Por: Caroline | 14 Julho 2014
A autora argumenta que o futebol na Argentina “construiu um tipo particular de gênero masculino” e que “o estilo de construção da masculinidade na Argentina marcou a criação de um futebol nacional”. Contudo a subjetividade das mulheres argentinas se arranja em relação ao futebol. São enumeradas seis questões a respeito. Débora Tajer é psicoanalista, e o artigo é publicado por Página/12, 10-07-2014. A tradução é do Cepat.
Fonte: http://goo.gl/4DLSvF |
Eis o artigo.
O futebol, pelo menos no caso argentino, é uma área social privilegiada da constituição da subjetividade masculina e de tem grande relevância na vida cotidiana dos homens. Grande parte da fascinação masculina por este esporte reside no que se denomina captura da cena esportiva: a imprevisibilidade, a surpresa, a ambiguidade entre ganhar e perder, a crença dos espectadores de que seu entusiasmo pode mudar as oportunidades de seu time, a suposição de que algo acontecerá aos jogadores quando são olhados pelo público. Captura atrelada a conformação do ideal ligado a masculinidade.
Um pouco antes de começar a pesquisa, comecei a perceber que falar de futebol é falar de um componente muito importante da vida cotidiana em nossa região: é um dos modos nos quais expressa-se o afeto, a paixão e os vínculos. Assim como as construções de gênero, masculinas e femininas. O futebol está “sexuado” e pintado de gênero, com predomínio masculino, mesmo quando há apreciadoras e até mesmo pelo fato de que já se tenha observado uma entrada massiva de mulheres apaixonadas por este esporte.
Em relação aos homens, há uma maneira particular de criação de subjetividade masculina em nosso país, expressa em uma maneira distinta de jogar futebol que tem mudado com o tempo. Poderíamos afirmar que o futebol argentino construiu um tipo particular de gênero masculino em nosso país e, vice-versa, o estilo particular de construção da masculinidade na Argentina marcou um estilo na criação de um futebol nacional. Há uma relação entre futebol e o “tornar-se homem” e “ser homem” na Argentina. E como o próprio conceito de gênero assinala por seu caráter relacional, não é possível falar de um “tornar-se homem” que não seja simultâneo a um processo de “tornar-se mulher”: há uma relação entre futebol e “tornar-se mulher” e “ser mulher” na Argentina; pelo menos nas vicissitudes do “devir mulher” convivendo com homens que têm uma bola de futebol no coração.
Sem dúvida, em nosso país o futebol constituiu-se como um organizador da identidade nacional quase desde seu início, diferenciando-se do futebol estrangeiro, em especial do inglês, do qual é herdeiro. Este esporte se constituiu em um dos modos de transformar os filhos de imigrantes em mestiços, com base nas possibilidades brindadas pela preferência da habilidade, acima da classe social de origem. Deu-se valor ao estilo rio-platense, ligado a arte e a criatividade mais do que a máquina e a potência. O campo de futebol foi caracterizado como espaço do homem livre, da verdade democrática. Esta imagem do homem livre se institui em relação à preservação de uma virtude masculina: o estilo infantil, puro. O campo se constitui em um mundo de crianças traquinas, malandras, “vivos”, que escapam das escolas e dos clubes.
Já em 1928, a revista El Gráfico caracterizava o estilo mestiço como o de um jogador leve, veloz, delicado, com maior habilidade individual e menor ação coletiva; manhoso, que tinha a indolência como virtude e que não precisa da força para impor-se. Estas são as características gerais do futebol nacional que é, fundamentalmente, o contraponto entre a habilidade e a força, sustentado na oposição entre cérebro e corpo. Expressa-se também outro tipo de contradição: entre a aristocracia do futebol e o trabalhador; o primeiro joga para se divertir; enquanto o segundo é descrito como luta e esforço. Assim cabe assinalar a coexistência de diferentes modelos, cada qual com seu estilo, que possui um tipo de corpo e de virtudes masculinas. E o público, os outros homens, identificando-se com os mesmos, dependendo do qual se torne mais próximo e afim.
Pelo menos desde a década de 1920, o futebol faz parte da genealogia masculina de nosso país. Desde então um pai transmite e deixa para seu filho homem três brasões identitários: um nome, um sobrenome e uma camisa. Pertencentes à legião da família, identificada com a camiseta, institui a linhagem em uma busca de se construir um pertencimento nacional. Pertencimento que na atualidade representa um dos poucos organizadores fortes de identidade, ou seja, assistir ao estalo e reordenamentos de vários organizadores da vida instituídos na modernidade. O amor por uma equipe permite um porto identitário de grande relevância frente às outras possibilidades de identidades fortes e depositários da ansiedade moderna, que se revelaram deterioráveis: o matrimônio, o trabalho, os partidos políticos, os pactos, as referências, os líderes.
Parece que o único que mostra-se perene é o futebol, já que, salvo raras exceções, se nasce e morre com a camisa. Um homem contemporâneo pode mudar de mulher, de partido, de chefe e até de país, mas nunca de equipe de futebol. Este fenômeno explica o assombro que produz o fato de que muitos homens que antes não prestavam atenção a este esporte, na atualidade o façam com fervor. Na realidade trata-se de um desfrute do último refúgio gerado pela paixão e que os da uma forte identidade, que permanece com eles. Apelam ao reservatório da genealogia do gênero masculino argentino que não encontra um equivalente na feminilidade: o nome, o sobrenome e a camiseta.
E, na clínica psicanalítica, a pesquisa pela preferência por alguma equipe de futebol e suas vicissitudes é uma boa via de acesso aos avatares da função paterna em um sujeito. “E você, menino, de que time é?”, ouve-se perguntar aos pequenos homens em nosso país, e a pergunta se refere a quem irá se filiar, a que modelo de masculinidade incorporou e qual escolhe incorporar. As respostas podem ser várias. O menino pode decidir pertencer ao clube do pai, ao do melhor amigo do pai, ao do esposo ou amor da mãe, ao do avô materno ou paterno, ao do tio, ao do grupo de amigos (esta parece ser uma escolha secundária), ao de um querido pai de um amigo, pode ser o clube da cidade ou do país para o qual se mudou em uma tentativa de adquirir uma identidade com os homens, como um roteiro de masculinidade.
E esse menino que escolhe pertencer à equipe do tio pode ter tomado a decisão ao perceber o amor que este sente pela camisa. Esse tio era o que levava o menino ao campo, e a condição de ser levado ao campo é de pertencer ao mesmo time que esse adulto. Claro que este mesmo menino pode seguir a profissão de seu pai, sua ideologia política, seus gostos estéticos etc.
Mulheres argentinas
Em relação às mulheres argentinas e o futebol, desde agora pode-se falar de sua relação, tolerante ou não, de apreciadoras ou não, com essa paixão masculina. Claro, não há porque desconhecer a integração gradual e crescente das mulheres em todos os âmbitos da vida social, entre os quais o futebol está incluído. Contudo este esporte não é qualquer âmbito da vida social argentina, mas é atribuidor de uma identidade mais forte e das menos modificáveis nesta pós-modernidade periférica. É um referente que assinala rapidamente quem é sujeito que não é. E deste fenômeno ninguém quer ficar excluído, nem as mulheres. Poderíamos organizar a relação das mulheres com o futebol em dois grupos: as mulheres que gostam de futebol e as que não gostam. As primeiras poderiam ser dividas, por sua vez, em dois subgrupos: as que adentraram ou lutam para ingressar como atoras diretas – jogadoras, árbitras, jornalistas, dirigentes e treinadoras – e as que simplesmente são apreciadoras do espetáculo, vêm as partidas ou as assistem pela televisão.
As que procuram ingressar na atividade devem enfrentar os obstáculos que surgem quando as mulheres decidem entrar em algum ramo de uma atividade social de predomino masculino.
Um atrativo que este esporte tem é o efeito de ser subjetivado em relação a um jogo coletivo que vai além das habilidades individuais, afinal se não há uma equipe não se pode jogar: é a aprendizagem de “passar a bola”, jogar em relação aos outros, e não ser “fominha”. Isto faz referência a uma tradição muito importante que o coletivo de mulheres não tem como acervo, precisamente por ter sido excluído da estimulação para a prática de esportes coletivos.
Em relação às mulheres, as que não gostam de futebol, poderíamos distinguir quatro grandes subgrupos. Um é o das que se sentem incomodadas, consideram-se excluídas de uma atividade que – enquanto dura a partida – tira todo o interesse de seu amado. Elas buscam a todo tempo uma maneira de persuadir seu parceiro de que, em prova de seu amor por elas, deva desistir de ir ao campo ou de ver a partida pela televisão. Nestes casos podemos advertir que o time escolhido é tido como “a outra”.
Também há as indiferentes. Estas mulheres não se importam, nem se incomodam com o futebol; na realidade há muito poucos exemplares que pertençam a este subgrupo. E há aquelas que acompanham. Mulheres que, com suficiente experiência de vida, aprenderam a estratégia de que, visto que não se pode vencer um poderoso inimigo, o mais inteligente é unir-se a ele. E há as perplexas: não se sentem incomodadas, mas não conseguem entender a fascinação masculina em ver vinte e dois sujeitos adultos correndo simultaneamente atrás de uma bola.
O que as pertencentes destes subgrupos parecem compartilhar, muitas vezes inconfessavelmente, é a inveja provocada pela paixão que eles sentem e que elas não encontram equivalente substituto no universo feminino. Em todo caso, interessem-se ou não por ele, como jogo e espetáculo, o futebol não está ausente dos afetos e da história de vida das mulheres que desenvolvem sua existência em um lugar onde o futebol é uma atividade de grande importância social.
Uma paciente, ao falar da relação com seu pai, relata que quando era criança lembra ter experimentado um ódio irreprimível aos domingos pela tarde, quando ele ficava apenas a escutar as partidas pela rádio. Já não ia aos campos porque seu filho homem, o irmão mais velho da paciente, havia deixado de acompanha-lo – os intelectuais nos anos setenta preferiam sair com a companheira do que serem fiéis a camisa -. Então, seu pai escutava o rádio, fosse em case, passeando no carro ou em alguma visita. Ele acompanhava fisicamente o restante da família aos domingos, mas sua cabeça e seu coração ficavam no estádio. Talvez junto às mulheres da casa sentia-se abandonado e sozinho. E, enquanto escutava a partida, o mundo parava. Nada mais o importava, nem sequer sua filhinha da alma. Com o tempo a paciente pôde compreender que esse ódio que acreditava sentir por seu pai era, na realidade, provocado pelo fato de que ele entrava em um mundo que a excluía por ser mulher, um mundo para transmitir e compartilhar apenas com o filho homem.
No relato de algumas das mulheres que participam e gostam de futebol, isto se conecta com sua relação com o pai: como um dom que receberam de seu pai, uma herança com a qual elas se filiaram ainda que não seja um legado típico para as mulheres.
Talvez, para entender as representações psíquicas das mulheres que participam do futebol, devamos apelar para um paralelo com o modelo clínico que é utilizado com a perspectiva de uma psicanálise revisitada a partir dos estudos de gênero, para trabalhar com as identificações vocacionais e trabalhistas das mulheres cujas mães foram donas de casa enquanto seus pais participavam na atividade do mundo do trabalho. Sabemos que estas mulheres, para adquirir sua própria modalidade feminina de inserção no mundo do trabalho, devem apelar para o reservatório de identificações via paterna e, com esse material, construir e agenciar representações próprias. Considero que grande parte da relação das mulheres com o futebol está intimamente conectada com o tipo de vínculo que teve com homens significativos. Nos pais das mulheres que gostam de futebol visualizamos a possibilidade de serem modelo de identificação para suas filhas, sem assimilar as características próprias encontradas em suas herdeiras como um indicador de masculinização das mesmas.
De todo modo, esta conquista só pode coexistir com aspectos paternos de reafirmação de sua diferença em relação às mulheres e de desconhecimento de algum dos atributos agenciados por suas filhas. Por isso estas meninas podem carecer de consciência da coexistência de reconhecimento/desconhecimento até que se vejam envolvidas em aventuras amorosas, trabalhista ou outras, que entrem em contradição com a imagem que formaram de si mesmas.
A paciente em questão, já maior de idade, como outras congêneres, achou mais atraente um homem que não gosta de futebol, para logo compreender, desiludida, que esse lugar pode ser ocupado por qualquer outra paixão. Contudo também chamou sua atenção pelo fascínio feminino do qual fala Lacan, essa experimentada ao ver um homem concentrado e integralmente em uma ação, em um ato. Assim, pode ceder frente aos sentimentos e os sacrifícios ao quais um homem está disposto a passar pela camisa de seus amores. Ela forma parte do coletivo de mulheres que atualmente tem percebido que em uma casa pode haver duas televisões e que existem muitos programas alternativos, amizades e familiares para visitar aos domingos pela tarde. E um desses programas pode incluir acompanhar o amado para ver uma partida. Elas também chegaram à conclusão de que desconhecer o futebol é desconhecer uma parte importante da vida nacional e dos homens argentinos. Sabem que o coração pode ser um músculo muito elástico e que pode abrigar carinho por outra equipe, além do legado deixado por seu pai. Podemos compreender que a consolidação deste processo vai de mãos dadas com as mudanças que estão ocorrendo no exercício da função patena e da democratização das relações ente os gêneros em seu sentido mais amplo.
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As mulheres, os homens e o futebol - Instituto Humanitas Unisinos - IHU