24 Novembro 2014
Passado o pleito presidencial com seu debate inerentemente polarizado, as forças político-econômicas assumem suas posições no tabuleiro. Se antes a imprensa dava ao reeleito alguns dias de descanso, dessa vez o que se observa é um estado de disputa acirrado. A oposição não arrefeceu com a derrota e pretende impôr a ortodoxia a todo o custo.
Muito se fala sobre ajustes e a especulação e lobby em torno do Ministério da Fazenda é fortíssima. Enquanto o mercado considera que a “confiança” só retornará se por lá ver um banqueiro, os setores progressistas julgam ser essa medida o mesmo que entregar o rebanho aos lobos.
A entrevista é de Rennan Martins, publicada por Desenvolvimentistas, 20-11-2014.
As sinalizações da presidenta em torno do segundo mandato são dúbias, não é possível captar se ela pretende manter a atual política econômica, de um moderado desenvolvimentismo, ou se cederá mais uma vez a dita governabilidade dando uma guinada austera.
A fim de traçar um panorama mais apurado deste complexo cenário resolvi conversar com Flavio Lyra, doutor em economia pela Unicamp e ex-técnico do Ipea. Em sua visão o crescimento baixo que teremos este ano se deve ao fato do governo ter tardado em passar do estímulo ao consumo para os investimentos em infraestrutura, pensa ainda que o combate a inflação que se baseia somente no aumento dos juros básicos não é efetivo, o que torna necessário atuar em outras frentes.
Eis a entrevista.
Passada a eleição, o coro da mídia permanece em torno do dito “ajuste inevitável”. Do que se trata esse ajuste? Que efeitos tem sobre a economia e a quem ele interessa?
É possível pensar em três ajustes; fiscal, cambial e na taxa de juros. Mas, suponho que os defensores da ideia pensam prioritariamente em cortar os gastos do governo para aumentar o superavit fiscal e reduzir a demanda, que segundo pensam, seria a causa principal da inflação ficar acima da meta. Uma elevação da taxa de juros também poderia fazer parte da receita contracionista. A queda da demanda, também, tenderia a conter o deficit em conta-corrente. Como medida de mais longo alcance, poderiam tentar mudar a legislação do salário-mínimo, de modo a reduzir os custos trabalhistas para as empresas e aumentar a competitividade das exportações.
Os efeitos sobre a economia seriam desastrosos, pois jogariam o país numa recessão numa conjuntura internacional desfavorável. Os maiores beneficiários seriam os bancos nacionais e os investidores do mercado financeiro, que se sentiriam mais seguros de recuperarem suas aplicações, graças ao aumento do superavit fiscal e, eventualmente, dos juros, além da queda no ritmo da inflação. Uma recessão, agora, certamente, debilitaria as empresas nacionais e facilitaria uma onda de desnacionalização. Também colocaria em risco os esforços que o governo vem realizando para aceleração dos investimentos na infraestrutura econômica.
Muitos economistas costumam usar do argumento de que a macroeconomia é como as contas de uma família, a qual precisa “apertar os cintos” em tempo difíceis. Qual sua opinião sobre essa comparação?
Essa visão contábil é extremamente pobre e incapaz de refletir o real funcionamento de um sistema econômico. Quando existe capacidade ociosa na economia, é perfeitamente justificável aumentar os gastos do governo à frente das receitas. O deficit público servirá como um ativador da economia e, num momento subsequente, as próprias receitas fiscais tenderão a crescer mais do que as despesas, corrigindo o deficit. A já fracassada experiência europeia de austeridade, adotada depois de 2008, está aí para mostrar que com austeridade crescente, o desemprego aumenta e não se caminha para uma saída da recessão.
Como você interpreta a reeleição no campo econômico? É possível afirmar que foi uma aprovação aos atuais rumos?
Claramente, a eleição de Dilma deu-se fundamentalmente em função dos efeitos da política econômica adotada, de universalização de serviços públicos, de concessão de benefícios sociais aos mais pobres e de aumento salarial. No que toca ã política de estímulo aos investimentos a população em geral não é capaz de entendê-la a não ser através de seus impactos favoráveis sobre o nivel de emprego e os salários.
Que fatores incidiram sobre a economia pra que tenhamos um crescimento tão baixo? O que o governo poderia ter feito?
O governo demorou a perceber que precisava mudar a ênfase do estímulo ao consumo para o incentivo e a realização de investimentos. A expansão do crédito ao consumo esgotou seu poder de expandir a demanda, pois o nível de endividamento da população chegou ao limite. Tudo isto, numa conjuntura internacional muito desfavorável, que afetou bastante a demanda de nossas exportações, especialmente de parceiros importantes como a Argentina. O governo poderia ter sido mais ágil nas concessões na área de infraestrutura e mais decidido no estímulo à realização de investimentos públicos pelos estados. Os altos custos do endividamento estatal deixaram os estados praticamente sem capacidade de realizar investimentos em infraestrutura.
Quanto a inflação. Está alta e fora de controle? A subida da Selic enfrenta efetivamente a pressão inflacionária?
Acredito que não. Os problemas de oferta que estão contribuindo para elevação dos preços não se resolvem com o aumento dos juros. As condições climáticas respondem em boa medida pela resistência dos preços ã queda. Não resta dúvida de que a intensificação da campanha negativista da mídia contra o governo, contribuiu para gerar expectativas que tenderam a estimular manobras defensivistas das empresas em suas políticas de preços. Mesmo, assim, as taxas de inflação no Brasil, estão muito aquém das enfrentadas por nossos parceiros, Argentina e Venezuela.
O pequeno aumento realizado na taxa de juros, pode ter servido apenas como uma alerta para o mercado, levando a mensagem de que o Banco Central está atento e preparado para agir no caso em que as empresas pretendam tentar recuperar as margens de lucro com aumento de preços.
Porque o Brasil é o país das taxas mais altas de juros do mundo? Quais são as consequências desse problema para a economia?
O sistema bancário no Brasil é extremamente concentrado, o que dá aos grandes bancos um forte poder de mercado e a capacidade de impor "spreads"muito elevados. O Brasil só vai poder baixar significativamente suas taxas de juros com o aumento da regulação do sistema bancário, coisa que o Banco Central não faz. A aplicação da legislação de defesa da concorrência precisa ser posta em prática, no caso do sistema bancário brasileiro.
Em relação ao não cumprimento da meta fiscal. Pra que serve um superavit forte? O deficit é sempre é sempre prejudicial a economia?
No momento atual, um superavit forte só iria diminuir a capacidade do governo de promover investimentos públicos e privados, levando à redução do nivel de atividade econômica e do emprego. A saída deve ser pelo aumento dos investimentos e da taxa de crescimento. Nas circunstâncias atuais, um deficit é, ao contrário, muito favorável à retomada do crescimento. Por certo, que a reação dos agentes econômicos ã política econômica não deve ser desconsiderada. O papel da mídia pode contribuir para melhorar ou piorar as expectativas dos agentes econômicos. A negociação política pode ter um papel fundamental nesta hora de busca de entendimento entre as forças sociais, para o estabelecimento das bases mínimas de consenso para a retomada do crescimento.
No tocante as especulações em relação ao novo ministro da Fazenda. Escolher alguém do mercado financeiro no intuito de uma reconciliação é desejável? Dentre os nomes veiculados, quem você pensa ser o mais indicado?
Seria uma temeridade entregar o comando da economia a um agente do setor privado, especialmente do sistema bancário. A principal contradição em nossa economia encontra-se nas relações entre o setor financeiro e o setor industrial. Favorecer o setor financeiro, entregando-lhe o comando da economia iria certamente contribuir para intensificar as dificuldades da indústria para recuperar sua competivididade. Ao setor financeiro não convem, nem o papel de fomento ã atividade produtiva desempenhado pelos bancos oficiais, nem a redução da taxa de juros, ambos fundamentais para um novo ciclo de crescimento industrial.
A imprensa tradicional faz muito uso dos números do setor industrial pra criticar o governo, é ponto pacífico que vivemos num processo de desindustrialização. Como esse processo se desencadeou? Uma guinada ortodoxa fortaleceria a indústria brasileira?
Não resta dúvida de que o Brasil sofreu um processo de desindustrialização precoce, iniciado nos anos 80 e aprofundado nos governos de Collor e, principalmente de FHC. As políticas de liberalizaçao comercial e de privatização adotadas, desorganizaram a atividade produtiva ao destruírem as cadeias produtivas, desmontarem os centros de pesquisa das empresas estatais e orientarem a demanda de produtos intermediários para o exterior. Tampouco foi posta em prática qualquer política de desenvolvimento e inovação tecnológica, que capacitasse a indústria para a nova etapa de expansão da economia internacional, que tomou forma nesse período. Somente no segundo governo de Lula é que a política econômica começou a preocupar-se com objetivos de médio e longo prazos, voltados para o investimento e o desenvolvimento tecnológico. Mesmo assim, de forma moderada. O BNDES noa governos de FHC preocupou-se fundamentalmente em capacitar financeiramente capitalistas privados para adquirem as empresas estatais em processo de privatização. Os novos investimentos foram praticamente descartados da política do Banco.
Que medidas lhe parecem as melhores pra uma retomada do crescimento? Que entraves o Brasil enfrenta neste quesito?
É indispensável prosseguir com os investimentos na infraestrutura e dar todo apoio à PETROBRAS, para que seu programa de investimentos não sofra solução de continuidade. Ações de política econômica que tenham impacto recessivo não devem ser admitidas, pois levariam ã desarticulação do esforço de investimento que o país tem realizado na infraestrutura econömica e especialmente no complexo petrolífero, envolvendo a construção naval. Os bancos oficiais precisam levar adiante suas políticas de crédito favorecido para as atividades produtivas e a adotarem uma política de forte competição na concessão de crédito comercial frente aos bancos privados. As políticas de apoio à capacitação e à inovações tecnológicas devem ser intensificadas, assim como as de capacitação técnica de mão de oba. No plano dos acordos internacionais, o Brasil precisa adotar uma atitude mais proativa no apoio ao avanço da integração regional na América do Sul, aceitando arcar com os custos vinculados a sua condição de liderança no processo. Os acordos já firmados com os BRIC`s precisam ser levados adiante com toda ênfase.
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O quadro econômico e os desafios vindouros: Entrevista com Flavio Lyra - Instituto Humanitas Unisinos - IHU