17 Outubro 2014
Os verdadeiros veteranos do corpo de imprensa do Vaticano ainda gostam de falar sobre como era divertido cobrir o Concílio Vaticano II, um encontro de bispos católicos do mundo de 1962 a 1965, que lançou a Igreja em um curso de modernização e reforma.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada no sítio Crux, 15-10-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Era uma história emocionante, repleta de personagens coloridos. Havia os grandes leões do campo da reforma, como o cardeal Leo Suenens, da Bélgica, e Giacomo Lercaro, da Itália, enfrentando a velha guarda, personificada no cardeal italiano Alfredo Ottaviani, cujo lema episcopal Semper Idem, "sempre o mesmo", era todo um programa ideológico em miniatura.
Por baixo do drama, estava a sensação de que algo importante estava acontecendo – uma Igreja que parecia congelada no seu lugar, de repente, estava se movendo. Se ela estava fazendo isso de uma forma inteligente ou casual, é uma questão de debate até hoje, mas ninguém nega que as placas se deslocaram.
Ao longo das últimas duas semanas, esse tipo de drama voltou a se fazer presente na experiência vaticana.
O Sínodo dos bispos, com João Paulo II e Bento XVI, tendia a ser algo bastante rotineiro. Havia sempre pontos interessantes ao longo do caminho, e, embora linhas de falha intrigantes se abriam, e insights fascinantes eram expressados a partir de diferentes cantos do mundo católico, raramente havia muito suspense sobre o resultado final.
Certamente não se pode dizer o mesmo sobre o Sínodo dos bispos sobre a família de outubro de 2014.
Na segunda-feira passada, o mundo ficou atordoado quando o cardeal Péter Erdö, da Hungria, que atua como relator-geral do Sínodo, pronunciou aquilo que é conhecido como a Relatio post disceptationem, o "discurso depois do debate", ou seja, uma espécie de relatório intermediário. No passado, quando esse discurso estava prestes a ser divulgado, as vendas de energéticos nas farmácias de todo o Vaticano despontariam notavelmente – mas não desta vez.
O discurso foi redigido por uma equipe editorial complementada por seis nomeações papais que desencadearam uma especulação febril de que ele estava distribuindo as cartas em favor dos progressistas, e é amplamente conhecido que ele traz a marca do arcebispo italiano Bruno Forte, uma das mentes teológicas mais conhecidas na hierarquia italiana.
Ao expressar palavras de apreço pelas pessoas que vivem naquilo que a Igreja considera como situações "irregulares", como gays e lésbicas, casais que vivem juntos fora do casamento e divorciados em segunda união, o documento parecia marcar uma grande vitória da misericórdia sobre o julgamento, e se tornou uma sensação midiática instantânea.
Imediatamente, começaram as reações das forças preocupadas com o borramento do ensino da Igreja.
Ao longo dos últimos seis meses, nós nos acostumamos a ver cardeais criticando uns aos outros em público, mas a noite de segunda-feira trouxe algo inédito: o cardeal norte-americano Raymond Burke, um provável candidato a despontar como o Alfredo Ottaviani deste Sínodo, simplesmente sugeriu que Francisco deve ao mundo um pedido de desculpas divulgando uma declaração clara da doutrina católica.
Embora Francisco, obviamente, não tenha elaborado o documento, Burke parecia sugerir que o que ele via como uma mensagem confusa não teria visto a luz do dia sem influência de Francisco.
Dentro da sala do Sínodo, o debate não foi menos intenso. Embora os participantes repetidamente tenham elogiado o espírito fraterno do encontro, no entanto, houve alguns momentos tensos.
Em um ponto da semana passada, um colega prelado pediu que o cardeal alemão aposentado Walter Kasper retirasse a sua proposta de admitir os católicos divorciados em segunda união aos sacramentos, argumentando que, em vez do "remédio da misericórdia", ela espalhara "doenças e enfermidades".
Da mesma forma, na segunda-feira, um cardeal se levantou para objetar ao relatório intermediário, perguntando em voz alta aonde o conceito de pecado tinha ido parar e questionando: "Não vemos mais nada de negativo?".
Outra medida para saber se algum desenvolvimento vaticano obteve a atenção do mundo é saber se ativistas começam a aparecer nas coletivas de imprensa para pressionar pela sua agenda, e isso também aconteceu.
Ainda na terça-feira, membros de um grupo católico conservador chamado Voice of the Family, que anteriormente haviam chamado o relatório intermediário de uma "traição", estavam na Sala de Imprensa do Vaticano para perguntar ao cardeal Wilfrid Fox Napier, da África do Sul, que participaria da coletiva naquele dia, se o discurso deve ser formalmente rescindido.
(Aliás, a sua resposta foi de que a sugestão era "um pouco radical.")
Mesmo antes da rixa sobre a relatio, já havia um burburinho em Roma sobre o Sínodo.
Alguns observadores conservadores se queixaram de que a decisão de não divulgar os textos dos discursos proferidos pelos bispos no Sínodo, substituindo-os por uma visão genérica do dia de discussão por parte dos porta-vozes vaticanos, era uma tentativa de amordaçar as vozes dissidentes – "dissidentes", neste caso, entendidas como aqueles que não estão a bordo da revolução de Francisco.
Na semana passada, o intelectual católico Robert Real, que está em Roma para o Sínodo, postou no seu blog sobre as percepções de que Francisco é muito duro para os defensores da tradição católica. Ele citou algumas pessoas não nomeadas no Vaticano que chamam o papa de um "ditador latino" e que esperam até mesmo que os sobressaltos da sua saúde signifiquem que o seu reinado não continuará por muito tempo.
Eu posso confirmar a veracidade dessa postagem, porque eu ouvi as mesmas coisas. Por outro lado, também há pessoas dentro do Vaticano que dizem que este é o papa com o qual eles sonharam servir por toda a vida e que elogiam o clima mais descontraído e aberto que eles acreditam que Francisco introduziu.
O elemento de comentário em ambas as reações, assim como no Vaticano II, é que algo grande está acontecendo – que o catolicismo está passando por uma transição, mesmo que a natureza precisa da mudança e para onde ela vai levar não sejam claras. As pessoas podem estar desanimadas ou eufóricas, e há vozes articuladas em ambos os lados, mas ninguém parece acreditar que se trata de uma mera fachada.
Não saberemos até esta sexta-feira qual será o abalo da versão final do documento do Sínodo, e, independentemente do que acontecer, não será nada parecido com o divisor de águas no catolicismo representado pelos 16 documentos do Vaticano II. Por outro lado, este Sínodo já parece uma boa amostra das tensões mais amplas desencadeadas pelo papa que o convocou.
Uma coisa nós podemos dizer com certeza: o Sínodo dos bispos de 2014 está dando um grande show, e, por causa disso, o público que o assiste pode ficar agradecido.
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Sínodo: o drama voltou - Instituto Humanitas Unisinos - IHU