20 Agosto 2014
"É obrigação dizer basta aos crimes hediondos do ISIS. Um pacifismo abstrato de boas intenções pode ser paralisante. A morte de crianças palestinas em Gaza e a fuga em massa das populações yazidis, lembrando também o sequestro de cerca de cem meninas pela milícia radical islâmica Boko Haran no norte da Nigéria, exigem um alinhamento firme pela justiça e diante de crimes contra a humanidade", escreve Luiz Alberto Gómez de Souza, sociólogo.
Segundo ele, "há que tomar partido contra os crimes que bradam aos céus. Merleau-Ponty, criticando certas posições de cristãos “au dessus de la mêlée”, dizia que eles tinham as mãos limpas ... porque não tinham mãos. Quero minhas mãos salpicadas com o sangue de inocentes, com o pó dos tanques entrando em Gaza e das multidões em fuga no Iraque, sentindo o cheiro e o gosto amargo desse pecado social. Sempre com compromisso e indignação".
Eis o artigo.
Gaza e o povo yazidi em fuga, com o grito desvairado das mães, são Guernica hoje.
Não é tempo de análises ahistóricas. Tenho enviado mensagens com a cumplicidade indignada em defesa do povo palestino. Amplio para o desatino da criação de um novo sultanato no Oriente Médio.
Jean Giono, num desafio aos cristãos, escreveu: “Não quero atravessar as batalhas com uma flor na mão”. Não concordo se for guerra entre países. Há exatamente um século, às vésperas do conflito de 1914. o grande Jean Jaurès, líder socialista francês, foi assassinado ao pregar a paz. Mas aqui não se trata de guerra ou paz, mas de um genocídio (holocausto, valha a provocação) do povo Palestino. O problema não é entre judeus e palestinos (todos temos um pouco de sangue judeu). Nem uma absolvição do Hamas. Trata-se do estado de Israel trucidando crianças e população civil. Em Tel Aviv judeus desfilaram contra a ação do estado assassino de Israel. Minha amiga, Shulamit Aloni, ex-ministra de Israel, deixou a política para dedicar-se ao diálogo judeu-palestino. Barenboim, judeu argentino-israeli e o fantástico palestino Edward Saïd, criaram uma orquestra de jovens palestinos-judeus. Mas agora estamos numa situação de urgência. Não é hora de terceirismos. Como se durante o holocausto judeu dos nazistas disséssemos, querendo parecer equânimes: “sim, mas há também o gulag de Stalin”. Mania de alguns intelectuais e cristãos de querer colocar as coisas fora das emergências da história concreta. Assinei um manifesto contra Israel, pelo massacre dos palestinos. Ao mesmo tempo, recusei assinar outro manifesto de alguns amigos, por não aceitar colocar o tema terrível em um plano fora do histórico concreto e pretensamente equilibrado.
Agora temos outro genocídio em marcha: a ação aterrorizante dos jihadistas do Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIS), em árabe Daash, que quer reinventar um califato, abolido em 1923 por Atatürk. Seu avanço tem sido fulminante, no norte da Síria e em boa parte do Iraque, aproximando-se de Bagdá. Vem de uma tradição sunita, como Al Qaeda, mas se lança indiscriminadamente contra outros muçulmanos sunitas, contra chiitas, yazidis e cristãos. Para eles, os não-muçulmanos devem converter-se ao Islã, pagar um tributo (jizya), buscar o exílio ou a morte. Destroem mesquitas árabes e templos cristãos.
Contra eles se erguem muitas vozes, como o grande ayatolá xiita do Irak, Ali al-Sistani; o grão-mufti do Egito, Shawki Allam: “esse grupo representa um perigo para o Islã e para os muçulmanos do mundo. Todos os princípios do Islã foram violados”; o imã Ahmad al-Tayeb, da mesquita universitária sunita de al-Azhar no Cairo; o Hezbollah no Líbano; o patriarca caldeu cristão Louis Raphael I Sako; do lado católico, o Conselho Pontifício do Diálogo Inter-religioso, que denunciou decapitações, crucifixões, mutilação genital, o rapto de jovens como “espólio de guerra” (sabaya). Um dos fatos mais graves, a violência contra a comunidade de fala curda dos yazidis, um dos povos mais antigos da Mesopotâmia, com uma crença de cerca de 4.000 anos, na tradição do zoroastrismo persa. Estes últimos já tinham sido perseguidos por muçulmanos e cristãos e, em 2007, pela Al Qaeda; populações inteiras deles correm o risco de serem massacrados e fogem pelos desertos em direção à Turquia. Não podemos ficar indiferentes.
Escreveu o monge Enzo Bianchi, da comunidade de Bose em La Stampa (12-08): “Aqui todos se perguntam apenas isto: ‘até quando?’(...) ‘até onde?’. Até quando durará essa tragédia, até que ponto chegará a barbárie humana perpetrada em nome de um fanatismo religioso? Depois do massacre de homens, mulheres e crianças yazidis, alguns deles enterrados vivos, depois da aventurosa fuga de 20 mil deles das montanhas onde eram perseguidos, torna-se cada vez mais tragicamente evidente que todas as minorias religiosas (...) correm o risco da eliminação total na planície de Nínive. Uma região que, ao longo dos séculos, tinha conhecido a convivência de etnias e religiões diferentes,vê agora sepultada a humanidade junto com crianças indefesas, depois de ver explodir em uma nuvem de fumaça a mesquita dedicada ao profeta Jonas, figura venerada por judeus, cristãos e muçulmanos, lugar de peregrinações sagradas que reuniam crentes de diversas filiações”.
E Bianchi insinua, na raiz dessa situação, a ação criminosa do governo George W. Bush, na segunda guerra do Iraque, a partir de informações falsas, porém em função dos interesses da indústria bélica de seu vice Dick Cheney e de outros senhores da morte nos Estados Unidos: "como cidadãos do mundo, aos detentores de poder político e financeiro, devemos pedir contas de quem e como fornece dinheiro ou armamentos – ou ambas as coisas – a grupos de fanáticos religiosos que, embora lisonjeados no início, invariavelmente acabam se tornando incontroláveis; podemos exigir explicações dos seus fins estratégicos, que não souberam prever que a pretensão de encontrar e desarmar armas de destruição massiva, usando instrumentos de morte, faria surgir instintos destruidores em massa, mesmo onde estavam em silêncio..." E diz então Bianchi: “Sim, devemos reencontrar a consciência de que, quando se pisoteia a dignidade humana, se ofende a Deus; quando se invoca a Deus para fazer a guerra, blasfema-se contra Ele!”.
O papa Francisco, no dia 11 de agosto, denunciou: o que está acontecendo no Iraque "ofende gravemente a Deus e à humanidade. Não se porta o ódio em nome de Deus! Não se faz a guerra em nome de Deus!".
Francisco decidiu enviar a Bagdá o cardeal Fernando Filoni – núncio apostólico na capital iraquiana nos tempos da guerra do Golfo – e está tentando lançar uma nova iniciativa diplomática.
Diz o jornal italiano Pagina 99 de 11 de agosto: “A realidade dos fatos está pondo em escanteio a posição do ‘não’ à Guerra, para forçar a Igreja a assumir uma leitura mais concreta e talvez menos profética e mais institucional da crise que está se desenvolvendo no Oriente Médio(...) Por outro lado, a definição de guerra como instrumento ‘contrário à razão’ (João XXIII) e o ‘jamais plus la guerre" de Paulo VI, também parecem mostrar os seus limites no caos da nova desordem mundial. Foi João Paulo II quem colocou a questão em termos novos diante dos massacres a que os bósnios (em grande parte muçulmanos), eram submetidos no conflito dos Bálcãs do início dos anos 1990 (a intervenção humanitária); a doutrina do uso da força segundo o direito internacional foi depois inserida na mensagem para a paz de 1º de janeiro de 2000. Francisco ainda não proferiu pessoalmente palavras tão explícitas, mas fez com que fossem ditas pelos seus mais altos representantes. No domingo (dia 10), no entanto, ele chegou muito perto disso, quando, no Angelus, pediu que se encontre uma solução política e diplomática para a crise para ‘parar esses crimes e restabelecer o direito’" (Pagina 99).
Silvano Maria Tomasi, observador da Santa Sé junto à ONU e Giorgio Lingua, nuncio em Baddá, chegaram a falar da possibilidade de uma intervenção militar oportuna. Este último indicou: Os grupos considerados terroristas “não são produtores de armas, portanto de algum lugar elas devem chegar (…) É preciso parar ou controlar melhor esse aspecto, caso contrário nunca se acabará” (IHU Notícias, 13-08).
É obrigação dizer basta aos crimes hediondos do ISIS. Um pacifismo abstrato de boas intenções pode ser paralisante. A morte de crianças palestinas em Gaza e a fuga em massa das populações yazidis, lembrando também o sequestro de cerca de cem meninas pela milícia radical islâmica Boko Haran no norte da Nigéria, exigem um alinhamento firme pela justiça e diante de crimes contra a humanidade.
Há que tomar partido contra os crimes que bradam aos céus. Merleau-Ponty, criticando certas posições de cristãos “au dessus de la mêlée”, dizia que eles tinham as mãos limpas ... porque não tinham mãos. Quero minhas mãos salpicadas com o sangue de inocentes, com o pó dos tanques entrando em Gaza e das multidões em fuga no Iraque, sentindo o cheiro e o gosto amargo desse pecado social. Sempre com compromisso e indignação.
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Na denúncia dos genocidios - Instituto Humanitas Unisinos - IHU