de Trento (Sess. XXIV, cân. 10) e sempre concordemnte ensinada pelos Santos Padres e pelos Doutores da Igreja".
Uma doutrina com tantas razões de séculos e, no fundo, o fato de que a realidade da sexualidade, mesmo por herança do pensamento grego e latino, transmitida à cultura dos cristãos e talvez reforçada pelos ilustres Padres da Igreja e mestres da teologia especialmente católica, era, como tal, considerada como algo de inferior e "concedida" aos leigos, o "segundo gênero dos cristãos" em relação ao primeiro, o dos "clérigos" e das "virgens", inferior como dignidade e honra, ao qual "era permitido o matrimônio", quase por necessidade, que seria melhor não encontrar...
Pois bem: especificamente sobre esse ponto central, João Paulo II explicitamente negou que essa posição tenha fundamento na fé como tal. Isso tanto como teólogo, como bispo, como cardeal e depois também como papa. Eis, apenas como exemplo, o que foi dito na audiência do dia 14 de abril de 1982:
"Nas palavras de Cristo sobre a continência 'pelo Reino dos céus', não há nenhuma menção sobre a 'inferioridade' do matrimônio em relação ao 'corpo', ou seja, sobre a essência do matrimônio, que consiste no fato de que o homem e a mulher nele se unem a ponto de se tornarem 'uma só carne' (cfr. Gn 2, 24). As palavras de Cristo relatadas em Mateus 19, 11-12 (assim como as palavras de Paulo na sua primeira carta aos Coríntios, capítulo 7) não fornecem motivo para apoiar nem a 'inferioridade' do matrimônio, nem a 'superioridade' da virgindade ou do celibato, uma vez que estes, pela sua natureza, consistem em se abster da 'união' conjugal 'no corpo'. (...) Sobre esse ponto, as palavras de Cristo são decisivamente límpidas. (...) O matrimônio e a continência nem se contrapõem um à outra, nem dividem por si sós a comunidade humana (e cristã) em dois campos (digamos: dos 'perfeitos' por causa da continência e dos 'imperfeitos' ou menos perfeitos por causa da realidade da vida conjugal). (...) Ao contrário, não há nenhuma base para uma suposta contraposição, segundo a qual os célibes (ou as núbeis), só por causa da continência, constituiriam a classe dos 'perfeitos', e, ao contrário, as pessoas casadas constituiriam a classe dos 'não perfeitos' (ou dos 'menos perfeitos'). Se, de acordo com uma certa tradição teológica, fala-se do estado de perfeição ('status perfectionis'), fá-lo não por causa da própria continência, mas em relação ao conjunto da vida fundamentada nos conselhos evangélicos (pobreza, castidade e obediência), já que essa vida corresponde ao chamado de Cristo à perfeição ('Se queres ser perfeito...' (Mt 19, 21). A perfeição da vida cristã, ao contrário, é medida com o metro da caridade. Segue-se daí que uma pessoa que não viva no 'estado de perfeição' (isto é, em uma instituição que fundamente o seu plano de vida nos votos de pobreza, castidade e obediência), ou seja, que não viva em um Instituto religioso, mas no 'mundo', pode alcançar 'de facto' um grau superior de perfeição – cuja medida é a caridade – em relação à pessoa que vive no 'estado de perfeição', com um menor grau de caridade".
Falar, portanto, em absoluto, de "doutrina que não muda", a propósito de matrimônio e de sexualidade, família e afins, e fixar já os limites do Sínodo vindouro é só fazer confusão onde não é necessário.
Certas doutrinas também importantes mudaram; outras, portanto, podem mudar: é preciso pensar, dialogar, discutir, talvez se dividir por clareza recíproca, mas não ajuda que alguns, agora, tendo em vista as conclusões do Sínodo do próximo ano, já ditem a tarefa e a linha até mesmo a Francisco...
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Matrimônio e sexualidade: a doutrina muda. Artigo de Gianni Gennari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU