22 Julho 2014
Não pedimos que gostem dos índios. Exigimos apenas que nos respeitem. Que respeitem nossos direitos”. E a violação desses direitos, trazida pela fala de Ivanildo Tenharim diante das agressões sofridas pelo seu povo, é uma das principais causas dos dados apresentados pelo relatório de violências contra os povos indígenas, referente ao ano de 2013, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), lançado na manhã desta quinta-feira, 17, na sede da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em Brasília (DF).
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Parte das análises do relatório, a omissão do Poder Público recebeu destaque. Na questão indígena, a omissão é o principal combustível da violação. Nesta quinta, a Funai declarou para a Agência Brasil que por orientação do governo federal paralisou os processos de demarcação em áreas de conflito. Com efeito, são nestas terras indígenas que está a maior concentração de violências e agressões contra os povos, conforme atesta o relatório. No lugar de demarcar as terras, assentar os pequenos agricultores e pagar as benfeitorias, a decisão do governo é a de não contrariar os aliados ruralistas.
O presidente do Cimi, Dom Erwin Kräutler, acredita que “o governo federal se nega a cumprir suas obrigações constitucionais de assegurar as terras indígenas. Com o relatório visamos uma ampla e intensa campanha de luta em defesa da vida. Precisamos urgentemente rever as prioridades sociais e direção política de nosso país. Não podemos nos calar diante do que ocorre com estes povos, que querem viver”.
Viver. Como povos indígenas podem viver sem ocupar de forma plena suas terras tradicionais? A paralisação dos procedimentos demarcatórios como parte da política indigenista estatal, deixando 64% das terras indígenas sem regularização, mantém comunidades confinadas ou acampadas às margens de rodovias e vulneráveis às violências de fazendeiros, madeireiros, grandes empreendimentos. Para muitos indígenas a teia de dissociações fiadas não deixa outro caminho fora o suicídio, alcoolismo e a violência entre si.
No Mato Grosso do Sul, conforme o relatório, ocorreram 73 suicídios em 2013, sendo 72 entre os Guarani Kaiowá. O pior resultado em 28 anos. Já o município de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, majoritariamente de população oriunda de 23 povos indígenas da região do rio Negro, lidera o ranking de suicídios entre os mais de 5 mil municípios, conforme o Mapa da Violência 2014, com taxa de 50 por 100 mil habitantes – dez vezes maior que a média nacional. Leia análise aqui.
Racismo e incitação ao ódio
“O relatório 2013 traz de forma muito forte a postura anti-indígena de setores da sociedade brasileira. Os ruralistas promoveram manifestações, leilões e no parlamento tentam aprovar projetos contra estas populações. Isso tem um efeito direto nas formas de violências contra os povos indígenas”, aponta a coordenadora do relatório, a antropóloga Lucia Helena Rangel. Assessora do Cimi, Lucia destaca o que chama de “liberdade de expressão” contumaz dos detratores das lutas indígenas com ataques racistas, pejorativos e de incitação ao ódio.
A antropóloga lembrou da audiência pública da Comissão de Agricultura da Câmara Federal, ocorrida no município de Vicente Dutra (RS) em novembro do ano passado, onde os deputados Luiz Carlos Heinze (PP/RS) e Alceu Moreira (PMDB/RS) fizeram ataques agressivos não só contra indígenas, mas também envolvendo negros e homossexuais taxando-os de “tudo o que não presta”. A audiência foi financiada com recursos públicos. Assista ao vídeo aqui.
Mesmo longe de ser algo novo no país, tais ataques surpreendem pelo respaldo político que encontram no Executivo e Legislativo. O missionário indigenista Roberto Liebgott, também coordenador do relatório, analisa que a postura omissa do governo federal diante da efetivação do direito ao território tradicional desencadeou uma onda de violência contra os indígenas em diversos campos da sociedade, caso do legislativo. “A conexão se dá pelo governo federal, que possui uma dependência política dos ruralistas, e então juntos eles harmoniosamente agem contra os direitos indígenas”, afirma Liebgott.
Num contexto desfavorável, onde a cada 100 indígenas que morrem 40 são crianças, comprometendo assim até mesmo o futuro destes grupos, os povos seguem resilientes. Sobretudo com a nova tática de criminalização, que conta com prisões e imputação de crimes sobre os ombros calejados de lideranças, caciques e pajés. E não é mera coincidência que tenham ocorrido prisões e acusações em áreas de conflito, seja motivado pelos interesses do agronegócio, do próprio governo e seus empreendimentos ou pela ação ilegal de madeireiras. Mesmo quando se trata de terras demarcadas. O caso emblemático de 2013 foi o ocorrido com os Tenharim, entre os municípios de Humaitá e Manicoré, no Amazonas. Para o relatório de 2014 já existem outras duas situações: os cinco Kaingang presos no Rio Grande do Sul e Babau Tupinambá detido em Brasília. Acusados de crimes que não cometeram, provas inconsistentes ou inexistentes. Um padrão.
Caso Tenharim
No caso dos tenharim, cinco lideranças foram presas acusadas de assassinar, em dezembro do ano passado, três homens. Sem nenhuma prova de que tivessem cometido o crime, e negando de forma contundente, foram execradas e condenadas pela imprensa e hoje os tenharim não podem circular pelas cidades sob risco de espancamento. As crianças estão proibidas de frequentar a escola, os professores de lecionar e os indígenas servidores públicos não podem mais se dirigir aos postos de trabalho. “A Justiça age contra a gente, mas não contra madeireiros e demais invasores. Nenhuma denúncia que fazemos tem providência. Isso acontece no Brasil inteiro”, destaca Ivanildo Tenharim.
A liderança explica que com a abertura da Rodovia Transamazônica pela ditadura militar, nos anos 1970, chegaram os fazendeiros e madeireiros. Parte do povo foi escravizado pelas frentes de colonização. Outra parte morreu assassinada ou em decorrência da invasão. Assim nasceu o conflito. Dezenas de madeireiras se instalaram e prosperaram. Neste início de século XXI, a única área da região que mantém a floresta preservada está na terra indígena. Os madeireiros então passaram a invadir e retirar madeira do território tradicional com cerca de 1 milhão de hectares. Os tenharim reagiram.
“Montamos os pedágios, a partir de 2006, como forma de compensar. Os recursos financiavam nossa luta contra as madeireiras. Nunca aceitaram e faz tempo que buscavam um motivo para nos atacar. Com a morte dos três passaram a nos acusar. Fecharam a estrada, atacaram a aldeia, a Funai, queimaram o barco. Todo mundo ficou contra a gente. Quem estava na cidade teve de ficar no quartel do Exército”, conta Ivanildo. O povo segue ameaçado e perseguido. A prisão das cinco lideranças mudou a rotina da aldeia e a liderança tenharim afirma que estão desamparados.
“Fosse apenas fazendeiro e madeireiro, tudo bem. O problema é que tem o Poder Público no meio, a Polícia Federal. Quando vamos fazer queixa de ameaça na delegacia, dizem que o sistema está fora do ar. Tudo isso está relacionado com os interesses de madeireiros, fazendeiros e do próprio governo que tem projeto para aquela região”, critica o tenharim olhando a capa do relatório, com o barco do povo pegando fogo depois de atacado com bombas incendiárias pela horda arregimentada por setores anti-indígenas da região.
Ao comentar o relatório, dom Leonardo Steiner, secretário geral da CNBB, se deteve ao poder simbólico da imagem: “É uma capa muito significativa: estamos queimando culturas. Creio que não há dimensões do quanto isso é ruim para o país. Não são números o que este relatório nos traz, mas pessoas. Não podemos continuar com essa tragédia contra os povos indígenas”.
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Enquanto Funai admite paralisação de demarcações, relatório demonstra efeitos da política governista - Instituto Humanitas Unisinos - IHU