22 Outubro 2014
Uma “maneira muito peculiar” de se entender a razão. Assim o filósofo Jesús Conill classificou a tecnociência em nosso tempo na conferência proferida na tarde de terça-feira, 21-10-2014, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Intitulada Os marcos e ferramentas éticas nas tecnologias de gestão, a atividade é integra o XIV Simpósio Internacional IHU: Revoluções tecnocientíficas, culturas, indivíduos e sociedades. A modelagem da vida, do conhecimento e dos processos produtivos na tecnociência contemporânea, que vai de 21 a 23-10-2014 e cuja programação completa pode ser conferida aqui. A reportagem é de Márcia Junges.
Devemos pensar que o marco que orienta a técnica é histórico e sociocultural. A tecnologia gera cultura e, por vezes, é produto desta. Há uma interação. “A tecnologia gera cultura, mas por vezes se trata de uma produção do que significa a cultura. O humanismo criou a ciência e a técnica, e o meio criou o humanismo. A atual tecnologia crê que se descobriu a si mesma. Vivemos um imperialismo da tecnologia, que para alguns destrói a cultura e o humanismo”, ponderou Conill.
Portanto, quando se fala de cultura tecnocientífica ou tecnológica é preciso pensar o marco que fundamenta o tipo de pensamento que sustenta a sociedade tecnocientífica na qual vivemos. Que tipo de ética pode estar funcionando no desenvolvimento contemporâneo no que a técnica se transformou? Isso tem significado para nos entendermos como seres humanos e nossas possibilidades e limites?
“Hoje a tecnologia está transformando o modo de nos entendermos a nós próprios. Já vivemos situações em que a tecnologia reverte sobre o ser humano e o transforma. Vamos defender uma posição humanizadora, trans, pós ou desumanizadora da tecnologia?”, seguiu questionando o pesquisador. “Que consequências isso terá para as áreas do conhecimento?”.
Em sua fala, Conill continuou a desassossegar a plateia: “É preciso defender uma humanização no processo de historicização da tecnologia? Há antagonismos entre tecnologia, desumanização e humanização? A tecnologia quer fazer um ser humano ‘melhor?’ Lembremo-nos que o ser humano pode desumanizar-se, já o tigre não pode ‘destigrar-se’”.
Tecnologia como força de produção
Para entender o problema do marco que norteia o pensamento contemporâneo cuja tecnociência é preponderante, é preciso nos perguntarmos se sempre fez sentido a presença da técnica e da tecnologia. Se recuperarmos nossa memória histórica e pensarmos como se vivia na Grécia antiga, já naquele tempo se precisava do técnico para resolver questões. A técnica é uma forma de logos para produzir um saber-fazer produtivo. O marco clássico nos ajuda a entender por contraste. É preciso que sejamos conscientes das características da mentalidade do nosso tempo, e por isso devemos ter o sentido crítico e o discernimento, observa o professor.
Já o marco contemporâneo pode ser caracterizado pelo crescente poder da tecnologia, que agora é força de produção. Na Grécia a técnica era um saber-fazer, e agora é um saber-fazer produtivo, transformador dos lugares onde surge a riqueza. A diferença entre o pensamento clássico dominante é que o marco filosófico é ontológico, no qual o importante é o desvelamento do Ser. A tecnologia moderna não desvela o Ser, não ajuda a descobrir o Ser, não é uma revelação ou caminho da ontologia. O que ela desvela é a força. Quem estuda técnica não se ocupa da ontologia. Há uma dimensão velada, não explícita, que alguns filósofos interpretam através da tecnologia. Segundo Conill, “cada vez mais se pergunta coisas do tipo ‘para que serve a ética, para que serve a filosofia’”.
A tecnologia é a maneira da razão para dizer o que funciona ou parece que é assim. Cada vez mais isso configura nosso modo de viver, pensar e sentir. Nos séculos XIX e XX as ideologias eram marcadas pela política e pela economia. Hoje a grande ideologia é a ciência e a técnica.
Transvaloração dos valores
A mídia vende um sem número de expectativas. Além dela, a medicina aparece em nosso tempo como detentora da cura para todas as doenças, que serão extirpadas com a promessa de vida saudável e higienizada. Essa tecnoracionalização permeia nosso cotidiano e nem nos damos conta disso. Há um incremento e poder da tecnologia, que se tornou o grande aparato da tecnocracia. Nos cursos de formação técnica não entram mais conteúdos humanistas, de questionamento, observa Conill. Nas instituições em geral, inclusive nas universidades, se reproduz uma tecnoestrutura, liderada por tecnocratas responsáveis pela gestão do empreendimento. Isso cria grandes problemas de abstração, criando falácias de realidade – nos distanciamos tanto da realidade que criamos movimentos tecnocráticos autocompreendidos como possíveis de realizar todos os problemas, sem capacidade de acessar o real. Segundo Conill, “vivemos uma ausência de ordem comum - a comunitas é anterior às partes”.
Modernamente não somos um todo do qual fazemos parte, pela emergência da liberdade individual: vivemos a ficção de uma sociedade individual. Cremos estabelecer relações com os demais quando queremos, bem como as rompemos quando estas não nos servem mais, objetou o conferencista. O contratualismo é a figura preponderante do pensamento moderno. Se estabelecem ou rompem contratos à vontade. O desmembramento da comunidade vem se dando cada vez mais. “O crescimento do poder da tecnociência e a ausência de ordem comum ou compartilhada são dois grandes eixos modernos”, acrescentou.
É preciso desvelar os valores existentes por trás das tecnologias. Recuperando uma ideia tributária a Friedrich Nietzsche, filósofo alemão do século XIX, hoje se fala em transvaloração de valores, e não na perda ou não existência de valores que norteiam a tecnociência. “Necessitamos uma hermenêutica que mostre os valores que estão operando em nosso tempo. Por isso refiro-me à necessidade de uma transvaloração dos valores. Necessitamos de uma nova ética, que não se confunda com a religião, que esteja à altura da modernidade e da vida contemporânea. Esta ética não deve ser meramente individual, porque estamos praticando-a institucionalmente, socialmente e profissionalmente. Ela não pode ficar só na intenção. Por isso penso que uma ‘ética da responsabilidade’ seja o caminho, na qual devem ser educados os profissionais”, frisou Conill.
Para o professor, o mercado financeiro neoliberal se converteu no modelo da economia atualmente. Um total de 90% da movimentação da economia se dá pela financeirização, pelas finanças, e não pelos bens e serviços. “Trata-se de uma perversão da economia e da estrutura econômica. As conivências entre política e economia são de tão alto grau que o esquema da economia colonizada pela política não dá conta de explicar o que acontece em nosso tempo. Basta pensar em quem nomeia o presidente de instituições financeiras como o FMI, por exemplo. Não são políticos que fazem isso? Devemos pensar meios de impossibilitar tais conivências...”.
Quem é Jesús Conill?
Jesús Conill estudou nas Universidades de Valencia, Espanha, e München, na Alemanha. Atualmente é catedrático da Universidade de Filosofia Moral e Política da Universidade de Valencia. Além disso, realizou estudos e pesquisas de extensão nas Universidades de München, Bonn, Frankfurt e Main, na Alemanha; St. Gallen, na Suiça; e Notre Dame, nos Estados Unidos. É autor, entre outras obras, de Ética hermenêutica (Madrid: Tecnos, 2006), Horizontes de economía ética. Aristóteles, Adam Smith, Amartya Sen (Madrid: Tecnos, 2004), Ética de los medios. Una apuesta por la ciudadanía audiovisual (coeditor, junto com Vicent Gozálvez – Barcelona: Gedisa, 2004).
As conferências do Prof. Dr. Jesús Conill serão publicadas, nas edições de Cadernos IHU ideias, no início do ano de 2015.
Jesús Conill concedeu uma entrevista à revista IHU On-Line, sob o título 'A manutenção da subjetividade humana diante do impulso tecnocientífico instrumental' que pode ser acessada aqui.
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