25 Junho 2014
"Não gosto de xingamentos contra qualquer pessoa. Gosto de rosas. Mas, destas, que confinam as mulheres a uma verdade única e tosca, é melhor manter distância", escreve Eliane Brum, escritora, repórter e documentarista, em artigo publicado pelo jornal El País, 23-06-2014.
Eis o artigo.
Eu estava no estádio do Itaquerão, na abertura da Copa do Mundo, e ouvi as vaias e a torcida xingando: “Ei, Dilma, vai tomar no cu”. Não posso afirmar onde as vaias começaram, essa me parece uma certeza muito difícil de garantir num estádio de futebol. Concordo, em parte, com os que alegam que estádios são lugares de palavrões, basta lembrar das mães dos juízes. Mas também discordo, em parte, porque o público da Copa é totalmente diverso do torcedor típico, aquele que vai ver o seu time jogar como uma rotina tão presente na vida quanto trabalhar e namorar. Na Copa, o público é outro, leva para dentro das “arenas” outra expectativa e outra relação com o futebol. Mandar uma pessoa tomar no cu, qualquer pessoa e não só a presidente, é não só grosseiro, como violento. O Brasil é uma sociedade violenta, para muito além da tipificada no Código Penal. Essa violência atravessa o cotidiano. Dito isso, há algo que me incomoda nas narrativas construídas nesse episódio e que valeria a pena prestar mais atenção: a manipulação dos femininos.
Logo depois das vaias, surgiu a interpretação de que Dilma só foi xingada nesses termos porque é mulher. É uma hipótese possível, basta lembrar, de novo, que são as mães dos juízes as ofendidas. Basta lembrar das repórteres beijadas ou agarradas enquanto cobrem a Copa, assim como da eleição das gostosas de sempre. O Brasil (e não só o Brasil) é machista e por vezes misógino, há poucas dúvidas sobre isso. Mas não é possível afirmar que Lula, Fernando Henrique Cardoso ou outro presidente não seria xingado se estivesse ocupando o lugar de Dilma na abertura desta Copa. Alega-se que Lula foi vaiado várias vezes na abertura do Pan-Americano, em 2007, mas xingado nenhuma. Existe, porém, o Brasil de antes de junho de 2013 e existe o Brasil depois de junho de 2013. Naquele momento, algo se rompeu e passou a vazar desde então. Assim, afirmar que um presidente homem dificilmente seria xingado, hoje, nesse mesmo contexto e conjuntura, é temerário. Não sabemos. E é preciso ter respeito pelo que não sabemos.
Temos a primeira mulher na presidência. E, desde a campanha de 2010, versões do feminino têm sido manipuladas conforme a conveniência. Agora não é diferente. Assim que o xingamento foi consumado, de imediato instalou-se a disputa sobre interpretações que repercutirão nas eleições bem próximas. Para o candidato Eduardo Campos - PSB, num clichê pobre, “na vida a gente colhe o que a gente planta”. O candidato Aécio Neves - PSDB apressou-se a tirar proveito, afirmando que Dilma estaria “sitiada”: “O que fica para a história é que temos uma Copa do Mundo em que o chefe de Estado não se vê em condições de se apresentar à população”. O PT virou o jogo e conseguiu vencer a disputa narrativa, com a ajuda de parte do movimento feminista. Dilma agora é a vítima da elite mal-educada – e há sempre um lugar de vítima reservado para as mulheres.
Mas será que isso é bom para as brasileiras?
Acho particularmente irritante o argumento do “não se pode dizer isso a uma mulher” ou “não se trata uma mulher assim”. Se é grosseiro xingar – e é –, é grosseiro com qualquer pessoa, independentemente de sexo e gênero. Culmina com Lula dando uma rosa branca à Dilma. Claro, porque as mulheres devem ser tratadas com rosas. Profundo bocejo. Acho complicado quando Dilma afirma: “Não vou me deixar atemorizar por xingamentos que não podem ser sequer escutados pelas crianças e pelas famílias”. Há uma lista de violências cotidianas sofridas pelas crianças no Brasil, inclusive nos últimos 12 anos, e ouvir alguém mandando outro tomar no cu é desnecessário, mas não é uma delas. A visão de família parafusada nessa frase está mais para “marcha da família” do que para as variações contemporâneas de família que têm enriquecido a vida brasileira. Dilma ainda disse: “O povo brasileiro é civilizado e extremamente generoso e educado”. Se Dilma governasse o país acreditando no que disse, seria preocupante. A elite brasileira é violenta, o povo também é violento. Basta andar nas ruas do país para constatar a “civilidade”. A sociedade brasileira é violenta de cima abaixo, com raízes históricas e omissões contemporâneas bem conhecidas, a começar pela desigualdade de renda e pela péssima educação pública, que condena milhões a uma vida estreita de possibilidades.
O risco dessa disputa rasteira, com olhos na eleição logo ali, é que se deixa de pensar seriamente sobre os sentidos do que é o Brasil hoje. E até mesmo sobre os significados das vaias e xingamentos. Tudo é reduzido a slogans publicitários, chapinhando propositalmente em poças d’água. Como a visão do feminino manipulada pela primeira campanha de Dilma. Nela, se lembrarmos, Dilma foi apresentada como “a mãe do PAC”. Ao dizer quais eram as vantagens de uma mulher na presidência, ela enumerou: “Nós, mulheres, nascemos com o sentimento de cuidar, amparar e proteger”. O próprio Lula afirmou que a palavra não era “governar, mas cuidar”. E Dilma acrescentava: “cuidar como uma mãe do povo brasileiro”.
Ao aceitar essa estratégia de marketing, que possivelmente representa muito mais a visão de Lula do que a sua, Dilma reduziu os sentidos dos muitos femininos possíveis ao clichê mais tacanho. Sem contar o lugar de “filho” – e não o de cidadão autônomo, com direitos e deveres – reservado ao povo. Dilma foi eleita. Ao governar, irritava-se porque a acusavam de truculência no trato com subordinados e interlocutores. Disse, mais de uma vez, que, se fosse um homem na presidência, ninguém estranharia seu estilo ou cobraria meiguice. Ao mesmo tempo, sempre que alguém tratava a presidente com mais dureza, Lula era o primeiro a protestar pela “falta de gentileza com uma mulher”.
Em um governante, assim como num candidato, seja ele homem ou mulher, pouco importa. O que é preciso avaliar é o que faz. E fez. No que diz respeito às mulheres, assim como a questões de sexualidade e de gênero, Dilma recuou. Recuou na questão do aborto, para obter o voto religioso. Recuou ao cancelar a distribuição do kit anti-homofobia nas escolas. Recuou ao tirar do ar uma campanha de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis porque uma prostituta dizia que era feliz. Dilma recuou várias outras vezes, recuou demais.
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Dilma, a vaia e o feminino - Instituto Humanitas Unisinos - IHU