16 Outubro 2014
"Ao mesmo tempo em que estimula a expansão da produção por meio do financiamento público, o governo introduz inseguranças institucionais ao patrocinar visões de mundo diferentes e conflitos entre o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o da Agricultura, Pecuária e Abastecimento", escreve Cyro Andrade, em artigo publicado pelo jornal Valor, 14-10-2014.
Eis o artigo.
Os organizadores referem-se ao livro O Mundo Rural no Brasil do Século 21 como “iniciativa multi-institucional de colaboração científica”. É mais que isso. É, antes de tudo, leitura para fôlegos longos — são 1.182 páginas, distribuídas por 37 capítulos — obra conjunta de 51 cientistas sociais de 20 instituições de pesquisa. E é, no fim de contas, uma contribuição importante para se ver mais de perto como veio se formando um novo padrão de desenvolvimento rural no Brasil — abrangidas questões agrícolas e agrárias, econômicas e sociais. A moldura de fatos e perspectivas para a mudança é dada por uma grande rede de atividades e interesses, articulados numa cadeia de negócios de presença global responsável, hoje, por algo como 25% do PIB.
O mundo rural transcendeu a qualificação antiga de pertencimento a uma parte da economia, a agropecuária, que resolvia suas questões em equações de dinamismo acanhado, sob as vistas de um Estado paternalista e assistencialista. O mundo da economia globalizada, no qual o universo rural brasileiro agora se inscreve, tem complexidades que internacionalizam oportunidades e, por igual, obstáculos para alcançá-las — vários, tipicamente nacionais, incluídas deficiências de visão e operação de um Estado que, como está claro no livro, parece atarantado diante dos papéis que lhe são propostos neste novo tempo (a estatal Embrapa - Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, criada ainda na época da ditadura militar, manteve-se como pólo gerador e agregador de grandes avanços de pesquisa responsáveis pela notória produtividade do setor, várias vezes superior à da economia como um todo).
O livro, organizado e editado por Eliseu Alves e Zander Navarro, dos quadros da Embrapa, e Antônio Márcio Buainain e José Maria da Silveira, da Universidade de Campinas (Unicamp), tem como origem e motivação um artigo “provocador” publicado por eles na “Revista de Política Agrícola” em meados do ano passado, no qual apresentaram “Sete teses sobre o mundo rural brasileiro”. Caberia a articulistas contribuintes desenvolver ideias que tomariam por referência cada uma das teses. Constituíram, assim, dizem os editores, sua participação numa resposta coletiva à “inquietude gerada pelo estreitamento, nos últimos tempos, dos debates entre cientistas sociais dedicados aos campos disciplinares que analisam o mundo rural”.
Para que isso ocorresse, um fator “de grande impacto” derivou de “disputas políticas”, em meio às quais “cada grupo que disputa o poder procura enraizar sua ‘narrativa’, esperando que ela possa se tornar dominante, quem sabe hegemônica, para assim fincar mais fundo as estacas de sua dominação partidária”. É um contexto “que exige um esforço de produção de novas leituras sobre o mundo rural, que sejam livres e plurais, para forçar (também com legitimidade, mas desta vez apenas científica) a ampliação dos debates sobre o assunto”.
As sete teses (aqui sumarizadas e denominadas nos termos do artigo-matriz do livro) são as seguintes:
● Uma nova fase de desenvolvimento - A partir do final da década de 1990, o desenvolvimento agrícola e agrário passou a experimentar uma nova, inédita e irreversível dinâmica produtiva e econômico-social — um divisor de águas na história rural do país.
● Inovações na agricultura – o maior desafio O processo de produção e difusão de inovações na agropecuária mudou completamente sua natureza. É hoje um desafio que opõe distintos interesses sociais e econômicos (rurais e não rurais). Considerando-se o tema das mudanças climáticas, ultrapassa as fronteiras nacionais.
● Desenvolvimento agrário bifronte - A nova fase vem concretizando uma dupla face: de um lado, a dinâmica econômica concentra a produção cada vez mais; de outro, aprofunda a diferenciação social, promovendo intensa seletividade entre os produtores rurais. Em nenhum outro momento da história agrária os estabelecimentos rurais de menor porte econômico estiveram tão próximos da fronteira da marginalização.
● O passado vai se apagando - O último meio século desmentiu diversas antevisões: da exacerbação da questão agrária, simbolizada nas disputas pela terra, às supostas tendências da concentração da propriedade fundiária e, mais ainda, as teses sobre “campesinatos”. Desapareceram assim alguns temas do passado, entre os quais a reforma agrária.
● O Estado – Da modernização às novas tarefas Durante o período inicial de modernização, esgotou-se um conjunto de “primeiras tarefas” de transformações rurais induzidas pelo Estado, combinando crédito rural, pesquisa agrícola e serviços de assistência técnica e extensão rural. Nessa fase, agentes privados passaram a se dedicar à produção de pesquisa e a difundir inovações , além de disputar o bolo da riqueza. Paralelamente, o Estado foi “saindo à francesa”, o que é comprovado pelos gastos públicos na agricultura. Abre-se uma nova fase, na qual os agentes privados serão os principais atores do desenvolvimento.
● A ativação de uma relação perversa - Mesmo nas regiões rurais que prosperaram em virtude de alguma “dinâmica agrícola”, acaba prevalecendo uma tendência perversa em relação aos estabelecimentos rurais de menor porte econômico, ainda que apenas por duas razões: os filhos migram para não mais voltar, pois existe um custo de oportunidade muito elevado; a oferta de trabalho contratado também se reduz, pelo abandono do campo, o que eleva os salários rurais.
● Rumo à via argentina de desenvolvimento - Jamais ocorreu no Brasil uma política de desenvolvimento rural. Inexistindo tal ação governamental, o desenvolvimento agrário brasileiro vai impondo uma “via argentina”: o esvaziamento demográfico do campo, o predomínio da agricultura de larga escala, a alta eficiência produtiva e tecnológica e o posicionamento, no caso brasileiro, como o maior produtor mundial de alimentos.
Dois temas constituem eixos de análise que definem a atualidade do mundo rural brasileiro, em termos que o livro explicita: o crescente papel do capital financeiro na agricultura e a essencialidade da inovação como elemento propulsor das mudanças em curso. É uma transformação que dá seguimento a um “novo padrão de acumulação” nas regiões rurais, estabelecendo vetores que modificam referências agora antiquadas, agrárias e agrícolas.
Muita coisa acontece (ou não) nessas regiões, em circuitos locais de decisões e ações inovadoras, porque alguém, no governo, exerceu uma prerrogativa burocrática. Não por outra razão, é “crucial”, lê-se no artigo-matriz do livro, a tese, entre aquelas sete, que diz respeito ao Estado e suas políticas dirigidas ao desenvolvimento das regiões rurais.
Não há boas notícias nessa área, e faz tempo, já desde a “formação populista” do Estado brasileiro, na qual “parte do [seu] comportamento errático tem raízes profundas”, afirmam os autores do artigo “Política agrícola - Avanços e retrocessos ao longo de uma trajetória positiva”, um dos cinco escritos a título de reflexão sobre a tese referente ao papel do Estado. São veementes: “A atuação do Estado sempre foi, e em certa medida continua sendo, contraditória, e não raramente inconsistente e até caótica. Ao mesmo tempo em que estimula a expansão da produção por meio do financiamento público, o governo introduz inseguranças institucionais ao patrocinar visões de mundo diferentes e conflitos entre o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o da Agricultura, Pecuária e Abastecimento; ou ao lavar as mãos no que se refere às disputas em torno da liberação dos organismos geneticamente modificados, como ocorreu no início da década passada; ou pela dificuldade de arbitrar as disputas em torno da legislação florestal e manter-se passivo [em relação] às ocupações ilegais de terras privadas pelos movimentos sociais”.
Pode-se tomar como contexto para essas questões o enredo desenvolvido nos capítulos analíticos da tese intitulada “A história não terminou, mas o passado vai se apagando”, na qual o tema central é a questão agrária. Nessa parte do livro, demonstra-se “por que não houve (e nunca haverá) reforma agrária no Brasil”.
Em outro ponto, entre considerações inspiradas na tese “Rumo à via argentina de desenvolvimento”, encontra-se uma passagem que encerra explicação para essa e outras tantas questões, tanto agrárias como agrícolas. Está escrito ali que “o futuro dos espaços rurais depende cada vez menos do que acontece na agricultura” e, por isso, “não se pode inferir o sentido do desenvolvimento rural daquilo que se passa exclusivamente no âmbito do desenvolvimento agrário, nem tampouco entendê-lo como exclusivo reflexo das políticas públicas”.
De par com as globalidades do mundo contemporâneo, enfim, uma nova ruralidade exige um debate também ampliado e renovado. Será preciso, antes de mais nada, ter noção clara da própria realidade rural. No artigo “Um contraponto à tese da “argentinização” do desenvolvimento rural no Brasil”, tem-se a advertência de que “a redução da trajetória recente do desenvolvimento rural brasileiro a uma imagem de esvaziamento demográfico, predomínio da agricultura de larga escala e alta eficiência produtiva e tecnológica é algo que mais oculta do que ilumina o que se passa no chamado mundo rural”. Recomenda-se, então, que se dê atenção a um conjunto de outras dimensões, entre as quais, diferentes formas de acesso e uso dos recursos naturais, acesso a mercados e relações entre áreas rurais e centros urbanos. “Somente assim se podem identificar os bloqueios, os interesses, os atores e os ativos a serem mobilizados na construção de um Brasil rural coerente com os requisitos de um modelo de desenvolvimento voltado ao bem-estar social e à sustentabilidade ambiental, para além da simples, ainda que importante, competitividade do setor primário”.
Sobre o livro:
"O Mundo Rural no Brasil do Século 21 - A Formação de Um Novo Padrão Agrário e Agrícola" - Vários autores. Coedição Embrapa Informação Tecnológica / Instituto de Economia da Unicamp. Vendas pelo e-mail Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.
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Sete temas para um debate apartidário sobre o Brasil rural - Instituto Humanitas Unisinos - IHU