15 Setembro 2014
Flanco explorado nas campanhas dos adversários Dilma Rousseff (PT) e Aécio Neves (PSDB), a falta de apoio de Marina Silva (PSB) no Congresso, caso vença a disputa em outubro, é tema que divide cientistas políticos entrevistados pelo Valor.
A reportagem é de Cristian Klein, publicada pelo jornal Valor, 12-09-2014.
Para Octavio Amorim, da FGV-Rio, há o risco de que, sem uma ampla base aliada, Marina não termine o mandato, se for abalroada por uma grave crise política ou econômica. Amorim compara a presidenciável a um navio sem lastro. "Pode ser muito grande, poderoso, o capitão pode ser genial, mas sem lastro pode virar a qualquer onda", diz.
O pesquisador afirma que todos os presidentes brasileiros que não formaram maioria, ou a perderam, foram destituídos: Getúlio Vargas, Café Filho, João Goulart, Jânio Quadros e Fernando Collor. Aos dois últimos, Marina já foi comparada pela campanha petista.
Amorim diz que a comparação procede, não pelos atributos pessoais, mas pelo "problema político-institucional real", que já levou à deposição de vários governantes pela América Latina: de Salvador Allende (Chile, 1973) a Fernando Lugo (Paraguai, 2012). A exceção é Lula em seu primeiro mandato.
Para Luís Felipe Miguel, da UnB, no entanto, Marina teria maioria, pois é uma política pragmática e tradicional, apesar do discurso por uma "nova política". Miguel prevê que a pessebista cooptará apoio parlamentar, do mesmo modo que tenta atrair o mercado e os ruralistas durante a campanha eleitoral. "Só aí temos o interesse dos bancos e do agronegócio, aos quais está vinculada boa parte da nossa elite no Congresso", diz.
Marina já receberia, argumenta o cientista político, a adesão integral de legendas como PSDB, DEM, PSC e, talvez, o PV, numa disputa com Dilma no segundo turno. Depois, viriam as primeiras parcelas do PMDB. Miguel afirma que, eleita, Marina sairia ungida como líder do antipetismo. Isso a colocaria ao lado do grande contingente de adversários históricos do PT no Congresso. "Os governos Lula e Dilma conseguiram maioria a despeito do antipetismo, que é dominante", diz.
'Presidentes sem maioria não terminam o mandato'
A constatação é do cientista político Octavio Amorim, professor de ciência política da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (Ebape).
Eis a entrevista.
O senhor vê problemas de governabilidade caso Marina vença?
Sim. As comparações com Collor e Jânio fazem sentido, mas têm que ser bem entendidas. Não é pra dizer que ela tem os atributos pessoais destes ex-presidentes. A campanha sempre exagera. Jânio era uma figura patética, comparar a ele é ofensivo. Collor também. Mas há um problema político-institucional real. Quando um presidente eleito não tem uma grande organização partidária, uma base política sólida, ampla, por trás de si, essa Presidência equivaleria a um grande navio sem lastro. O navio pode ser muito grande, poderoso, bonito, o capitão pode ser genial, mas o navio sem lastro pode virar a qualquer onda. Até uma onda média vira um navio sem lastro. Marina tem que responder ao povo brasileiro e à história brasileira. Essa questão é muito importante.
E que onda pode ser esta?
Qualquer choque inesperado: um escândalo dentro da administração pública, uma crise econômica. Um presidente que não conta, como Lula contava em 2005, com uma série de organizações políticas poderosas por detrás dele, a começar pelo PT, depois a CUT, MST, pode virar a qualquer instante. Lula teria sobrevivido [ao escândalo do mensalão] se não tivesse o lastro político que tinha? Teria sido muito mais difícil. A mesma pergunta se aplica ao Collor. Com todos os erros que cometeu, ele teria caído tão facilmente se tivesse um partido ou uma maioria grande por trás? A gente não pode se esquecer de uma regularidade na história da democracia presidencial no Brasil. Todo presidente que não logrou formar maioria ou perdeu uma maioria não terminou o mandato.
Quem passou por isso?
[Getúlio] Vargas, em 1954, começou com maioria, a perdeu, e depois caiu da maneira mais trágica possível. Seu sucessor, o vice, Café Filho, não tinha maioria e foi apeado por um golpe. Depois, Jânio Quadros, João Goulart, Collor. Lula é a primeira grande exceção. Estava numa situação minoritária no primeiro mandato e acabou sofrendo o mensalão - que tem a ver com os equívocos da montagem de sua base parlamentar.
Lula foi exceção por causa do apoio fora do Congresso?
Quando começou o tiroteio político, logo depois da eclosão do mensalão, o DEM ameaçou ir às ruas e pedir o impeachment. Nessa época, o ministro da Justiça, Tarso Genro, falou: então vamos para as ruas para ver quem ganha. Logo depois, a oposição amaciou. Quem ganharia a disputa por mobilização nas ruas, àquela época? O PT, que tinha e tem o apoio da CUT, UNE e MST, ou o PFL à época e o PSDB que no máximo conseguem juntar uma kombi para tomar espumante em Ipanema ou na [equivalente] zona sul de São Paulo? Viram que perderiam e desistiram.
A Marina não poderia contar com apoio semelhante da população - ou lhe faltaria sustentação mais institucionalizada?
Na semana passada, [o deputado e presidente do PPS, aliado de Marina] Roberto Freire disse que tinha sido o líder do governo Itamar Franco na Câmara e que Marina governaria como o ex-presidente. Como Itamar governou, segundo Roberto Freire? Com as dissidências dos partidos. E não é à toa que Itamar teve uma série de derrotas. Ele aceitava. O próprio Itamar quando assumiu a Presidência - no rastro da destituição do Collor - disse que faria, na expressão dele, um "governo congressual". O que foi muito sábio: montar um governo de união nacional porque a situação do país era emergencial. A situação da Marina, mesmo que ela repita a estratégia do Itamar, é muito diferente.
Por quê?
Porque ela vai ter legitimidade popular. Itamar não tinha. Quando o Itamar era derrotado no Congresso, o que ele podia alegar? Que o Congresso estava atropelando o mandato popular dele? Claro que não. Era um vice. Marina, não. Se for derrotada no Congresso, como certamente será, poderá iniciar aquele processo que o [cientista político espanhol] Juan Linz dizia ser a origem de todos os problemas do presidencialismo: o confronto de poderes. O presidente reivindicando para si legitimidade popular superior à do Congresso. E isso está muito fácil de fazer no Brasil porque o Congresso está desmoralizado.
Ela diz que vai governar com os melhores.
O que são os melhores? Quando você diz que vai governar com os partidos, você sabe quem são eles.
O critério principal da Marina teria a ver com a ética, o que excluiria "velhas raposas".
Essa estratégia significa rachar os partidos brasileiros. É uma estratégia de cooptação. Você pode usar um nome muito bonito, como "vou chamar os melhores". O PT não aceitou isso em 1992. Quando assumiu, o Itamar queria o PT e nomeou a [Luiza] Erundina ministra da Administração, que foi imediatamente expulsa do partido. O Lula viria a lamentar essa decisão. Mas o PT podia fazer isso porque sempre prezou sua unidade. Os outros partidos, mais centristas, PMDB, PSDB, e também os da direita, são organizações menos sólidas. É muito mais fácil para o presidente cooptar facções destes partidos.
E isso é ruim?
É ruim. O sistema partidário é o lastro do regime político. O risco de uma Presidência com esse perfil é a sua falta de lastro e a promoção do deslastreamento do sistema político - pela divisão dos partidos. Isso é realmente preocupante. Um dos grandes desafios institucionais do Brasil é conseguir ter governos minoritários efetivos. A fórmula de sobrevivência de uma Presidência minoritária ainda não surgiu no Brasil. O presidencialismo de coalizão é uma fórmula genérica, que oferece justamente mecanismos pelos quais um presidente cujo partido não tem a maioria possa formá-la, baseada na troca de cargos ministeriais por apoio legislativo.
O governismo atávico pode facilitar a sustentação política de Marina, caso aceite esses apoios?
Mas o governismo atávico de alguns partidos é dos aspectos menos edificantes da política brasileira. E se ela se beneficiar com isso para aprovar projetos, qual é o significado? Isso é nova ou velha política? Governismo é a coisa mais velha política do Brasil.
Marina estaria diante de uma espécie de "sinuca de bico": se não fizer alianças tradicionais, fica minoritária; e se formar maioria abandona a promessa de nova política e decepciona o eleitor?
Depende. Ela está prometendo fazer negociações em bases exclusivamente programáticas. E isso é muito importante: aumentar o caráter programático dos acordos interpartidários. O problema é que nenhum acordo político interpartidário é puramente programático. Em qualquer democracia, esses acordos também embutem elementos pragmáticos: cargos, verbas orçamentárias... Um não vai sem o outro. Por mais que a negociação seja em torno de programa, como é que um partido, depois de fazer um acordo com a presidente, tem certeza de que o acordo será cumprido, se ele não ocupa os ministérios que implementarão a política? Claro que há excessos e abusos no Brasil. Mas a ocupação de cargos não é apenas a manifestação de fisiologismo. E o problema da retórica da nova política - que na verdade é uma retórica antipolítica - é que degrada qualquer elemento que não seja puramente programático. Essa é uma sinuca de bico que todo candidato se coloca quando degrada a política.
Acordos programáticos combinam com siglas como PMDB?
Não, mas a eleição da Marina vai ser um choque para o sistema partidário. Não vejo nenhuma razão para que o PMDB não aceite negociar com a presidente.
'Pessebista é pragmática e já mostrou não ser suicida'
"O apoio de partidos inteiros começará a se desenhar já no segundo turno. Se tivermos uma disputa entre Dilma e Marina, não existe dúvida de que o PSDB e todos os seus aliados apoiariam a Marina, além de partidos pequenos como o PSC, talvez o PV, pelo que Eduardo Jorge tem sinalizado. Do outro lado, sobrariam os atuais apoiadores da Dilma. Mas uma parcela do PMDB já não apoia a Dilma e aderiria, a meu ver, com bastante entusiasmo", afirma Luís Felipe Miguel, cientista político.
Eis a entrevista.
O senhor vê problemas de governabilidade caso Marina vença?
Não. O que temos no Brasil é um modelo em que a governabilidade, entendida como apoio parlamentar para que o Poder Executivo implemente suas políticas preferidas, tende a ser obtida após a eleição, num processo de cooptação. Marina está pronta para jogar o jogo que sempre foi jogado. Apesar de ter se apropriado desse discurso da nova política, eu a vejo como uma política muito pragmática, pelos apoios como [o ex-senador do DEM] Jorge Bornhausen. É um discurso de campanha eleitoral. Ela deu todos os passos para indicar que faz a política tradicional brasileira. E essa política tradicional garante que, se o presidente está disposto a pagar o preço, encontra o apoio necessário no Congresso. Teremos mais do mesmo, se ela for eleita.
Que sinais de pragmatismo são estes?
O elenco de apoio pelos Estados e, mais importante, o programa de governo. Os compromissos públicos que ela tem assumido em relação às macropolíticas do país são com interesses já estabelecidos. O sinal de que vai ser confiável para o "mercado" - que antes era chamado de "o capital" - por exemplo com a ideia de autonomia do Banco Central. Está fazendo um esforço gigantesco para superar essa prevenção do agronegócio contra ela e suavizando muito o discurso ambientalista. Só aí temos o interesse dos bancos e do agronegócio - aos quais está vinculada boa parte da nossa elite no Congresso, pelo financiamento de campanha, por suas trajetórias e afiliações. O PSB e os micropartidos que apoiam Marina vão ter uma bancada diminuta. Mas como ela não está com nenhum tipo de proposta que desafie os interesses estabelecidos, tem todas as condições de amealhar, caso eleita, uma maioria no Congresso da forma como todos os governos têm feito. A história do PT ensinou aos outros. Marina parece começar já tendo aprendido essa estratégia.
Qual seria a fórmula: adesões pontuais ou acordos com os partidos? Marina tem dito que fará um governo com os melhores.
O apoio de partidos inteiros começará a se desenhar já no segundo turno. Se tivermos uma disputa entre Dilma e Marina, não existe dúvida de que o PSDB e todos os seus aliados apoiariam a Marina, além de partidos pequenos como o PSC, talvez o PV, pelo que Eduardo Jorge tem sinalizado. Do outro lado, sobrariam os atuais apoiadores da Dilma. Mas uma parcela do PMDB já não apoia a Dilma e aderiria, a meu ver, com bastante entusiasmo.
As preferências políticas do PMDB não estão longe das defendidas por Marina?
O PMDB são tantas coisas que é difícil dizer quais são as suas preferências. Mas depende de o quanto a gente compra o discurso da Marina de que ela representa uma forma nova de fazer política. Temos na Marina uma reprodução do mesmo tipo de política eleitoral que tem triunfado no Brasil, com um discurso pouco ancorado em propostas e princípios e voltado a satisfazer o que parece ser uma onda de opinião pública do momento. Programaticamente, não vejo como um governo Marina fere os interesses do PMDB. O que sobra é a ideia de desaparelhamento do Estado, que, no Brasil, nas últimas décadas, é o discurso de quem está na oposição, mas nunca se efetiva como prática por quem está no governo.
É incompatível preencher milhares de cargos com a ideia de governar com os melhores?
É preciso discutir essa ideia. Não basta dizer que são os melhores. São os melhores para quê? O melhor do ponto de vista de um ambientalista radical não é o melhor para um madeireiro. Para governar no Brasil, rompendo com essas práticas tradicionais, com distribuição de nacos do Estado para aliados políticos, só se tivesse algum outro tipo de apoio, que a Marina não tem. Se ela tivesse capacidade de fazer pressão sobre o sistema político, com movimentos sociais organizados, com a sociedade civil, para criar uma nova dinâmica de governo, talvez isso fosse possível. Mas Marina já deixou claro que suicida política ela não é e nunca foi.
A falta de uma base majoritária fragiliza Marina em caso de crise política ou econômica?
O Collor assumiu o governo com uma diferença: foi o único eleito numa eleição solteira. Assumiu em 1990 e teve um ano de Congresso Nacional velho. Mesmo pilotando um partido minúsculo [o PRN], não teve dificuldade de compor uma maioria para apoiá-lo no começo do governo. Vai se desgastando ao longo de seu mandato. Não creio que a derrota de Collor se deva à falta de uma tropa de choque, que vestisse mais a sua camisa. Acho que tem outros fatores aí. O que a Marina é aproximada ao Collor é num certo discurso de que ela pessoalmente é a fiadora das mudanças que ela propõe. É o discurso de campanha. Mas o poder oferece muitos atrativos, ainda mais no começo de governo, quando o presidente tem alta aprovação, gera expectativa positiva e os meios de comunicação são mais condescendentes. Não importa quem vai ganhar as eleições em 26 de outubro, certamente chegará no começo do mandato com uma maioria parlamentar montada.
O Lula, porém, não tinha essa maioria em 2003.
Lula manejou para obter o apoio do Congresso, inclusive adotando bandeiras históricas de seus adversários. Consegue avançar na reforma da Previdência, por exemplo. E Lula, embora tenha feito um percurso grande de transformação de sua persona que culminou no "Lulinha paz e amor", ainda enfrentava uma oposição histórica que está vinculada à posição que o PT acabou ocupando no sistema político brasileiro. Ao passo que a Marina, ao contrário, anda a favor disso. Podemos falar que a polarização das últimas décadas, que se diz ser entre PT e PSDB, é entre PT e anti-PT. O PT se transformou no foco de organização do sistema, entre quem lhe é contra e a favor. E Marina, ocupando o espaço anti-PT, se coloca numa posição dos adversários históricos do PT, que são a maioria no Congresso. Os governos Lula e Dilma conseguem maioria a despeito do antipetismo, que é dominante. A Marina não tem esse problema, apesar de sua origem no partido - tanto para a elite política quanto para as classes médias que votam contra o PT. Veja o crescimento dela em São Paulo, onde o PSB sempre foi uma sigla secundária e o charme ambientalista dela pesa contra. A única explicação [para esse desempenho no Estado] é o antipetismo desses setores.
Se o PT trouxer o PMDB, ou parte dele, e fizer uma oposição ferrenha, Marina não terá um problema de governabilidade?
Um eventual governo não petista vai encontrar uma oposição muito aguerrida. De um PT que perdeu em inocência, em charme, mas ganhou em experiência e é mais forte nacionalmente do que era nos governos Collor, Itamar e Fernando Henrique - embora o partido possa ser menos convincente do que foi nesta época. Ficaria na oposição esperando por 2018. Mas a hipótese do PMDB acompanhá-lo acho muito improvável. Porque mesmo com o Michel Temer, seu presidente nacional, na chapa como vice [de Dilma], o PMDB está completamente fragmentado por conta dos interesses das eleições estaduais. Os diferentes nacos do PMDB teriam interesses em aderir.
O apoio do PMDB não poderá frustrar o eleitor de Marina, dando força ao PT na oposição?
A tendência da política brasileira, da forma como ela ocorre, é o desencanto do eleitor a cada novo governo. Porque existe um descompasso entre aquilo que se deseja, de uma política mais transparente, mais limpa, mais programática, e a prática. E a chance de Marina decepcionar é maior, porque a aposta retórica dela também é maior.
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Base de Marina divide opinião de analistas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU