27 Novembro 2014
"Como consequência, hoje, os indígenas não podem mais visitar seu local sagrado e estão acometidos de doenças por fazerem o que sempre fizeram: beber a água do rio", escreve Felicio Pontes e Rodrigo Oliveira, em artigo publicado por EcoDebate, 26-11-2014.
Eis o artigo.
Na semana passada, terminou em primeira instância o processo judicial contra o governo brasileiro por violação do direito Consulta Prévia, Livre e Informada (CPLI) na construção da Usina Hidrelétrica Teles Pires, na divisa dos Estados do Pará e Mato Grosso. A ação judicial – apresentada pelo Ministério Público Federal (MPF) e do Estado do Mato Grosso (MPE-MT) – foi julgada procedente e determinou a suspensão do licenciamento da Usina até a realização da CPLI aos povos indígenas Kayabi, Munduruku e Apiaká, como exige a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Cachoeira Sete Quedas
A Usina está sendo construída na Cachoeira de Sete Quedas, local sagrado para esses povos indígenas. Lá vive a Mãe dos Peixes, o músico chamado Karupi, o espírito Karubixexé, e os espíritos dos antepassados (lugar em que não se pode mexer – uel). Em 2012, os indígenas divulgaram uma carta contra a barragem: “As cachoeiras de Sete Quedas, que ficariam inundadas pela barragem, são o lugar de desova de peixes que são muito importantes para nós, como o pintado, pacu, pirarara e matrinxã. A construção desta hidrelétrica, afogando as cachoeiras de Sete Quedas, poluindo as águas e secando o Teles Pires rio abaixo, acabaria com os peixes que são a base da nossa alimentação. Além disso, Sete Quedas é um lugar sagrado para nós, onde vive a Mãe dos Peixes e outros espíritos de nossos antepassados – um lugar onde não se deve mexer”.
Quando se escuta as narrativas dos Munduruku, percebe-se a grandiosidade do significado da Cachoeira Sete Quedas para esse povo. Buscando um paralelo na nossa cultura ocidental, é possível dizer que destruir a Cachoeira Sete Quedas é como destruir o Muro das Lamentações para os judeus, ou a Gruta de Lourdes para os católicos.
Segundo a Funai (órgão indigenista), o local não possui apenas referência simbólica à cultura imaterial daqueles povos, como também abriga grande riqueza ecológica, por ser um berçário natural de variadas espécies de peixes. O órgão responsável pelo licenciamento ambiental, Ibama, reconhece que “a maioria das espécies reofílicas [espécie de peixe que precisa nadar contra a correnteza para crescer e se reproduzir] sofrerá grande impacto por ocasião do empreendimento com extinção local dessas populações”.
Processo judicial
O argumento para não fazer a CPLI é o fato de a Cachoeira Sete Quedas não estar localizada na Terra Indígena. A mesma justificativa também foi usada no caso da UHE Belo Monte. Para o governo, a CPLI somente seria aplicável se o empreendimento estiver no interior da Terra Indígena. E a Cachoeira de Sete Quedas está a 40 km de distância da Terra Indígena Kayabi.
A Justiça Federal, no entanto, considerou que o empreendimento não precisa estar dentro dos limites da Terra Indígena para que seja exigida a consulta prévia. Os documentos mostram que “a UHE Teles Pires impacta diretamente os povos indígenas Kayabi, Munduruku e Apiaká e seus territórios”, como, por exemplo, pelo desaparecimento de espécies de peixes que consomem, ou pela agressão a locais sagrados. Este fato é suficiente para surgir o direito à CPLI, pois a Convenção n. 169 não emprega o critério da localização.
Nesse processo judicial, os indígenas foram vitoriosos em todas as decisões de mérito. Obtiveram liminar em 2012, o governo recorreu, mas o Tribunal manteve a decisão E agora a Justiça Federal sentenciou favoravelmente aos indígenas. Porém, as obras não paralisaram. A explicação para a continuidade das obras a despeito de sucessivas decisões judiciais contrárias é a Suspensão de Liminar Este instrumento processual tem origem na ditadura militar e permite que o Presidente do Tribunal suspenda decisões legítimas de juízes inferiores que possam causar “lesão à ordem e economias públicas”, sem que o mérito seja discutido. Como consequência, hoje, os indígenas não podem mais visitar seu local sagrado e estão acometidos de doenças por fazerem o que sempre fizeram: beber a água do rio.
O processo da UHE Teles Pires revela os desafios para a implementação da CPLI. Pouco a pouco, o Poder Judiciário reconhece o direito à consulta (vide as Usinas Hidrelétricas de Belo Monte, São Luiz Tapajós, São Manoel, Teles Pires e o Polo Naval do Amazonas). No entanto, todo o esforço tem sido vão, pois, amparado pela Suspensão de Liminar, o governo federal nunca realizou uma única Consulta Prévia, Livre e Informada, mesmo com as decisões judiciais favoráveis. O governo tenta impor, mais uma vez, a condição de invisibilidade aos povos indígenas.
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A Consulta Prévia e o Sagrado, por Felicio Pontes e Rodrigo Oliveira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU